Catequese quaresmal de D. João Lavrador, bispo auxiliar do Porto

O jejum autêntico edifica o homem novo  na verdade e na caridade

O tempo da Quaresma, com todas as propostas de conversão que ela contem, está orientado para a Páscoa de Jesus Cristo e, nela, para a edificação do homem novo do qual pelo baptismo já participamos e que nos foi oferecido pela Ressurreição de Jesus Cristo.

Vamos desenvolver este tema do Jejum tendo em conta os seguintes pontos: O Jejum daquele que espera o «esposo», Jesus Cristo; O Jejum de quem se prepara para a missão; O Jejum como metanóia; O jejum e a penitência; Jejum, ascese e caridade; O Jejum que interessa ao homem de hoje.

1.   O Jejum daquele que espera o «esposo», Jesus Cristo

Para o cristão, o Jejum deve ser caracterizado como meio que prepara a vinda de Jesus Cristo, introduzindo-nos numa experiência tão forte que só a linguagem nupcial pode exemplificar. Por isso, importa lembrar as palavras com que Jesus respondeu aos discípulos de João Baptista quando o interrogavam: por que não jejuam os teus discípulos? Jesus respondeu: Porventura podem os companheiros do esposo estar tristes enquanto o esposo está com eles? Dias hão-de vir em que lhes tirarão o esposo e então jejuarão (Mt 9, 15). Na verdade, o tempo da Quaresma recorda-nos que o esposo nos foi tirado. Tirado, detido, preso, esbofeteado, flagelado, coroado de espinhos e crucificado. O jejum no tempo da Quaresma é a expressão da nossa solidariedade com Cristo. Tal foi o significado da Quaresma através dos séculos e assim hoje se mantém [1].

Atendo-nos ao Novo Testamento, deparamo-nos com Jesus que ressalta a razão profunda do jejum, condenando a atitude dos fariseus, os quais observaram escrupulosamente as prescrições impostas pela lei, mas o seu coração estava distante de Deus. O verdadeiro jejum, tal como nos é retratado nos Evangelhos, repete também noutras partes o Mestre divino, é antes cumprir a vontade do Pai celeste, o qual «vê no oculto, recompensar-te-á» (Mt. 6, 18). Ele próprio dá o exemplo respondendo a satanás, no final dos 40 dias transcorridos no deserto, que «nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt. 4, 4). O verdadeiro jejum finaliza-se portanto a comer o «verdadeiro alimento», que é fazer a vontade do Pai (cf. Jo 4, 34). Portanto, se Adão desobedeceu ao mandamento do Senhor «de não comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal», com o jejum o crente deseja submeter-se humildemente a Deus, confiando na sua bondade e misericórdia [2]

2.   O Jejum de quem se prepara para a missão

O Evangelho de S. Mateus dá-nos conta de que Jesus Cristo no inicio da sua vida pública, antes de se lançar na proclamação do Reino de Deus, passou quarenta dias no deserto, sentiu fome e foi tentado pelo demónio. Neste contexto de jejum, é-nos oferecido o exemplo de Jesus Cristo pelo o qual reconhecemos que todo o ser humano na busca do sentido pleno da sua existência sente-se obrigado a decidir, a fazer escolhas e a orientar decididamente a sua vida ao encontro da verdade de Deus.

Fixemo-nos nas situações que são proporcionadas pelo Espírito para que se purifique verdadeiramente o ser, os critérios, os valores, as relações que contam e as decisões. Diz-nos o Evangelho: «O Espírito conduziu Jesus ao deserto a fim de ser tentado pelo demónio. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome» (Mt. 4, 1-2). Tudo se desenrola no deserto, lugar onde a pessoa se pode encontrar consigo mesma na solidão do seu próprio ser. É precisamente neste envolvimento que o ser humano sente fome, certamente carência de alimento, mas sobretudo o que o alimento simboliza, fome de Deus, do Amor absoluto de Deus, única realidade que pode dar sentido pleno à vida humana. Mas isto não se alcança sem primeiro exercitar a vontade que é chamada a decidir. A decisão que integra o conteúdo do que se pretende, o exercício da liberdade de cada um e o imperativo da vontade que se encaminha para o melhor bem.

Como Moisés antes de receber as Tábuas da Lei (cf. Êx. 34, 28), como Elias antes de encontrar o Senhor no monte Oreb (cf. 1 Rs 19, 8), assim Jesus rezando e jejuando se preparou para a sua missão, cujo início foi um duro confronto com o tentador [3]

Também Paulo nos recorda as exigências apostólicas quando diz: «Em todas as coisas procuramos acreditar-nos como ministros de Deus, com muita paciência nas tribulações, nas necessidades nas angústias, nos açoites, nos cárceres, nas sedições, nos trabalho, nas vigílias, nos jejuns» (2Cor. 6, 4-7).

O Espírito Santo envia em missão quando os apóstolos se encontram em oração e em jejum. Assim o descreve o texto dos Actos dos Apóstolos: «Havia na Igreja estabelecida em Antioquia profetas e doutores: Barnabé, Simeão, chamado Níger, Lúcio de Cirene, Manaen, companheiro de infância do tetrarca Herodes e Saulo. Estando eles a celebrar o culto e a jejuar, disse-lhes o Espírito Santo: “Separai Barnabé e Saulo para o trabalho a que Eu os chamei”. Então depois de terem jejuado e rezado, impuseram-lhes as mãos e deixaram-nos partir» (Act. 13,1-3). Ainda nos Actos dos Apóstolos, ao narrar o modo como a Boa Nova era anunciada em Listra e como aí fizeram muitos discípulos, e uma vez regressados a Antioquia, diz o texto que «depois de terem constituído anciãos em cada Igreja, pela imposição das mãos, e de terem feito orações acompanhadas de jejum, encomendaram-nos ao Senhor em quem tinham acreditado» (Act. 14, 21-23).

3.   O Jejum como metanóia

O apelo à conversão é uma constante na Sagrada Escritura. A partir da relação amorosa que Deus quer estabelecer com os seus filhos, há um permanente apelo a voltar ao seio de Deus.

Lemos no livro de Isaías a seguinte advertência: «Para que jejuar, se disto não vos importais, para que humilhar as nossas almas, se não prestais atenção. É porque no dia do vosso jejum só cuidais dos vossos negócios e oprimis todos os vossos servidores. Jejuais para melhor demandar e contender, ferindo com o punho malvadamente. Não jejueis como tendes feito até hoje se quereis que a vossa voz seja ouvida no alto. É esse o jejum que me agrada no dia em que o homem se mortifica? Curvar a cabeça como um junco, deitar-se sobre saco e cinza? Podeis chamar a isto jejum e dia agradável ao Senhor?» (Is. 58, 3-5).

A partir daqui, Isaías apresenta o que é o jejum agradável ao Senhor. Diz ele: «O jejum que eu aprecio é este: abrir as prisões injustas, desatar o nó do jugo, deixar ir livres os oprimidos, quebrar toda a espécie de jugo, repartir o pão com o esfomeado, dar abrigo aos infelizes sem asilo, vestir o nu e não desprezar o teu irmão» (Is. 58, 6-7).

Se assim proceder, aquele que pratica tal jejum será querido pelo Senhor e por Ele será atendido. Será como a luz da aurora para todos os que com ele convivem.

O mesmo apelo encontra-se no profeta Joel. Com palavras vigorosas exclama: «Mas agora ainda – diz o Senhor. Convertei-vos a Mim de todo o vosso coração, com jejuns, com lágrimas e com gemidos. Rasgai os vossos corações e não as vossas vestes. Convertei-vos ao Senhor, vosso Deus, porque Ele é bom e compassivo, clemente e misericordioso (…) Tocai a trombeta em Sião, ordenai um jejum. Convocai a assembleia, reuni o povo». (Jl. 2, 12- 15).

João Paulo II, respondendo à questão do que é verdadeiramente a Metanóia, a conversão, diz que se pode definir por aquela transformação espiritual, que aproxima o homem de Deus. Por isso, sublinha que nos devemos esforçar por concentrar-nos não só na prática da abstenção do alimento ou das bebidas — isto de facto significa «jejum» no sentido ordinário — mas no significado mais profundo desta prática que, aliás, pode e deve às vezes ser «substituída» por alguma outra. E esclarece dizendo que o alimento e as bebidas são indispensáveis para o homem viver, disso se serve e deve servir-se, mas não lhe é lícito abusar seja da forma que for. Refere ainda que a tradicional abstenção do alimento e das bebidas tem como finalidade introduzir na existência do homem não só o equilíbrio necessário, mas também o desprendimento daquilo que poderia definir-se «atitude consumista». Tal atitude tornou-se nos nossos tempos uma das características da civilização e em particular da civilização ocidental. A atitude consumista! O homem orientado para os bens materiais, múltiplos bens materiais, muitas vezes abusa deles. Não se trata aqui unicamente do alimento e das bebidas. Quando o homem está orientado exclusivamente para a posse e o uso dos bens materiais, isto é, das coisas, então também toda a civilização é medida segundo a quantidade e qualidade das coisas que se encontra capaz de fornecer ao homem e não se mede com a medida adequada ao homem, diz ainda o Papa. Esta civilização fornece de facto, os bens materiais não só para que sirvam ao homem a exercer as actividades criativas e úteis, mas cada vez mais  para satisfazer os sentidos, a excitação que disso deriva, o prazer momentâneo e a multiplicidade de sensações cada vez maior [4].

Continuando ainda sobre a relação entre o jejum e a conversão, insiste o Santo Padre João Paulo II dizendo que para nos convertermos a Deus, é necessário descobrirmos em nós mesmos aquilo que nos torna sensíveis a quanto pertence a Deus, portanto: os conteúdos espirituais, os valores superiores, que falam à nossa inteligência, à nossa consciência e ao nosso «coração» (segundo a linguagem bíblica). Para nos abrirmos a estes conteúdos espirituais e a estes valores, é preciso desapegarmo-nos de tudo quanto serve apenas ao consumismo, à satisfação dos sentidos. Na abertura da nossa personalidade humana para Deus, o jejum entendido quer no modo «tradicional» quer no «actual» — deve acompanhar ao mesmo passo a oração porque esta dirige-nos directamente para Ele.

Por outro lado, conclui João Paulo II,  o jejum, isto é a mortificação dos sentidos e o domínio do corpo, confere à oração maior eficácia que o homem descobre em si mesmo. Descobre, de facto, que é «diverso», que é mais «senhor de si mesmo» e que se tornou interiormente livre. E disso se dá conta pois a conversão e o encontro com Deus, por meio da oração, frutificam nele [5]

4.   O jejum e a penitência

Se o jejum não é muito realçado no Novo Testamento e já depreendemos porquê, porque estamos perante o esposo para o qual se orienta toda a nossa vida, a relação do jejum com a penitência retoma vigor na Igreja primitiva.

Vejamos algumas citações dos Padres da Igreja:

«O meu amor foi crucificado e já não há em mim a chama que deseja as coisas materiais», escreve o Bispo de Antioquia, Inácio, na carta aos Romanos (Santo Inácio de Antioquia, Ad Romanos, VII, 2).

Diz, por exemplo, São Pedro Crisólogo: «O jejum é paz do corpo, força dos espíritos e vigor das almas» (São Pedro Crisólogo, Sermo VII: de ieiunio 3), e ainda: «O jejum é o leme da vida humana e governa todo o navio do nosso corpo» (São Pedro Crisólogo, Sermo VII: de ieiunio 1). Sublinha, ainda, num outro passo: «O jejum é a alma da oração e a misericórdia é a vida do jejum, portanto quem reza jejue. Quem jejua tenha misericórdia. Quem, ao pedir, deseja ser atendido, atenda quem a ele se dirige. Quem quer encontrar aberto em seu benefício o coração de Deus não feche o seu a quem o suplica» (Sermo 43; PL 52, 320.332).

Santo Ambrósio responde às possíveis objecções contra o jejum nos seguintes termos: «A carne, pela sua condição mortal, tem algumas concupiscências suas próprias: a respeito delas foi-te concedido o direito de as refrear. A tua carne está-te sujeita (…): Não sigas as solicitações ilícitas, mas refreia-as algum tanto, mesmo no que diz respeito às coisas lícitas. De facto, quem não se abstém de nenhuma das coisas lícitas, está também perto das ilícitas» (Santo Ambrósio, Sermo de utilitate ieiunii III. V. VII). Até escritores, que não pertencem ao cristianismo, declaram a mesma verdade. Esta é de alcance universal. Faz parte da sabedoria universal da vida [6]

Encontramos a prática do jejum muito presente na primeira comunidade cristã. Também os Padres da Igreja falam da força do jejum, capaz de impedir o pecado, de reprimir os desejos do «velho Adão», e de abrir no coração do crente o caminho para Deus. O jejum é também uma prática frequente e recomendada pelos santos de todas as épocas [7]

Podemos perguntar que valor e que sentido tem para nós, cristãos, privar-nos de algo que seria em si bom e útil para o nosso sustento. As Sagradas Escrituras e toda a tradição cristã ensinam que o jejum é de grande ajuda para evitar o pecado e tudo o que a ele induz. Por isso, na história da salvação é frequente o convite a jejuar. Já nas primeiras páginas da Sagrada Escritura o Senhor exige que o homem se abstenha de comer o fruto proibido: «Podes comer o fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas o da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás» (Gn 2, 16-17). Comentando a ordem divina, São Basílio observa que «o jejum foi ordenado no Paraíso», e «o primeiro mandamento neste sentido foi dado a Adão». Portanto, conclui: «O “não comas” e, deste modo, a lei do jejum e da abstinência» (cf. Sermo de jejunio: PG 31, 163, 98). Dado que todos estamos entorpecidos pelo pecado e pelas suas consequências, o jejum é-nos oferecido como um meio para restabelecer a amizade com o Senhor. Assim fez Esdras antes da viagem de regresso do exílio à Terra Prometida, convidando o povo reunido a jejuar «para nos humilhar – diz – diante do nosso Deus» (8, 21). O Omnipotente ouviu a sua prece e garantiu os seus favores e a sua protecção. Fizeram o mesmo os habitantes de Ninive que, sensíveis ao apelo de Jonas ao arrependimento, proclamaram, como testemunho da sua sinceridade, um jejum dizendo: «Quem sabe se Deus não Se arrependerá, e acalmará o ardor da Sua ira, de modo que não pereçamos?» (3, 9). Também então Deus viu as suas obras e os poupou [8]

A prática fiel do jejum contribui ainda para conferir unidade à pessoa, corpo e alma, ajudando-a a evitar o pecado e a crescer na intimidade com o Senhor. Santo Agostinho, que conhecia bem as próprias inclinações negativas e as definia «nó complicado e emaranhado» (Confissões, II, 10.18), no seu tratado A utilidade do jejum, escrevia: «Certamente é um suplício que me inflijo, mas para que Ele me perdoe; castigo-me por mim mesmo para que Ele me ajude, para satisfazer aos seus olhos, para alcançar o agrado da sua doçura» (Sermo 400, 3, 3: PL 40, 708). Privar-se do sustento material que alimenta o corpo facilita uma ulterior disposição para ouvir Cristo e para se alimentar da sua palavra de salvação. Com o jejum e com a oração permitimos que Ele venha saciar a fome mais profunda que vivemos no nosso íntimo: a fome e a sede de Deus [9].

João Paulo II falando aos jovens reunidos na basílica Vaticana, em 1979, relacionava o jejum com a penitência dizendo que o «jejum é saber dizer um “não” seco e decisivo a tudo o que é sugerido ou requerido pelo orgulho, pelo egoísmo, pelo vício, dando ouvidos à própria consciência, respeitando o bem alheio e conservando a fidelidade à santa Lei de Deus. Jejum significa pôr limite a tantos desejos, às vezes bons, para se ter o domínio pleno de si, para aprender a regular os próprios instintos, para habituar a vontade ao bem». Refere ainda que «gestos destes recebiam antigamente o nome de “florinhas” ou obséquios. Muda o nome, mas fica a substância. Eram e continuam a ser actos de renúncia, realizados por amor do Senhor ou de Nossa Senhora, com uma nobre finalidade para conseguir. Eram e são um “desporto”, um treino insubstituível para se ficar vencedor nas competições do espírito. Jejum significa, por fim, privar-se dalguma coisa para valer à necessidade dum irmão, tornando-se o jejum desse modo exercício de bondade e caridade».

«O jejum, compreendido, praticado e vivido desse modo, sublinha o Papa, torna-se penitência, isto é conversão a Deus, na medida em que purifica o coração das numerosas escórias do mal, embeleza a alma de virtudes, habitua a vontade ao bem, e dilata o coração para receber a abundância da divina graça. Em tal conversão torna-se a fé mais sólida, a esperança mais alegre e a caridade mais activa».

Interpela os jovens sublinhando que «convertidos para Deus, cheios do Espírito do Senhor, tereis no coração uma alegria verdadeira, profunda e avassaladora; mostrareis um sorriso genuíno e conquistador; vereis a vossa juventude como dom estupendo, digno de ser vivido em plenitude e em autenticidade de vida, humana e cristã» [10].

5.   Jejum, ascese e caridade 

Interligando o jejum com a ascese e a caridade, Bento XVI, na mensagem para a Quaresma de 2009, diz que o jejum ajuda-nos a tomar consciência da situação na qual vivem tantos irmãos nossos. Recorda a Primeira Carta de São João na qual admoesta dizendo que «aquele que tiver bens deste mundo e vir o seu irmão sofrer necessidade, mas lhe fechar o seu coração, como estará nele o amor de Deus?» (3, 17). Jejuar voluntariamente, continua o Papa,  ajuda-nos a cultivar o estilo do Bom Samaritano, que se inclina e socorre o irmão que sofre (cf. Enc. Deus caritas est, 15). Escolhendo livremente privar-nos de algo para ajudar os outros, mostramos concretamente que o próximo em dificuldade não nos é indiferente. Precisamente para manter viva esta atitude de acolhimento e de atenção para com os irmãos, O Santo Padre dirige-se às paróquias e a todas as outras comunidades encorajando-as a intensificar na Quaresma a prática do jejum pessoal e comunitário, cultivando de igual modo a escuta da Palavra de Deus, a oração e a esmola. Foi este, desde o início o estilo da comunidade cristã, na qual eram feitas colectas especiais (cf. 2 Cor 8-9; Rm 15, 25-27), e os irmãos eram convidados a dar aos pobres quanto, graças ao jejum, tinham poupado (cf. Didascalia Ap., V, 20, 18).

Já S. Leão Magno exortava os cristãos dizendo: «Seja, neste tempo, mais generosa a nossa liberalidade para com os pobres e todos os que sofrem, para que os nossos jejuns possam mitigar a fome dos indigentes e se multipliquem as vozes de acção de graças a Deus». E, prossegue dizendo que «nenhuma devoção dos fiéis é mais agradável a Deus do que a dedicação pelos seus pobres, porque nesta solicitude misericordiosa Ele reconhece a imagem da sua própria bondade» (Sermo 10 in Quadragésima, 3-5).

Também hoje esta prática deve ser redescoberta e encorajada, sobretudo durante o tempo litúrgico quaresmal [11].

Sobressai, deste modo, com grande clareza que o jejum representa uma prática ascética importante, uma arma espiritual para lutar contra qualquer eventual apego desordenado a nós mesmos. Privar-se voluntariamente do prazer dos alimentos e de outros bens materiais, ajuda o discípulo de Cristo a controlar os apetites da natureza fragilizada pela culpa da origem, cujos efeitos negativos atingem toda a personalidade humana. Exorta oportunamente um antigo hino litúrgico quaresmal: Usemos de modo mais sóbrio palavras, alimentos, bebidas, sono e jogos, e permaneçamos mais atentamente vigilantes» [12].

Proclamar o jejum quer dizer recordar com toda a energia o Amor infinito de Jesus na Cruz! Recordar a cruz. Aceitar o jejum quer dizer aceitar a revelação deste amor: Reencontrarmo-nos a, nós mesmos nas dimensões deste amor-misericórdia [13].

 6.   O Jejum que interessa ao homem de hoje

Situado na realidade concreta em que vive o ser humano, hoje, em relação a si mesmo, em relação à cultura envolvente, em relação à sociedade e sobretudo às carências que nela se desenvolvem, o homem contemporâneo deve jejuar, isto é, abster-se não só do alimento ou das bebidas, mas de muitos outros meios de consumo, como de estimular e satisfazer os sentidos. Jejuar significa abster-se, renunciar a alguma coisa.

Eis então um conjunto de interrogações que João Paulo II nos lança: Porque renunciar a alguma coisa? Porque privarmo-nos dela? Pelo que fica dito, já em parte respondemos a estas perguntas. Não será todavia completa a resposta, se não nos dermos conta de o homem ser ele próprio, também por conseguir privar-se dalguma coisa, capaz de dizer a si mesmo «não». Realça o Santo Padre que o homem é ser composto de corpo e alma. Refere, então que alguns escritores contemporâneos apresentam esta estrutura composta do homem sob a forma de estratos, e falam, como exemplo, de estratos exteriores na superfície da nossa personalidade, contrapondo-os aos estratos em profundidade. A nossa vida parece estar dividida nestes estratos e desenvolve-se através deles. Enquanto os estratos superficiais estão ligados à nossa sensualidade, os estratos profundos são expressão da espiritualidade do homem, isto é, da vontade consciente, da reflexão, da consciência e da capacidade de viver os valores superiores [14].

Esta imagem da estrutura da personalidade humana, segundo João Paulo II, pode servir para se compreender o significado do jejum para o homem. Não se trata aqui somente do significado religioso, mas dum significado que se exprime através da chamada «organização» do homem com sujeito-pessoa. O homem desenvolve-se regularmente, quando os estratos mais profundos da sua personalidade encontram suficiente expressão, quando o âmbito dos seus interesses e das suas aspirações não se limita só aos estratos exteriores e superficiais, ligados com a sensualidade humana. Para facilitar este desenvolvimento, devemos por vezes desapegar-nos conscientemente do que serve para satisfazer a sensualidade, quer dizer, daqueles estratos exteriores superficiais. Devemos portanto renunciar a tudo quanto os «alimenta» [15].

Eis, em breves palavras, a interpretação do jejum dos dias de hoje.

A renúncia às sensações, aos estímulos, aos prazeres e ainda ao alimento ou às bebidas, não é fim de si mesma. Deve apenas, por assim dizer, preparar o caminho para conteúdos mais profundos, de que «se alimenta» o homem interior. Tal renúncia, tal mortificação deve servir para criar no homem as condições para poder viver os valores superiores, de que ele está, a seu modo, «faminto» [16].

Bento XVI lembra que nos nossos dias, a prática do jejum  parece ter perdido um pouco do seu valor espiritual e ter adquirido antes, numa cultura marcada pela busca da satisfação material, o valor de uma medida terapêutica para a cura do próprio corpo. Contudo, refere que jejuar sem dúvida é bom para o bem-estar, mas para os crentes é em primeiro lugar uma «terapia» para curar tudo o que os impede de se conformarem com a vontade de Deus. Na Constituição apostólica Paenitemini de 1966, Paulo VI reconhecia a necessidade de colocar o jejum no contexto da chamada de cada cristão a «não viver mais para si mesmo, mas para aquele que o amou e se entregou a si por ele, e também a viver pelos irmãos» (Cf. Cap. I). A Quaresma poderia ser uma ocasião oportuna para retomar as normas contidas na citada Constituição apostólica, recorda o Santo Padre, valorizando o significado autêntico e perene desta antiga prática penitencial, que pode ajudar-nos a mortificar o nosso egoísmo e a abrir o coração ao amor de Deus e do próximo, primeiro e máximo mandamento da nova Lei e compêndio de todo o Evangelho (cf. Mt 22, 34-40) [17].

Termino com uma passagem da mensagem que o Santo Padre nos oferece nesta Quaresma de 2011. Diz ele num dado passo: «O Jejum, que pode ter diversas motivações, adquire para o cristão um significado profundamente religioso: tornando mais pobre a nossa mesa aprendemos a superar o egoísmo para viver na lógica da doação e do amor; suportando as privações de algumas coisas – e não só do supérfluo – aprendemos a desviar o olhar do nosso «eu», para descobrir Alguém ao nosso lado e reconhecer Deus nos rostos de tantos irmãos nossos. Para o cristão o jejum nada tem de intimista, mas abre em maior medida para Deus e para as necessidades dos homens, e faz com que o amor a Deus seja também amor ao próximo (cf. Mc 12, 31)».

D. João Lavrador, Bispo Auxiliar do Porto

 

Notas:

1 – Cfr. JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA GERAL Quarta-feira, 21 de Março de 1979

2 – Cfr. BENTO XVI  MENSAGEM PARA A QUARESMA DE 2009

3 – Cfr. Ib.

4 – Cfr. JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA GERAL, obr. Cit

5 – Cfr. Ib.

6 – Cfr. JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA GERAL, obr. cit.

7 – Cfr. BENTO XVI  MENSAGEM PARA A QUARESMA DE 2009, obr. cit.

8 – Cfr. Ib.

9 – Cfr. Ib.

10 – JOÃO PAULO II  DISCURSO NO ENCONTRO COM OS JOVENS  NA BASÍLICA VATICANA Quarta-feira, 21 de Março de 1979

11 – BENTO XVI  MENSAGEM PARA A QUARESMA DE 2009, obr. cit.

12 – Cfr. Ib.

13 – JOÃO PAULO II, HOMILIA, Basílica de Santa Sabina Quarta-feira de Cinzas, 4 de Março de 1981

14 – Cfr. JOÃO PAULO II AUDIÊNCIA GERAL Quarta-feira, 21 de Março de 1979

15 – Cfr. Ib.

16 – Cfr. Ib.

17 – Cfr. BENTO XVI  MENSAGEM PARA A QUARESMA DE 2009, obr. cit.

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top