Homilia do cardeal-patriarca de Lisboa na celebração da Paixão do Senhor

 A morte de Jesus. A vida exprime-se no amor”

 

1. A Liturgia deste dia celebra, com grande densidade e recolhimento, aquele que é o momento decisivo da história da humanidade. Todo o seu destino, as suas falhas e fraquezas, os seus anseios e projetos, são assumidos por aquele Homem, Jesus de Nazaré, que aceita morrer para que os homens possam viver. A Liturgia põe diante de nós o problema da atualidade da morte de Cristo. Acredito que, hoje, Cristo oferece a vida por nós, por todos os membros da humanidade? Ou a morte de Cristo é só um acontecimento do passado? Acreditamos que, ainda hoje, Cristo assume em Si o destino da humanidade?

É impossível penetrar no sentido da morte de Cristo, se não percebermos que o amor pelos outros é a mais bela expressão da vida. Viver é ser para os outros e com os outros. Jesus tinha pregado isso no seu Evangelho do Reino. “Não há maior prova de amor do que dar a vida por aqueles que se amam. Quem aceitar perder a vida, ganhá-la-á”. Esta perspetiva generosa da vida, que se pode exprimir na própria morte, não é fácil. Intuem-na aqueles que, na vida, experimentaram um amor autêntico, que os leva a sacrificar-se por aqueles que amam. Mas o que é mais comum é a defesa da própria vida como autofruição, que leva, tantas vezes, a sacrificar os outros à própria maneira de viver.

A história de Israel e mesmo a de outras religiões e civilizações estão repletas deste conceito de “substituição vicária”. Era princípio absoluto de que todo o mal devia ser expiado e restabelecida a justiça. Assim, introduz-se o hábito de que, quando não se conseguia que o culpado expiasse as suas culpas, ele era substituído por outra pessoa, ou por um animal na liturgia de Israel. Os profetas denunciam essa prática; no entanto ela manteve-se. Além de ferir, de outro modo, a justiça, esse substituto não podia realizar a redenção do verdadeiro pecador. Mas como afirma Bento XVI, “a história inteira aparece à procura d’Aquele que pode verdadeiramente intervir em nosso lugar, que é verdadeiramente capaz de nos assumir em Si mesmo e, assim, de nos conduzir à salvação”[1]. No profeta Isaías, surge a figura do Servo Sofredor, que não se limita a substituir na pena, mas assume o destino de todo o Povo, toma sobre si a culpa de muitos, tornando-os justos (cf. Is. 53,11). Esta figura do Servo vai ser identificada com o Messias. Jesus, sem rejeitar o messianismo real, toldado por conotações políticas, assume-se como Messias nessa identificação com o Servo de Israel. Porque na sua encarnação uniu misteriosamente a Si todos os homens, pode sofrer pelos pecados de todos, como se fossem eles a sofrer e a justificar-se pelo sofrimento. Ao aceitar morrer sem pecado, redimindo os pecados dos outros, Ele afirma o sentido da vida como entrega a Deus, pelos outros.

2. Hoje contemplamos esta morte por amor. Isso não diminui em nada a sua densidade dramática, mas é a afirmação de que a vida é obediência a Deus e amor aos homens que precisam de redenção. Encontramos esta densidade de amor na oração de Jesus no Jardim das Oliveiras. Cristo, o Filho, exprime na realidade humana da morte o amor infinito do Pai por todos os homens que criou. No coração de Deus, a redenção é tão universal como a criação. E esse amor redentor só se pode exprimir, ser Palavra e ser anúncio, pelo seu Verbo, por Quem também tinha criado todas as coisas. Esta morte vicária é a verdadeira causa da encarnação do Verbo eterno de Deus.

No Jardim das Oliveiras Jesus prostra-se, de rosto por terra e reza: “Pai, se Tu o quiseres, afasta de Mim este cálice. No entanto, não se faça a Minha vontade, mas a Tua” (Lc. 23,42). Desta oração de Jesus, ressaltam três dimensões: Jesus trata Deus por “Abbá”, fala com Deus como uma criança fala com o seu querido pai. É uma oração cheia de confiança e de ternura filial. Exprime o conjunto de duas vontades: a vontade de Deus, que, como Filho de Deus, Ele comunga com o Pai, e a vontade humana, que, ao assumir a vontade de todos os homens, rejeita a oblação e o sofrimento. Cristo sente ao vivo o nosso drama na busca da obediência, da fidelidade e da santidade. Em Cristo só pode prevalecer a vontade que tem em comum com o Pai. Ressalta, depois, a dramaticidade do momento. Segundo São Lucas, o sofrimento foi tão intenso, que Jesus suou sangue. A fidelidade de Jesus nunca esteve em causa. Está patente, isso sim, a densidade da redenção.

3. Pode parecer chocante que Deus não tenha atendido a oração de Jesus. Mas o próprio Jesus não o desejava; Ele queria que a vontade do Pai se cumprisse. Ele sabia que o Pai o ouviria de outra maneira, ressuscitando-o dos mortos e começando n’Ele uma “nova criação”, uma nova etapa da vida. O autor da Carta aos Hebreus dá-nos a compreensão da Igreja primitiva sobre o que se passou no Jardim das Oliveiras: “Nos dias da sua vida terrena, apresentou orações e súplicas Àquele que O podia salvar da morte, com grande clamor e lágrimas, e foi atendido por causa da sua piedade” (He. 5,7). Deus Pai atendeu-O ressuscitando-O dos mortos e tomando a sério a fecundidade da sua morte, aceitando a humanidade redimida.

Jesus trava o grande combate com as forças do pecado e da morte e fá-lo com orações, isto é, em comunhão amorosa e filial com o Pai. Ouçamos o Papa Bento XVI: “Trata-se sempre do encontro de Jesus com as forças da morte, cujo abismo Ele, sendo o Santo de Deus, percebe em toda a sua profundidade e hediondez. Assim, a Carta aos Hebreus vê toda a Paixão de Jesus, desde o monte das Oliveiras até ao último brado na cruz, permeada pela oração, como uma única e ardente súplica a Deus pela vida contra o poder da morte.

Desta maneira, considera-se toda a Paixão de Jesus uma luta, na oração com Deus-Pai e simultaneamente com a natureza humana. A Carta aos Hebreus manifesta de modo novo a profundidade teológica da oração no Monte das Oliveiras. Para a Carta, este bradar e suplicar constitui a realização do sumo sacerdócio de Jesus. É precisamente no seu bradar, chorar e rezar que Jesus faz o que é próprio do sumo sacerdote: Ele leva o tormento de ser homem para o alto, rumo a Deus. Leva o homem à presença de Deus”[2].

4. A Cruz de Cristo é atual por causa da atualidade dos nossos pecados. Não estamos dispensados de travar esse combate, embora, na vitória de Cristo, esteja prometida a nossa vitória. E o aspeto crucial do nosso combate é, sem renunciar à nossa vontade, fazê-la coincidir com a vontade de Deus. É a obediência da fé. Diz o Santo Padre: “Isto é possível sem destruição do elemento essencialmente humano, porque, a partir da criação, a vontade humana está orientada para a divina. Quando adere à vontade divina, a vontade humana encontra a sua realização e não a sua destruição”[3]. A harmonia da nossa vontade com a vontade de Deus é um longo combate; só é possível participando, com Cristo, do seu combate no Jardim das Oliveiras. É a mais sólida fonte de esperança que a Páscoa nos oferece: saber que esse nosso combate esteve presente no combate de Cristo e que só Ele nos pode conduzir à vitória.

Sé Patriarcal, 22 de abril de 2011

D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca

NOTAS:

1 – Bento XVI, Jesus de Nazaré, vol. II, pp. 143-144

2 – Ibidem, pp. 136-137

3 – Ibidem, p. 134

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