Esta celebração eucarística, na tarde de Quinta-feira Santa, introduz-nos no ambiente de intimidade do Cenáculo e faz-nos reviver o impressionante gesto de Jesus a lavar os pés aos apóstolos, e a instituição da Eucaristia e do Sacerdócio. Igualmente a comunidade paroquial da Sé celebra neste Solene Pontifical a sua Comunhão Pascal. É o encontro pessoal com o Senhor, que se nos dá no Pão sacramentado, “onde está presente e próximo até se fazer alimento para o nosso caminho” e nos comunica, quando devidamente preparados, a plenitude da Graça que a Sua Paixão, Morte e Ressurreição nos mereceu, para que, como discípulos seus, testemunhemos na nossa vida as suas atitudes e os seus sentimentos. Jesus, ao instituir a Eucaristia, criava o memorial do Sacrifício, expressão máxima do Seu amor, que iria ser consumado na morte da Cruz, e dava-nos a possibilidade de o vivermos permanentemente. É a realidade que estamos a celebrar.
A comunhão Pascal não pode ser o cumprimento meramente formal duma tradição a que por certo sentimento de piedade ou nostalgia nos consideremos ligados. A Comunhão Pascal deve ser a afirmação consciente e comprometida da nossa fé. Não podemos prestar uma atenção menos empenhada à pertinente e urgente advertência do Santo Padre aos Bispos portugueses em Fátima na tarde do passado dia 13 de maio: “Os tempos que vivemos exigem um novo vigor missionário dos cristãos, chamados a formar um laicado maduro, identificado com a Igreja, solidário com a complexa transformação do mundo. Há necessidade de verdadeiras testemunhas de Jesus Cristo, sobretudo nos meios humanos onde o silêncio é mais amplo e profundo. […] Não faltam crentes envergonhados que dão as mãos ao secularismo, construtores de barreiras à inspiração cristã.” E ainda hoje de manhã, na Missa Crismal na Basílica de S. Pedro, denunciava Sua Santidade que o Ocidente, os países centrais do cristianismo se mostram cansados da sua fé, enfastiados da sua própria história e cultura, já não querem conhecer a fé em Jesus Cristo. Passa por estas fortes interpelações de Bento XVI a seriedade da nossa Comunhão Pascal ?
Na Audiência Geral da semana passada chamava a atenção, o mesmo Pontífice, recordando o Concílio Vaticano II, para a chamada universal à santidade, afirmando as próprias palavras da Constituição Lumen Gentium: “Os seguidores de Cristo, que Deus chamou e justificou no Senhor Jesus, não pelos méritos deles mas pelo Seu desígnio e Sua graça, foram feitos, no Batismo da fé, verdadeiros filhos de Deus e participantes da natureza divina, e por isso mesmo verdadeiros santos. Devem, portanto, com a ajuda de Deus, conservar e aperfeiçoar na sua vida a santidade que receberam.”
Vale a pena lembrar novamente as orientações sempre atuais do próximo Beato, João Paulo II, na Exortação Apostólica para o novo milénio, partindo também da Constituição Lumen Gentium: “ «Os cristãos de qualquer estado ou ordem são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade». […] Se o Batismo é um verdadeiro ingresso na santidade de Deus através da inserção em Cristo e da habitação do Seu Espírito, seria um contrassenso contentar-se com uma ética minimalista e uma religiosidade superficial. (…) Implica colocar na sua estrada (do batizado) o radicalismo do sermão da Montanha: Sede perfeitos, como é perfeito vosso Pai celeste.”
É com este espírito e propósito que vamos fazer a nossa comunhão pascal?
Mas o Santo Padre, na reflexão da Audiência Geral a que faço referência, propõe-nos uma série de propósitos que me apraz reproduzir: “Todo o fiel deve escutar de bom grado a Palavra de Deus e, com a ajuda da Sua Graça, cumprir com obras a Sua vontade; participar frequentemente nos sacramentos, sobretudo na Eucaristia e na santa liturgia; aplicar-se constantemente à oração, à abnegação de si próprio, ao serviço ativo dos irmãos e ao exercício das virtudes.”
E Sua Santidade é ainda mais preciso. Faz a pergunta “Que é essencial?” E responde de imediato: “Essencial é não deixar nunca um Domingo sem um encontro com Cristo Ressuscitado na Eucaristia; isto não é um peso acrescentado, mas uma luz para toda a semana. Não iniciar nem acabar nunca o dia sem pelo menos um breve contacto com Deus. E, na estrada da nossa vida, seguir os «sinais de trânsito» que Deus nos comunicou no Decálogo lido com Cristo que é simplesmente a explicitação do que é a caridade em determinadas situações. Parece-me que seja esta a verdadeira simplicidade e grandeza da vida de santidade.”
É que, utilizando novamente o pensamento do Concílio, a santidade a que somos chamados, outra coisa não é que a caridade plenamente vivida. E a caridade é doação, é partilha, é serviço humilde.
Fixemo-nos agora por momentos no gesto de Jesus, tão expressivamente e com tanta riqueza de pormenor, descrito por S. João, como ouvimos há momentos, e que a seguir poderemos ver na encenação que vai ter lugar de acordo com as rubricas litúrgicas. Bento XVI, no belíssimo livro com que recentemente nos brindou, Jesus de Nazaré – da Entrada em Jerusalem até à Ressurreição, comenta o que aconteceu. “Jesus prestou aos seus discípulos o serviço de escravo, «esvaziou-se a Si mesmo». Aquilo que diz a Carta aos Filipenses, no seu admirável hino cristológico – isto é, que, num gesto contrário ao de Adão, que tentara com as próprias forças apoderar-se do divino, Cristo desceu da Sua divindade, tornando-se homem, «tomando a condição de servo» e fez-se obediente até à morte de cruz – tudo isto fica visível aqui num único gesto. Com um ato simbólico, Jesus ilustra o conjunto do Seu sacrifício salvífico. Despoja-se do Seu esplendor divino, ajoelha-se por assim dizer diante de nós, lava e enxuga os nossos pés sujos, para nos tornar capazes de participar no banquete nupcial de Deus.”
O comportamento do Senhor é o exemplo e a regra da convivência entre os discípulos: Se eu que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Como comenta porém Sua Santidade, “só se nos deixarmos sempre de novo lavar, «tornar puros» pelo próprio Senhor, é que poderemos aprender a fazer, juntamente com Ele, aquilo que Ele fez”. Sua Santidade explica: “A culpa precisa de confissão. Através da confissão, trazemo-la à luz, expomo-la ao amor purificador de Cristo. Na confissão, o Senhor lava sempre os nossos pés sujos e prepara-nos para a comunhão convivial com Ele.”
Foi a preparação próxima que certamente fizemos ao celebrar com as devidas disposições o Sacramento da Penitência. Em tempo de crise extrema em que nos encontramos, voltados para soluções económicas que oxalá tenham êxito, inquietos com o futuro, diante do espectro do desemprego crescente, é necessário que todos reconheçamos a urgência duma mudança pessoal e duma mudança coletiva. Podemos chamar-lhe conversão. Assistimos de há tempos para cá à insultuosa e agressiva culpabilização sempre dos outros, quando nesta situação crítica e delicadíssima, só a convergência poderá ser portadora de esperança. Queremos uma convergência que respeite a justiça distributiva e não carregue apenas os ombros dos que mais precisam, deixando incólumes escandalosas assimetrias económicas: os que esbanjam e aqueles a quem falta o mínimo para sobreviver. Falta-nos a coragem de mutuamente nos lavarmos os pés, descendo do nosso orgulho, para que com humildade construamos empenhadamente um futuro mais solidário. Deixemos de ver-nos como inimigos, e, apesar de divergências que são reais, encontremo-nos como companheiros e irmãos que em consenso, também porque somos cristãos, hão de erguer a comunidade a que com amor pertencemos, o nosso país, Portugal.
Que a Senhora da Assunção, Padroeira desta Sé e desta paróquia, através da Comunhão Pascal do Seu Jesus, nos aproxime como irmãos.
D. Jacinto Botelho, Bispo de Lamego