Apresentação da obra «Arquivo Secreto do Vaticano. Expansão portuguesa» – D. Manuel Clemente

 

A obra que agora nos é facultada reveste-se do maior interesse e oportunidade. Interesse derivado da temática e da qualidade rara da oferta; oportunidade advinda da grande procura de fontes sobre um setor indispensável da nossa história moderna e contemporânea.

Não transcrevendo os documentos, os autores dão-nos a síntese de cada um, com a respetiva referência de arquivo. É assim possível ao investigador saber de antemão o que existe e onde está, no grande acervo vaticano, poupando tempo e divisando também a série e o conjunto. Só por isto, o contributo da presente edição já é muito grande.

Pode parecer limitada a gama de assuntos desta documentação. Na verdade, referem-se à vida e interesses duma Nunciatura, naquilo em que superintendia e no que por ela passava. Relatórios de bispos, dispensas matrimoniais, contactos com o Estado, nomeações de prelados, missões ultramarinas… Mas algum cansaço da leitura será logo obviado, se olharmos estes resumos documentais como o que eles principalmente são, quais indícios seguros da vida da Igreja nas ilhas e na costa de África, como ela se processou em tempos decisivos. E a esta luz, a leitura torna-se interessantíssima, pelo muito que nos deixa entrever.

Na sua clássica e ainda prestimosa História eclesiástica de Portugal (última edição: Lisboa, Europa-América, 1994), Miguel de Oliveira não hesitou em escrever: “Por meados do séc. XVII, os soberanos tornam-se absolutos […]. O papa é geralmente posto à margem dos cálculos da política. A sua ação sobre o clero, cuidadosamente vigiada pelos governos, torna-se longínqua. O absolutismo reduz a Igreja a funções meramente decorativas. Mandam os reis no respetivo clero nacional, dispõem os benefícios e fomentam as doutrinas regalistas e estatistas, em detrimento da autoridade pontifícia” (p. 193).

Sem invalidar totalmente tais considerações, a historiografia subsequente tem-nas matizado muito, evidenciando tensões internas na Igreja e no Estado e muitas coincidências de agentes políticos e eclesiais, que não permitem sobrevalorizar tanto a um nem relativizar tanto a outra, nem considerá-los estáticos e facilmente definíveis do século XVII ao Liberalismo. No entanto, a iniciativa da Coroa em vários aspetos da vida interna da Igreja, da nomeação dos prelados ao exercício e defesa do padroado, são bem visíveis na documentação agora apresentada, realçando-se muito no conjunto. O mesmo se diga de outros pontos do trecho de Miguel de Oliveira, como o das “funções decorativas” que o catolicismo podia manter…

Mas 1820 abre o liberalismo português, que Miguel de Oliveira caracteriza assim, no que ao catolicismo em geral se refere: “A primeira [fase] decorre até 1870 (perda dos Estados pontifícios e queda do Império em França). É em nome da liberdade que se travam todas as batalhas, no campo político, económico e doutrinal […]. Nada é estável, porque tudo depende da alternativa dos governos, cada um dos quais tem o seu conceito de liberdade. No entanto, a situação da Igreja só externamente pode parecer inferior à do período absolutista. Internamente, a Igreja revigora-se. Surge um movimento de reação que leva os católicos mais eminentes pelo saber a contribuírem com seus escritos para a defesa e propagação da Fé. […] Desde 1870, desenvolve-se a fase do laicismo. Apesar de todos os males, as Constituições liberais dos antigos países católicos consideravam o Catolicismo ‘religião do Estado’. Os adversários da Igreja esforçavam-se por abolir esse ‘odioso privilégio’. […] O que pretendem é expulsar a Igreja da vida pública, eliminar toda a ideia religiosa e construir uma sociedade nova completamente secularizada – a sociedade laica” (p. 225).

Também aqui, relativizando algumas observações, temos de valorizar certos pontos. É verdade, por exemplo, que o primeiro liberalismo manteve o caráter oficial do catolicismo português e é verdade que o republicanismo se lhe opôs. É verdade que o movimento católico português, do século XIX para o XX, aumentou o protagonismo laical, que teve outra presença na sociedade e na própria Igreja e que esta, sendo a mesma, teve de se posicionar doutro modo na relação com o Estado…

Mas, se evoco estes tópicos do mais clássico e divulgado dos nossos manuais de história da Igreja, é porque, ao ler as mais de mil páginas do 1º volume da obra agora apresentada, me lembrei repetidamente deles e os vi de algum modo evidenciados nos resumos documentais. Passo a ilustrá-lo, nalguns casos que valem por muitos mais:

No documento 39, página 49, de 29 de setembro de 1813, D. Joaquim Menezes de Ataíde, Vigário Apostólico do Funchal, informa que “suspendera a visita pastoral por motivos de saúde, mas mesmo assim crismara quase sete mil pessoas, confessara e dera também a comunhão”. Até aqui, nada que um prelado zeloso e “tridentino” não pudesse e devesse fazer, nas ilhas ou no continente. Mas, logo a seguir e sete anos antes da revolução liberal, o prelado já nos dá outras notas, doutro tempo que chegava: “Refere apreciar a religiosidade das pessoas do campo em oposição à cidade, onde diz que residem os libertinos e os maçons”.

A terminologia é quase estereotipada, depois da Revolução Francesa. Porém, mesmo sendo uma generalidade, já indicia alguma coisa… Aliás, talvez sete anos antes, em carta dirigida ao Núncio por um Franciscano (documento 1131, página 285), já se acusavam “Frei José Pestana e Frei João Nepomuceno de terem um comportamento despótico e serem inimigos da religião, por serem maçons”. Um problema interno à Igreja, portanto…

Dissensões internas – reais ou alegadas – que, em vésperas do nosso liberalismo, podiam ir ainda mais longe, até à própria apostasia, como parece ser o caso relatado no documento 1259, página 313, uma carta de João José da Cunha Ferraz ao Delegado Apostólico em Lisboa, datada de 30 de julho de 1819, em Angra (Açores). O autor “refere o seu desgosto em ver um português oriundo do continente recusar receber os sacramentos e confessar-se na hora da morte, apesar de ser intimado de que não teria sepultura eclesiástica”.

Tempos menos unívocos, aqueles, interrompendo aqui e ali a cadência documental agora editada. Vinte e cinco anos depois, já se trata de concorrência confessional propriamente dita, como no documento 1495, página 367, um rascunho de ofício do Internúncio ao Bispo do Funchal, de 27 de agosto de 1844, em que “o autor manifesta tristeza com os relatos do Prelado [D. José Xavier de Cerveira e Sousa] sobre o estado da sua Diocese, que se debatia com falta de sacerdotes para obstarem ao progresso da propaganda protestante [de Roberto Kalley]”.

Quatro anos depois, o documento 1509, página 370-371, abre-nos o pano sobre outra zona e circunstância, de problemática persistente ao longo do século. Trata-se de Angola, cuja implantação eclesial era e seria incipiente, bem como atribulada pela suspeita governamental em relação a missionários estrangeiros. Em ofício do Cardeal Soglia Ceroni para o Internúncio em Lisboa, de 18 de julho de 1848, o purpurado “menciona a vacância da igreja de Angola […] e o quadro desolador da Diocese, que sendo vastíssima não tinha mais do que nove sacerdotes […], faltando doutrina e havendo corrupção de costumes, tentando-se instalar uma missão de Padres Capuchinhos [estrangeiros] naquela Diocese. Não podendo permitir por mais tempo a vacância da Diocese, o Santo Padre pediu à Rainha de Portugal que apresentasse o mais rápido possível um eclesiástico idóneo e digno para ocupar aquela sede vacante”.

Tocava-se aqui num ponto melindroso, como era o da indicação governamental de nomes para o episcopado. O cardeal requeria alguém “idóneo e digno”, mas como se definiam tais apelativos? No ano seguinte, o documento 1525, página 374, de 5 de abril de 1849 – depois da guerra civil da Patuleia e no fim do cabralismo -, dá-nos um critério possível, pela pena do cónego lisboeta Manuel José Fernandes Cicouro, “informando [o Internúncio] ser o Chantre e Vigário Capitular de Bragança, Manuel Martins Manso [apresentado para a Diocese do Funchal], uma pessoa de comportamento regular e irrepreensível, não se envolvendo com partidos políticos nem com lutas pelo poder”.

Por vezes surgem indícios de que aquelas “funções meramente decorativas”, que Miguel de Oliveira atribuía à Igreja no período anterior, podiam permanecer em meados de oitocentos. O documento 1674, página 403-404, resume um ofício de D. Joaquim Moreira Reis, Bispo Eleito de Angola ao Internúncio, de 17 de julho de 1850, “pelo qual remetia um requerimento apresentado pelos Cónegos de Luanda […] em que solicitavam autorização do uso do roquete, embora já o praticassem há bastante tempo”. E o documento 1676, página 404, de 15 de julho de 1852 é um ofício do Cardeal Lambruschini para o Internúncio em Lisboa, “concedendo ao Bispo de Angola autorização para o uso de cinta e meias aos Cónegos da Sé de Luanda”.

De tudo um pouco se pode entrever, lendo com atenção este indispensável volume. Seleciono apenas mais dois documentos, já muito perto da implantação da República. O documento 4952, página 1039, é um ofício de Monsenhor António Maria Ferreira, Vigário Capitular de Angra, datado de 29 de junho de 1910 e dirigido ao Núncio, “prevenindo-o para a eventual apresentação, por parte do Governo, do Deão José dos Reis Fisher para Bispo da Diocese de Angra”. – E por que o faz? “Pelo facto de o Deão se recusar a seguir o movimento nacionalista, ficando politicamente ligado ao Governo do Conselheiro Teixeira de Sousa”. Tudo muito significativo, tanto mais que, de seguida, sugere ao Núncio que consulte três jesuítas do mesmo parecer… Eis como um documento entre tantos revela uma delicada conjuntura, em que o catolicismo português estava longe de ser unívoco no fim da Monarquia. Por um lado, os que defendiam que toda a força católica devia apoiar o Partido Nacionalista, opositor do último governo de D. Manuel II: assim pensavam o subscritor e os seus amigos jesuítas. Por outro, os eclesiásticos ou leigos que tinham outros posicionamentos, como era o caso de Reis Fisher e tantos mais, distinguindo a causa católica da nacionalista.

Mas a complexidade católica da altura revela-se noutros pontos, que afloram na documentação agora disponível. E um deles, da maior relevância, é o protagonismo laical, que podia ser de primeira plana e determinante até. É o caso do Conde de Samodães, reconhecido líder do movimento católico, presença constante na vida eclesial portuguesa por décadas inteiras. O documento 5199, página 1082, é uma carta do Conde de Samodães ao Núncio, de 5 de setembro de 1907, “comunicando o pedido do Cónego [José Alves] Correia da Silva para que lhe escrevesse de modo a não apoiar a sua nomeação para Bispo de [Angola e Congo]”. Pois bem: o documento seguinte é outra carta do mesmo Conde, de 4 de dezembro seguinte, agradecendo ao Núncio “o facto de não ter insistido para o Cónego [José Alves] Correia da Silva aceitar a Mitra de Angola e Congo, tendo em conta os muitos e bons serviços que fazia na Diocese do Porto”.

Em suma: analisada atentamente, esta preciosa documentação evidencia ao leitor um dinamismo eclesial bem maior e mais complexo do que se repararia sem ela. Por isso agradecemos vivamente a quantos a organizaram e agora a oferecem à historiografia e à cultura.

D. Manuel Clemente, Reitoria da Universidade de Lisboa, 3 de outubro de 2011

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