A Páscoa de Jesus, disponível primavera do mundo!
Amados irmãos, especialmente vós os catecúmenos; e também vós, os primeiros que no Porto concluís nesta Vigília um longo e exigente neocatecumenado. Mas o que digo é para todos, os que renovamos as promessas batismais:
Renovamos ou, melhor dizendo, renovamo-nos, num Batismo que jamais termina, porque de filiação divina se trata.
Todos sabemos que assim é, pois o nosso Pai é o do “filho pródigo”, que não descansa senão quando regressamos (cf Lc 15, 11 ss); ou melhor, progredimos, se nunca nos afastarmos da intimidade paterna, em autêntica vida cristã, isto é, filial.
Depois do solene Precónio, convidei-vos a escutar atentamente as sucessivas Leituras bíblicas que nos evocaram etapas fundamentais da história da salvação. Relembro as palavras admonitórias que vos dirigi, uma vez que já prometiam tudo o que ouvimos depois e certamente guardamos no coração: “Irmãos caríssimos: Ouçamos agora, de coração tranquilo, a palavra de Deus. Meditemos como Deus outrora salvou o seu povo e como, na plenitude dos tempos, enviou Jesus Cristo, nosso Salvador. Oremos para que Deus realize esta obra pascal de salvação e seja consumada a redenção do mundo”.
Grande tesouro é a Palavra de Deus, que O diz a Ele e nos diz a nós, no alegre encontro da nossa vida com a vida divina, finalmente possível. Alegria que sentiu certo homem, ao descobrir um tesouro escondido num campo. – E o que fez de seguida? Voltou a escondê-lo e, cheio de alegria, foi, vendou tudo o que possuía e comprou o campo (cf. Mt 13, 44).
Por isso aqui viemos e assim permanecemos nesta luminosa vigília, atraídos por um Deus cuja palavra anima e realiza em nós o que havemos de ser, e sempre mais: filhos de Deus, finalmente assimilados por Jesus Cristo, Palavra do Pai, plena de Espírito.
Dizia-vos atrás, na admonição retomada: “Ouçamos agora, de coração tranquilo, a palavra de Deus”. E assim sucedeu nesta catedral, como noutras igrejas da cidade e do mundo, em impressionante contraste com as “animações” e ruídos de tantos outros lugares.
– Não vos impressiona isto mesmo, caríssimos irmãos? Há de impressionar decerto, por também comprovar a novidade de Jesus e a sua ressurreição. Pois é notável, prodigioso até, que, não faltando ofertas e possibilidades de passar esta noite de modo mais ligeiro e distraído, a preferistes passar aqui e desta maneira.
Em autêntica vigília, porque despertos e atentos à Palavra ouvida e aos sinais do Ressuscitado. Sinais, repito, por Ele mesmo emitidos, na comunicação certa da sua vida oferecida, tudo qualidades exclusivas de quem está vivo e muito mais difusivo do que nós o conseguimos ser. Na verdade, falou-nos aqui, ecoando a Palavra pelas naves desta igreja; e ao mesmo tempo falou, em centenas de línguas por esse mudo além, em inumeráveis vigílias desta noite singular.
Mas convidei-vos a escutar “de coração tranquilo”. E de novo pergunto: – Como podia tal acontecer, como realmente aconteceu, se a nossa atenção é fugidia e a inquietação mais que provável? Aconteceu, porque, como a discípula de Betânia – e ao contrário da sua “inquieta” irmã -, já sabemos que nada importa tanto como escutar a Palavra, sentados aos pés de Jesus. É essa a “melhor parte”, que não nos será tirada e nesta vigília nos foi abundantemente oferecida (cf. Lc 10, 38 ss).
Escutar a Palavra, rememorando nela a presença do Deus vivo e vivificante, é experiência certa de ressurreição também. Pronunciada ultimamente em Cristo, a Palavra está plena de vida inextinguível: “as palavras que vos disse são espírito e vida” (Jo 6, 63). É esta Palavra que nos levanta e ressurge, em experiência atual que muito mais indicia.
– Muito mais? Sim, caríssimos irmãos, e muitíssimo mais. Como prometia a referida admonição, a Palavra que escutámos lembrava momentos marcantes da vida do povo antigo, e como Deus o salvara. Mas tudo apontava para a “plenitude dos tempos” e a última palavra divina, em Jesus pronunciada.
Sabemo-lo desde a primeira geração cristã. Escreveu-o um primeiríssimo cristão, em dois versículos que quase resumem a Bíblia toda: “Muitas vezes e de muitos modos falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo” (Heb 1, 1- 2).
– Compreendeis isto, caríssimos catecúmenos? Compreendemo-lo nós todos, amados irmãos e irmãs? Deus “diz-se” e cria o mundo; e no mesmo dizer-se nos recria e conclui, na Palavra viva e vivificante que em Jesus tem som, gesto e figura. Toda a história bíblica que fomos ouvindo esta noite se define em relação, progressivamente definida na profecia e agora plenamente oferecida, na realidade divina e humana de Jesus de Nazaré, Cristo para sempre.
Que a comunicação divina se conclua assim, dá realmente muito que pensar… Mas não pensemos abstratamente, antes agradecidamente, pois só por isso estamos aqui. À beira do batismo ou já dele revivendo, quantos aqui estamos seguimos o caminho do primeiro Apóstolo, no capítulo sexto do Evangelho de João:
Da multiplicação dos pães, ao discurso do “pão vivo”na sinagoga de Cafarnaúm, percebemos enfim que o alimento é o próprio Cristo, penhor seguro da ressurreição final: “Quem realmente come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu hei de ressuscitá-lo no último dia” (Jo 6, 54). Absolutamente ao contrário de tanta palavra oca que nos esvazia a alma, Jesus é tão substancial que nos garante a vida. Mais adiante, ouvimos a exclamação de Pedro, que aqui inteiramente compartimos: “A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna!” (Jo 6, 68).
Tanto acontecimento vivido e lembrado, da criação do mundo à criação do povo, da libertação do Egito à profecia de Cristo… E na sua presença ressuscitada O acolhemos nós agora, para que seja vida das nossas vidas, eternamente sustentadas: “Assim como Pai que me enviou vive e Eu vivo pelo Pai, também quem de verdade me come viverá por mim” (Jo 6, 57).
Mas a admonição que retomei terminava assim: “Oremos, para que Deus realize esta obra pascal de salvação e seja consumada a redenção do mundo”. São palavras belas e muito consistentes. Trata-se de efetivar a Páscoa nas nossas vidas, permitindo a Cristo que nos realize em Deus.
Ora, caríssimos irmãos e irmãs, entreveis o que isso mesmo significa: nada menos do que passar duma existência nossa, demasiado nossa, para a existência de Cristo em nós, morrendo para quanto não seja seu e aí mesmo renascendo com Ele para o Pai e para todos, no impulso novíssimo do Espírito. Disse-o São Paulo, na Epístola: “Todos nós que fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte. Fomos sepultados com Ele pelo Batismo na sua morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova”.
E assim será “consumada a redenção do mundo”. Deixai-me acentuá-lo, para concluir do modo mais exigente e oportuno. Exigente, porque contraria em absoluto a nossa patética autossuficiência; oportuno, no presente acréscimo de tantas expectativas frustradas.
Aceitar a “redenção” de Cristo é confessar a nossa incapacidade de sermos bastantes. É também deixarmos de olhar Deus e os outros como concorrentes, sobretudo quando Deus é Pai e, em Cristo, é um outro para nós e a nosso favor. Ele mesmo que, “por nós homens, e para nossa salvação desceu dos Céus”. É aceitar viver de Cristo e da vida que nos recuperou, anulando a distância que nos separara de Deus. É aceitarmos a sua presença em nós, na união do Espírito, como Ele aceitou a nossa humanidade, sofrendo-a e salvando-a, na reconciliação com o Pai.
Oportuníssimo é, por fim, tudo isto, caríssimos irmãos e catecúmenos, pela certeza que temos da ressurreição de Cristo, abrindo caminhos de recomeço e vitória. Mas unicamente a seu modo, continuando ainda que outros desistam, acreditando ainda que outros desconheçam ou descreiam. Continuaremos e acreditaremos nós, no ânimo redobrado do Espírito. Continuaremos, por nós e por eles. Ao modo de Deus e da Páscoa de Jesus, disponível primavera do mundo!
Sé do Porto, 23-24 de abril de 2011
D. Manuel Clemente, Bispo do Porto