Vagabundo do absoluto

Henrique Raposo, colunista e mestre em Ciência Política, fala da sua relação com Deus e do que espera no diálogo com a Igreja Católica, colocado no «Pátio dos Gentios»

As suas raízes alentejanas moldaram-lhe a personalidade, no entanto deixou de ser «vagabundo do relativismo». Com 32 anos, o colunista do «Expresso» Henrique Raposo confessa à Agência ECCLESIA que a sua relação “com Deus é boa”. Custa-lhe “o mistério pascal porque não consegue transformar este mistério em luz pascal…”

Com a Capela do Rato (Lisboa) a poucos metros, este homem da escrita – esteve no «Público», «Diário de Notícias», «Independente» e revista «Atlântico» -, nascido nos arredores de Lisboa (Loures), pede à Igreja para que saiba dialogar no «Pátio dos Gentios» e utilize a linguagem da Polis.

 

Agência ECCLESIA (AE) – Com um vasto percurso na área da Comunicação Social, alguma vez escreveu notícias eclesiais?

Henrique Raposo (HR) – Não. Apenas crónicas sobre a Igreja e o ateísmo.

 

AE – Uma dessas crónicas ficou célebre. Quando discordou de Bento XVI?

HR – Devido a ela, tornei-me amigo do padre Tolentino Mendonça. Nessa crónica discordava da posição defendida por Bento XVI – na encíclica «Caritas in Veritate» – em relação à globalização. Como na argumentação fiz uma sátira, alguns amigos católicos disseram-me: “não podes fazer isso”. Respondi-lhes: “Posso. Posso. O que não se pode fazer à Igreja – aos católicos – é o desprezo. Pensar que eles não existem”.

Muitas pessoas não criticam, nem satirizam porque consideram que nem se pode falar da Igreja…

 

AE – A Igreja convive mal com a sátira?

HR – Alguns católicos não convivem bem com a sátira, mas – mesmo assim – convivem melhor do que os muçulmanos.

 

AE – Esta sátira foi o ponto de partida para um diálogo…

HR – Sim. Trocaram-se opiniões, tanto no jornal como nos blogues. Alterou a minha relação com a ideia de Deus. Há dez anos, diria claramente que era ateu. Actualmente, já não digo isso.

 

AE – Onde se situa? Na fronteira?

HR – Sinceramente não sei, no entanto sei que chegar aqui foi difícil. Kant é importante…

 

AE – «A Crítica da Razão Pura» ou «A Crítica da Razão Prática»?

HR – As duas. O filósofo dizia que: “É impossível chegar a Deus através da razão pura, mas quando estamos na prática, Deus é uma necessidade moral”. Neste momento, estou aí… Mas talvez ainda me falta atravessar três desertos. Demorou muito tempo e coragem para chegar aqui. Admito que esta posição é defensiva…

 

AE – Defensiva? Tem medo de apagar o seu passado?

HR – Não. É defensiva, na medida em que ainda não estou disponível para dar o salto da fé, no sentido judaico-cristão.

 

AE – Todavia, acredita que Deus é uma necessidade. Nunca sentiu necessidade Dele?

HR – Pessoalmente sim. A minha grande questão ou separação em relação aos católicos é o mistério pascal. Com Deus, estou bem. Custa é o mistério pascal. Não consigo transformar este mistério em luz pascal…

 

AE – Ainda está na fase da Quaresma?

HR – (Solta gargalhada) … Provavelmente.

 

AE – Estamos a poucos metros da «Capela do Rato» (Lisboa), um local emblemático para o diálogo com os gentios.

HR – É verdade. Já estive lá, num desses diálogos com os gentios promovido pelo padre Tolentino Mendonça.

 

AE – A Igreja sabe dialogar com os gentios?

HR – Acho que não. Faltam pessoas como o Tolentino e como D. Manuel Clemente. O bispo Manuel Clemente sabe ser apenas o Manuel Clemente. Sabe escrever um texto de intelectual, historiador, pensador e da Igreja. Domina a linguagem de Atenas e de Jerusalém. Sabe despir as vestes de bispo e dialogar na linguagem da cidade. Isso é fundamental.

 

AE – Para além desses dois nomes, a Igreja tem outras pessoas que sabem dialogar com a cidade.

HR – Provavelmente. Mas quando vejo pessoas a falar em nome da Igreja, noto aquela velha linguagem… Apenas virada para os crentes. É preciso falar para a comunidade alargada.

 

AE – Falar ao «Pátio dos Gentios»

HR – Gosto dessa expressão. A linguagem no espaço público não é assim tão difícil como possa parecer.

 

AE – Já alguma vez leu a Bíblia?

HR – Li alguns livros. O Antigo Testamento marca-me bastante. O livro Job, Abraão… Histórias marcantes. O Livro de Job devido ao sofrimento e ao teste… Ao teste que te obriga a fazer «coisas» que aparentemente são escandalosas. Tenho um amigo – um pastor baptista – que diz: “A fé tem de ser escandalosa”.

 

AE – Esse é o lado desafiante da fé.

HR – Desafiante e fascinante. O ter dúvidas deve fazer parte daquele que tem fé. Aqueles que foram educados na fé e nunca questionam nada, não vão chegar a um estado de maturidade. Ficam na fé infantil.

 

AE – Nos seus tempos de criança andou na catequese?

HR – Não. Não tive educação religiosa. Os meus pais nunca quiseram… No Alentejo, a presença da Igreja é muito rarefeita.

 

AE – Especialmente, nos tempos do bastião…

HR – Mesmo que não seja desse ponto de vista ideológico, a presença do padre só existe nalgumas localidades com mais habitantes. Nas aldeias à volta, a presença do padre é muito rara. Na aldeia dos meus avós, nem sequer há igreja.

 

AE – Algo que não acontece no Norte de Portugal.

HR – Uma vez passei uma Páscoa no Norte… Foi um «choque». A visita pascal foi uma ficção científica para uma pessoa como eu, que vinha do Alentejo. Os meus pais baptizaram-me, mas por uma questão de ritual.

 

AE – O lado simbólico da Igreja não o fascina?

HR – Não. Nesse ponto, sou muito protestante. Gosto da secura dos protestantes no culto. Hoje em dia, muito católicos só vão à Igreja para tirar fotografias do baptizado e do casamento. No último livro, D. Manuel Clemente critica isso.

 

AE – Nota-se que o bispo do Porto o marcou com intensidade.

HR – D. Manuel Clemente é uma das vozes mais importantes de Portugal. Está ao nível de António Barreto e Vasco Pulido Valente. É um dos senadores da vida política portuguesa.

 

AE – Com este percurso de vida, posso considerá-lo um vagabundo do absoluto?

HR – Risos… Actualmente, sei que já não sou um vagabundo do relativismo. Quando andava na Faculdade e lia Nietzsche, pensava que ele era o alfa e o ómega do pensamento.

 

AE – É um trajecto de encruzilhadas…

HR – Começo num trajecto que é comum à minha geração: «Triunfo da vontade» e «imanência do eu». Recusava-se qualquer tipo de transcendência e narrativas que estivessem acima de ti. Não se respeita a pátria, a liberdade, Deus…

Hoje, acho que isso não é possível. São necessárias narrativas…

 

AE – A ausência destas narrativas, deixaram o barco à deriva no alto mar…

HR – D. Manuel Clemente diz e muito bem: “A crise económica que estamos a viver é um efeito de uma crise moral que lhe é anterior”. O culto do «eu» e do individualismo extremo leva a este indivíduo típico da sociedade ocidental.

Perdeu-se a noção que o dinheiro é o resultado do trabalho. Este não nasce das caixas de multibanco.

 

AE – Depois surgem as manifestações….

HR – Fala-se muito em manifestações, mas a mais poderosa que vi, nos últimos anos, em Lisboa, foi quando esteve cá Bento XVI. Costumo dizer aos meus amigos católicos: “Se vocês estão em crise, deixem-se estar em crise… Porque se isso é a vossa crise – meio milhão de pessoas na baixa de Lisboa – eu não vos quero ver com força”. Foi esmagador…

 

AE – Mas depois é necessário dar continuidade a essa mobilização com o activismo diário.

HR – Francisco Lucas Pires dizia que o cristão tem duas maneiras de abordar o espaço público. A primeira – que ele criticava – é assim: “a política tem regras à parte… tem regras diferentes das nossas, portanto o cristão só tem de salvar a sua consciência”. É o cliché de não sujar as mãos. Para Lucas Pires, o cristão devia ir para a luta. Descer do Monte das Oliveiras e ir para a cidade e tentar impor os seus valores à cidade. O cristão não tem, apenas, que salvar a sua consciência, mas salvar a sua cultura.

 

AE – Nota-se que utiliza com frequência metáforas bíblicas…

HR – A Bíblia é um manancial de metáforas e de imagens. Esta semana vou usar o triénio: Pilatos, Barrabás e Cristo. Será a base da minha crónica do «Expresso». Tenha-se fé ou não, a literatura bíblica é boa.

 

AE – E a literatura portuguesa?

HR – Em termos literários, sou muito brasileiro: Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa, Ruben Fonseca… Dos portugueses, gosto de Francisco José Viegas, Eça Queirós, Jorge Sena.

LFS

 

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