Uma vida intemporal, uma mensagem para hoje

Paula Cristina Martins, Pró-Reitora da Universidade do Minho

Onde houver o bem a fazer, que se faça

O tempo histórico em que uma vida se desenrola constitui o cenário de um argumento no qual cada um é chamado a participar, construindo coletivamente a narrativa em curso, feita de uma constelação complexa de ações e relações, de discursos e sentidos múltiplos, traduzindo esse tempo numa combinação singular que o configura como “o nosso tempo”. Tão diferente dos que o precederam e certamente dos que virão, mas simultaneamente tão igual, pleno de contradições e adversidades, de avanços e retrocessos, de magníficas realizações e terríveis acontecimentos, é, em qualquer caso, um tempo feliz, porque é o que nos é dado viver, o que é habitado pela nossa existência, o nosso lugar no mundo.

E o papel que temos neste filme, de protagonistas do quotidiano ou figurantes da nossa própria vida, de heróis de causas comuns, personagens redondas ou planas, principais ou secundárias, é-nos dado por um guião que inevitavelmente reescrevemos ou, pelo menos, interpretamos de forma original e única.

Marc Augé, o teórico dos “não-lugares”, refere-se aos espaços impessoais e anónimos que marcam os quotidianos contemporâneos, relativamente aos quais frequentemente os indivíduos se sentem mais espetadores do que atores; desviando o seu olhar e assim desqualificando os lugares, esvaziando-os de conteúdo e sentido.

Tomando emprestada a imagem, certamente numa generalização pouco rigorosa, muitas pessoas escolhem tornar a sua vida num não-lugar, uma espécie de passagem que não marcam indelevelmente com o cunho da sua presença, que não é significativa nem para si próprios nem para os outros, vivendo, nas palavras de José Régio, com o mesmo sem-vontade com que rasgaram o ventre de suas mães. Reclamando o ideal, rejeitam o real, declinando o seu papel de construtores do presente e arquitetos do futuro.

Não foi assim a Irmã Maria Clara. Clara não foi aí. Animada por uma convicção íntima que concretizou de forma persistente e audaz, contra toda a evidência, mobilizada por uma inexplicável obstinação que a levou além do que prometia a força humana, a Irmã Maria Clara teve na sua fé a alavanca que lhe permitiu mover obstáculos, contornar as dificuldades, converter as ameaças em oportunidades. Face ao que parecia impossível não desistiu. Tomou nas suas mãos o possível e tornou o possível real. Fez da fraqueza força e projetou o passado em que viveu no presente que hoje celebramos pelo dinamismo de futuro de que o inseminou. Vivendo, multiplicou a Vida, projetou o seu pensamento, prolongou a sua ação e imprimiu na sua descendência essa incansável motivação chamada fé e essa identidade própria, traduzida no carisma diferenciador da hospitalidade.

Palavras estranhas em tempos diferentes! A hospitalidade, essa qualidade tecida por uma atenção qualificada ao outro, pela descentração de si próprio, pela disponibilidade total e valorização genuína da pessoa que passa por nós. A hospitalidade é a expressão festiva de estarmos vivos, juntos, de nos termos cruzado na imensa improbabilidade do encontro. Constituindo-se como um universal da relação, a hospitalidade não é instrumental; é gratuita, espontânea, mas consistente e ancorada numa atitude de princípio e consciência para com todos. Ser hospitaleiro é dizer por palavras e ações alegro-me com a tua vida ou, como preferem os muçulmanos, a minha casa enche-se de luz com a tua presença.

Obviamente, não sou contemporânea da Irmã Clara, mas vivi na sua casa, convivi com as suas e minhas irmãs, aprendi com elas a simplicidade essencial e o acolhimento universal, que se diz em várias línguas e espaços da geografia do mundo, por gentes de cor diferente, congregadas na mesma causa: Onde houver o bem a fazer, que se faça”. É assim que ensinam a viver as Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, celebrando o caráter e o legado da sua fundadora, que lhes deu um rosto, um gesto, uma presença, um horizonte e uma palavra-silêncio que traduz a contemplação-ação, matriz desta congregação.

Quem assim transcende o tempo e o espaço merece certamente ser elevado à condição excecional de referência e modelo de vida. Se do século XIX até ao século XXI, pelo exemplo e testemunho das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição, posso afirmar a tua vida fez a diferença na minha vida, há certamente aqui algo de prodigioso que importa relevar e que reflete a pertinência e atualidade da vida e obra de uma mulher do século XIX.

Por isso, é com imensa alegria e um sentimento de profunda gratidão que me uno à ConFHIC no dia 21 de maio – dia da beatificação da Irmã Clara – para festejar o reconhecimento universal do dom para a humanidade do carisma intemporal de que são felizes mensageiras.

Paula Cristina Martins, Pró-Reitora da Universidade do Minho

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