Jesus continua a ser uma pergunta fundamental no coração humano

Primeira parte da conversa entre o diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, padre José Tolentino Mendonça, e o jornalista Paulo Rocha, diretor da Agência ECCLESIA

O padre e poeta madeirense José Tolentino Mendonça defende que Jesus continua a ser uma pergunta fundamental no coração humano e que o moralismo reduz a pessoa de Cristo.

Em plena Semana Santa, apresenta-se a primeira parte da conversa entre o diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura e o jornalista Paulo Rocha, diretor da Agência ECCLESIA, na qual se fala da cruz e da ressurreição, da mesa e das parábolas, da Quaresma e da Igreja.

 

ECCLESIA – “Quem dizem os homens que eu sou?” foi uma pergunta de Jesus que causou perplexidade desde o momento que foi proferida. Já está respondida?

José Tolentino Mendonça – É uma pergunta que continua por responder porque o estilo de Jesus é aberto e inclusivo. Vemos que as suas ações e palavras não tinham uma interpretação única, dependendo da qualidade do acolhimento que lhes era proporcionado. E por isso essa interrogação é muito plausível porque dizem-se, em todos os tempos, coisas muito diferentes acerca de Jesus, já que acerca dele, e nele, nós refletimos as perguntas do próprio coração humano.

 

E – Essa pergunta continua a ser formulada nos diálogos de hoje?

JTM – Jesus continua a ser uma pergunta fundamental no coração humano. Veja-se, por exemplo, como de uma forma secular e laica, ele passou do vitral para a montra. Há uma curiosidade enorme por Jesus: a quantidade de publicações, filmes, conversas e tentativas – muitas vezes tentações – de entrar por veredas um pouco estranhas representam, no fundo, o desejo de o tocar. A imagem que os evangelistas nos dão da multidão que se acotovelava em torno a ele, para o tocar, continua a ser a situação do homem contemporâneo. Nós também fazemos pressão para romper a multidão, para romper as ideias conhecidas acerca de Jesus, porque cada um tem a necessidade de um toque original em relação à sua pessoa.

 

E – Jesus nunca teve a preocupação de dar respostas conclusivas acerca de si…

JTM – Isso é interessante na pedagogia de Jesus, que é aberta. Jesus não dá respostas. E as palavras que diz solicitam sempre um caminho de adesão. Nunca nada é imediato em relação a Jesus.

 

E – É uma pessoa que não aponta soluções mas caminhos…

JTM – Jesus é uma pergunta, mais do que uma resposta. No evangelho de São João ele diz “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” – mas não os explica. Temos de ser nós, pelo exercício do compromisso e do discipulato a descobrir que verdades são essas.

 

E – Jesus escolhe sempre palavras quase enigmáticas para falar da sua pessoa… Por exemplo, “Eu sou o pão da vida”.

JTM – Essa escolha prende-se com a poética de Jesus. Ele utiliza uma linguagem que não é fechada nem de sentido único, mas sempre com uma semântica plural e diversidade de sentidos. Isso dá à sua palavra uma riqueza enorme e uma responsabilidade de apropriação, no sentido que cada leitor e ouvinte é chamado também a apropriar-se de uma forma original daquilo que lê e ouve.

 

E – Muita dessa poética de Jesus está apropriada em ambientes litúrgicos, ou até mais moralistas, em alguns setores eclesiais?

JTM – São duas coisas diferentes. A liturgia é vida e também faz uma apropriação poética de Jesus, no sentido de que a oração é uma experiência aberta – aquilo que Romano Guardini chamava o jogo da liturgia. Ele dizia uma coisa interessante: “Só quem sabe brincar com um brinquedo entende a liturgia”. Porque ela é feita de cor, é feita para os nossos sentidos perceberem. E por isso ela é também uma linguagem aberta.

O moralismo é outra coisa. É fazer um traçado de sentido único a uma realidade que tem de ser aberta e ampla.

 

E – É um traçado que não interessa…

JTM – Não interessa porque reduz Jesus. A experiência cristã não é, antes de tudo, uma experiência moral, mas uma experiência do ser. É a partir dela e da experiência do amor que nós chegamos à decisão moral, à decisão ética, que é sempre um segundo momento em relação à verdade do amor.

 

E – O que é que a História nos diz acerca de Jesus?

JTM – É uma personalidade fascinante, da qual temos muitas informações, mesmo parecendo que são poucas. Sabemos que ele é um crente judeu. Sabemos que lê a tradição dos pais, a tradição das Escrituras, e que as comenta de uma forma que, ao mesmo tempo, está em continuidade com a tradição profética e messiânica de Israel, mas também assume uma configuração nova.

Sabemos que Jesus era um mestre considerado no seu tempo porque os fariseus o acolhiam e convidavam para sua casa. Sabemos que fez uma experiência como os rabis faziam, que é a de ter um grupo de discípulos que ele inicia.

Sabemos também que ele tem uma lógica de diferenciação, e mesmo de rutura, em relação ao seu tempo. Jesus prega uma palavra que é original, uma palavra de amor e inclusão, uma palavra de perdão, num sistema religioso demasiado fechado para o admitir.

E a forma como ele fala de Deus é nova, original. Há uma dicção de Deus que ele faz como ninguém – “Quem me vê, vê o Pai”, diz a Filipe.

E depois há o seu próprio destino. Não podemos esquecer que Jesus morre como um maldito. Jesus é excluído daquele sistema religioso porque a sua palavra, o seu estilo e a sua mensagem não eram comportáveis pelo universo religioso do seu tempo.

 

E – Que relações estabeleceu Jesus com o universo político, nomeadamente do Império Romano?

JTM – É interessante olhar para as Escrituras e perceber que há uma espécie de aliança tácita entre o sistema religioso e político. Jesus era olhado pelos romanos, certamente, como um ser bizarro. O Império não compreendia Jesus e achava que ele era um problema que os judeus tinham de resolver.

Mas vemos, a posteriori, o esforço que os cristãos fazem, nomeadamente São Paulo e São Lucas, para traduzir o cristianismo numa linguagem que o universo helenista e romano pudesse compreender. O mundo político, tal como o mundo religioso, não compreendeu Jesus.

 

E – É a terra de Jesus que não o compreende?

JTM – Há um drama na narrativa de Jesus, que o prólogo do evangelho de São João diz de forma muito clara: “Ele veio para os que eram seus e os seus não o acolheram”. Isto tem a ver com a terra de Jesus, com o contexto, com o sistema religioso fechado, com o sistema político, mas também com uma questão mais ampla, que é a da humanidade. Porque a terra de Jesus é o coração humano. Jesus encarna, torna-se um de nós. Penso que é a nível da humanidade que essa compreensão da recusa de Jesus tem de ser feita, porque ainda hoje Jesus, como proposta de vida e de revelação de Deus, continua a não ser aceite, mesmo por aqueles que são seus.

 

E – Podemos dizer que Jesus viveu entre inimigos, ou que teria inimigos?

JTM – Sem dúvida que o discurso de Jesus não era consensual e dividia. Colocava uns a favor dele e outros contra. Porque Jesus fala claro: é uma linguagem do “sim, sim”, “não, não”. São Lucas conta desde o capítulo 5.º que alguns faziam tudo para tramar e eliminar Jesus. Nesse sentido ele tinha inimigos.

 

E – Entre os inimigos de Jesus estão a fome, a exclusão, a cruz?

JTM – Esses são os seus grandes inimigos. Mais do que designarmos grupos humanos, interessa perceber que os grandes opositores da mensagem cristã são o sofrimento da vítima e do justo, a fome, o injustificável e o irreparável da violência e da guerra, o manto de egoísmo que se estende sobre as nossas sociedades.

 

E – A cruz é símbolo dessa oposição à mensagem de Cristo?

JTM – A cruz é um duplo símbolo. É o símbolo da radicalidade do gesto cristão. Jesus está disposto a ir até ao fim. É um amor incondicional. É um amor que vai ao extremo de si na lógica do dom. A cruz é para nós a árvore da vida, tendo um sentido claramente positivo.

Mas a cruz também tem o sentido do homicídio, da máquina torcionária que massacra o justo. E aqui ela é denúncia de todos os processos que conduzem à violência e à injustiça.

 

E – Acredita na capacidade da linguagem da cruz nos dias de hoje?

JTM – A cruz é uma linguagem paradoxal e também uma interpelação. É verdade que o pior que pode acontecer é quando ela se torna ornamento, quando a trazemos ao peito como trazemos um outro símbolo qualquer a que não damos importância. Hoje os cristãos continuam a fazer a cruz sobre o seu corpo, e muitas vezes fazem-no de forma mecânica. Isso é triste porque é diminuir e dispersar o sentido de levantamento que a cruz tem.

O sentido da cruz é sempre paradoxal. É ambíguo porque tem a ver com a história de sofrimento e rejeição que Jesus protagoniza e tem a ver com a história do dom que ele exemplifica e testemunha.

 

E – O horizonte da ressurreição acaba por dar à cruz o sentido pleno…

JTM – Não entendemos a cruz sem entender a ressurreição. A cruz é o limiar, o patamar, aquele momento mais fundo onde Jesus pode descer, como nos diz o hino da carta [de São Paulo] aos Filipenses: ele fez-se homem, o último dos homens. E isso é visível na cruz de Jesus.

O mistério da cruz não acaba nela – transcende-a e vence-a. Jesus é vencido e é vencedor, é triunfador da cruz precisamente porque há a manhã de Páscoa, porque há essa insurreição que ela representa.

 

E – Tertuliano dizia que acreditava na ressurreição como algo absurdo, no sentido de que está para lá da razão. É nessa dimensão do mistério que nos temos de situar?

JTM – A ressurreição é o inédito de Deus. Nós dizemos que é um absurdo, que contraria as evidências. Quando São Paulo, no Areópago de Atenas, falou aos sábios do seu tempo, eles mandaram-no voltar mais tarde porque não podiam acreditar naquela verdade. De facto a ressurreição estilhaça as certezas humanas e o que temos a partir dos nossos sentidos e racionalidade. Ela é o poder de Deus, contrariando a vitória fatal que a morte parece ter sobre a história humana e sobre as nossas histórias.

 

E – Falemos dos espaços e contextos em que Jesus, no seu tempo, se dava a conhecer. O espaço comensal adquire aí uma importância vital?

JTM – A mesa e a refeição são extraordinárias. É interessante verificarmos que grande parte das histórias dos evangelhos supõe uma refeição. Os evangelhos são muito contados à mesa porque ela é a estrutura comunitária por excelência em todas as culturas. A mesa é um símbolo transversal. Nela nós experimentamos a intimidade, como a relação flui, a vizinhança.

Não é por acaso que a mensagem cristã se vai alojar nessa plataforma de intimidade que é a mesa. E que o grande símbolo cristão, a eucaristia, que começa com a última ceia, é alguma coisa que se faz à volta da mesa. Porque à mesa nós alimentamo-nos do mesmo alimento, mas sobretudo – e é essa a força da mesa – alimentamo-nos uns dos outros. Somos alimento uns dos outros. E nesse sentido Jesus dá-se como alimento e a intimidade que vivemos com ele é uma intimidade que nos constrói.

 

E – Uma intimidade que Jesus proporciona a situações e pessoas que, no caso do mundo judaico, estariam longe de ser possíveis. Por exemplo, com a mulher pecadora.

JTM – A comensalidade de Jesus é aberta. Isto é muito curioso porque o cristianismo é a única religião onde se pode comer de tudo com todos. A mesa cristã é inclusiva. Não há restrições. Mesmo agora, na Quaresma, temos abstinência em relação à carne, mas é uma situação pontual e com uma razão ascética, para implicar um esforço interior de abnegação. Porque verdadeiramente nós podemos comer de tudo. E isso mostra como Jesus fez da mesa o grande ícone do reino de Deus e da proposta que Jesus faz dele.

 

E – Nesse ambiente de comensalidade, a resposta de Jesus parece de outra ordem: no caso do encontro com a mulher pecadora, ele diz “A tua fé te salvou”.

JTM – À mesa Jesus constrói experiências de vida e de fé. É verdade que eles deviam comer pão, cordeiro, ervas amargas; deviam beber vinho e água. Mas o principal alimento era o encontro. É muito interessante olharmos para os evangelhos porque eles narram sobretudo histórias de encontro. E a pecadora, que atravessa a hostilidade dos fariseus para chegar a Jesus, ou os publicanos que comiam com ele e faziam perguntar “quem é este que come com os pecadores?”, mostram bem como Jesus privilegia o encontro e a relação como lugar onde a fé é possível.

Para nós, a fé não é uma verdade abstrata, não é um conjunto de fórmulas, não é simplesmente um credo. A fé é uma verdade praticada no interior de um encontro dinâmico de descoberta, em que a nossa humanidade é abraçada por Jesus, é colocada aos seus ombros, e percebemos que é salva e renovada por ele.

 

E – Nessas situações Jesus foi objeto de escândalo ao romper com o que hoje chamaríamos de pequenos gestos protocolares…

JTM – Ainda hoje, nas nossas sociedades, em que parece que tudo é muito mais fluido e livre, o protocolo de mesa continua a ser muito rígido. É muitas vezes o único lugar de ritualidade que mantemos. Por exemplo, à nossa mesa não se senta qualquer pessoa. E quando estamos em família há uma distribuição dos lugares. Há aquele que se serve primeiro e aquele que fica para o fim.

É belo ver que Jesus rompe com a ritualidade estabelecida e inscreve uma nova, em que os últimos serão os primeiros, em que há espaço para todos, em que aquele que quer ser o primeiro é quem vai lavar os pés e fazer os ritos de hospitalidade. Jesus funda um novo protocolo de mesa, que não é apenas para observar à refeição, instituindo uma nova qualidade de relação entre os homens.

 

E – E isso também na dimensão religiosa: no templo [de Jerusalém] há uma ocasião em que Jesus diz que ele próprio é o templo.

JTM – É impressionante olhar para Jesus porque ele é um inovador. Ele escreve o gesto novo de Deus na história. E nós vemos nas diversas situações – à mesa, em casa, mas também na sinagoga e no templo – como Jesus rompe com as ideias feitas, com o mundo de aparência, com um sistema fechado que excluía o irmão e estreitava a imagem de Deus.

O grande problema dos sistemas é que empobrecem e diminuem Deus. Jesus devolve uma imagem de Deus que é ampla, que faz justiça ao seu amor e misericórdia. Um exemplo para lá do templo é o próprio discurso religioso, que tem uma grande tendência a tornar-se estreito, monocórdico e empalidecido. Jesus fala uma linguagem religiosa aberta. Não fala à maneira moralista. Jesus conta histórias, conta parábolas. E nesse sentido fala de Deus de uma forma poética, que o dá a ver para lá dos nossos preconceitos, limitações e obstáculos que colocamos. É um Jesus inaugurador de pontes, um Jesus grande intérprete da largueza de Deus, um Jesus que nos diz, como disse a Pedro, “faz-te ao largo”.

 

E – Jesus provocou nos fariseus interrogações como esta: “Quem é este que profere blasfémias?”. É uma reação que pode provocar também hoje?

JTM – Jesus é heterodoxo. Nós, cristãos, não temos a verdade – somos medidos por ela. Não possuímos Jesus – é o espírito do ressuscitado que nos possui. E é ele que avalia, que é o critério último das nossas vidas. Jesus não é uma pessoa que nós manipulamos, mas alguém para quem convergimos. Nesse sentido, ele continua a dar-nos a volta, continua a pedir-nos conversão. Precisamos ouvi-lo, colocarmo-nos aos pés dele, como Maria ficou aos pés de Jesus a escutá-lo. Precisamos de aprender quem é Jesus.

É muito interessante o inciso que Dostoievsky tem nos “Irmãos Karamazov”, a lenda do grande inquisidor, que para nós, cristãos, é um murro no estômago. Aparece de novo Jesus e o responsável da Inquisição manda prendê-lo. E à noite vai falar com ele à prisão, dizendo-lhe: “Tu já não tens lugar, agora somos nós. A tua palavra é incómoda, não a podemos ouvir. Agora ficamos nós no teu lugar”. Ora, a Igreja não ficou no lugar de Jesus. A Igreja é uma comunidade que continua a ter Jesus por mestre, no centro. Precisamos de viver numa conversão permanente para escutarmos e vivermos em fidelidade a palavra de Jesus. Porque ele continua a surpreender-nos. O que ele diz à Igreja de cada tempo é que ela precisa de caminhar e esforçar-se, precisa de abrir-se e renovar-se para poder continuar obediente a Jesus.

 

E – A Igreja terá passado pela tentação de substituir Jesus?

JTM – Eu digo que sim por nós próprios, por mim próprio. Penso que cada um de nós vive essa tentação de olhar para a experiência cristã como uma sabedoria na qual somos iniciados, mas que depois é manipulável, adaptável às nossas necessidades e desejos.

Aquilo que o cristianismo nos propõe é diferente. É uma experiência de relação permanente, de descoberta, de audição. A Igreja está à escuta da palavra de Jesus, que não é alguém que eu conheço – João Batista tem aquela frase maravilhosa: “no meio de vós está alguém que não conheceis”. Jesus continua a ser alguém que eu preciso de descobrir. E em cada Quaresma, em cada Tempo Pascal, tempos fortes de ‘recentramento’, a Igreja é chamada a esta primavera, que é no fundo a disponibilidade para reencontrar Jesus em toda a intensidade.

PR/PTE/RM

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Agência ECCLESIA

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