Anúncio, testemunho e denúncia

Acácio Catarino

A denúncia perante a injustiça faz parte da responsabilidade social e política de todos os cidadãos. Para os católicos, é particularmente significativo, a este propósito, o que João Paulo II referiu no nº. 41 da encíclica «Sollicitudo Rei Socialis»: «o exercício do ministério de evangelização (…) compreende também a denúncia dos males e injustiças. Mas convém esclarecer que o anúncio é sempre mais importante do que a denúncia, e esta não pode prescindir daquele (…)». O anúncio inclui especialmente «o ensino e a difusão da doutrina social da Igreja» (DSI), enquanto parte da «missão evangelizadora», bem como o «empenhamento pela justiça» (ibidem). Mais precisamente, no que se refere aos leigos: é sua «tarefa própria anunciar o Evangelho com um exemplar testemunho de vida (…) nas realidades temporais (…)» (Compêndio da DSI, nº. 543). Na verdade, «o estar e agir no mundo são, para os fieis leigos, uma realidade, não só antropológica e sociológica, mas também e especificamente teológica e eclesial» (João Paulo II, «Christifideles Laici», nº. 15). A denúncia perde credibilidade quando se dissocia do anúncio e quando este se dissocia do testemunho.

 

Requisitos da denúncia

Com base nestas orientações, a denúncia implica vários requisitos. O primeiro é, naturalmente, o conhecimento da doutrina em que se baseia, em particular a doutrina social da Igreja; sem este conhecimento, acha-se empobrecido o quadro de valores defendidos. O segundo requisito é a inserção nas realidades terrestres; sem esta inserção, fica prejudicada a correspondência à realidade. O terceiro requisito é o espírito de cooperação na procura de soluções para os diferentes problemas, evitando a sobranceria moral; sem esta cooperação, fica esvaziado o compromisso na luta pela justiça. O quarto requisito é o respeito pelo pluralismo, na interpretação da doutrina, bem como na leitura da realidade e no tipo de cooperação a prestar; sem o respeito pelo pluralismo, a suposta denúncia da injustiça pode saldar-se pela defesa de interesses próprios, de natureza partidária ou outra. O último requisito é o testemunho, pessoal e coletivo, daquilo que se defende nas palavras; sem o testemunho, fica desacreditada a denúncia, e o seu efeito pode ser contraproducente.

No atual período de crise profunda, está muito em voga os cristãos sentirem-se no direito-dever de denunciarem sistematicamente os males que vêm acontecendo no mundo político-social. Alguns misturam de tal maneira a orientação religiosa com as suas opções político-partidárias que chegam a considerar estas como prolongamento da própria doutrina da Igreja. Daí até à contestação do pluralismo, em nome de uma orientação única, monolítica – a sua – vai apenas um passo, que chega a entrar na esfera da teocracia (cf. «Gaudium et Spes», nºs. 43 e 76).

 

Testemunho cristão?

Justifica-se perguntar: os cristãos, particularmente os leigos, são um testemunho vivo de coerência? – A resposta dificilmente poderá ser afirmativa, se tivermos em conta os requisitos acima delineados. Mesmo admitindo a retidão exemplar dos cristãos na sua vida pessoal, familiar, profissional, cívica e nas restantes dimensões, subsistem, pelo menos, três insuficiências que reduzem seriamente a sua credibilidade sociopolítica: uma insuficiência respeita à ação social de serviço, a favor das pessoas mais necessitadas; a outra ao pluralismo, dentro e fora da Igreja; e a terceira ao desenvolvimento local.

No que respeita à ação social de serviço, baseada em inúmeras instituições eclesiais de alto mérito, verifica-se que: na maior parte das paróquias, não se criaram grupos de ação social, também chamados sociocarita-tivos; a maior parte dos que foram criados não integra representantes das várias zonas da paróquia, lesando, em simultâneo, o princípio da proximidade (cf. a Parábola do «Bom Samaritano») e o da universalidade; não se elaboram estatísticas dos casos sociais atendidos; e, consequentemente, não se procede à análise consistente do conjunto de casos atendidos no país, em ordem à intervenção sociopolítica, ou outra, na procura das respetivas soluções. A Cáritas Portuguesa e a Sociedade de S. Vicente de Paulo vêm desenvolvendo um trabalho sistemático neste domínio que, por enquanto, ainda não teve o acolhimento necessário.

No que respeita ao pluralismo, chega a ser chocante o nosso contratestemunho. Contestamos os partidos políticos e os parceiros sociais (sindicais e patronais), por não se entenderem uns aos outros, não saberem dialogar, viverem sempre em luta; por outro lado, recusamo-nos a esse mesmo diálogo, no interior da Igreja, como se fosse impróprio e como se nos bastasse defender os bons princípios, deixando para outrem a sua aplicação, mais ou menos tutelada eticamente por nós. Invocam-se vários argumentos a favor desta demissão coletiva: invoca-se, em especial, que não compete à Igreja a realização, nem sequer a proposta, de «soluções técnicas», ou concretas; invoca-se, paradoxalmente, o pluralismo entre os cristãos, como se o pluralismo implicasse a renúncia ao diálogo e à procura das convergências possíveis; e também se invoca o risco de retorno à ideia de «partido católico». Ora, ao contrário destes receios, o diálogo social e político, no interior da Igreja, não visaria a elaboração de programas políticos, mas sim: o reforço e aprofundamento da nossa identidade comum; a comunhão fraterna de diferenças e de divergências; o apoio de retaguarda aos cristãos mais comprometidos nas relações laborais e políticas; o respeito mútuo; e a procura dos entendimentos possíveis, não pondo sequer a hipótese de eles serem conseguidos em todos os domínios. Enquanto não desenvolvermos, entre nós, o diálogo social e político, não testemunhamos a nossa fraternidade e comunhão. Pelo contrário, deixamos bem visível que nos encontramos tão divididos como os outros cidadãos, e não fazemos o que, melhor ou pior, eles vão fazendo, no Parlamento, na concertação social, na negociação coletiva; para cúmulo, cada uma das nossas correntes sociopolíticas vai-se apresentando como expressão genuína, e tendencialmente única, da doutrina social da Igreja (cf., os referidos nºs. 43 e 76 da «Gaudium et Spes»). Esta última pretensão é tanto mais grave quanto muitos cristãos, que a protagonizam, nem sequer dispõem de um conhecimento mínimo daquela doutrina.

No que respeita ao desenvolvimento local, verifica-se uma quase omissão sistemática, da parte da generalidade dos cristãos e das respetivas comunidades. Ocorreram, nos anos sessenta do século passado, algumas experiências significativas de desenvolvimento comuntário e ocorrem, atualmente, algumas participações relevantes em processos de desenvolvimento local. No entanto, é baixíssimo o número de paróquias envolvidas e, por isso, desperdiça-se, quase por todo a parte, este meio fundamental, e indispensável, de atuação nas causas dos problemas sociais e económicos. A lacuna configura-se mais negativa porque, a partir da encíclica de Paulo VI, «Populorum Progressio», 1967, existem orientações claras neste domínio; paradoxalmente atrofiámos, a partir da encíclica, uma linha de orientação experimentada anteriormente, entre nós e noutros países.

 

Autojustificação infundada

Alguns cristãos leigos vêm desculpando estas omissões coletivas, com base na falta de orientações da Hierarquia. Seja qual for o juízo que façamos acerca de tal desculpa, impõe-se reconhecer que ela própria denota uma grave demissão do laicado. Na verdade, a responsabilidade própria dos leigos, na sociedade e na economia, foi claramente defendida no Concílio Ecuménico Vaticano II (cf., especialmente a «Gaudium et Spes», nº. 43, e o Decreto «Apostolicam Actuositatem», nºs. 7, 13 e 24); e foi reforçada por Paulo VI, na «Populorum Progressio». Nesta encíclica, afirma-se com alguma veemência, no nº. 81: «pertence aos leigos, pelas suas livres iniciativas e sem esperar passivamente ordens e diretrizes, imbuir do espírito cristão a mentalidade e os costumes, as leis e as estruturas da sua comunidade de vida»

Em suma, e a concluir: não nos dispensemos de fazer as denúncias necessárias. Mas saibamos também denunciar-nos a nós próprios, saibamos fazer o anúncio adequado e dar um testemunho convincente; incluindo o testemunho da fraternidade na divergência, na procura das convergências possíveis, e na aceitação singela de que estas, muitas vezes, não são possíveis. Daí não decorre qualquer desânimo na construção de um mundo melhor; decorre, sim, a consciência de que ele se constrói no pluralismo e de que só atinge a sua plenitude na bem-aventurança eterna (cf. «Gaudium et Spes», nºs. 39-40 e 45).

Acácio F. Catarino, vogal da Comissão Nacional Justiça e Paz

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