Jesus, entre o Judaísmo e o Império: Um diagnóstico

João Lourenço, director do Centro de Estudos de Religiões e Culturas Cardeal Höffner da UCP

As afirmações de fé acerca de Jesus não podem nem devem ser dissociadas do complexo mundo social, religioso e político do seu tempo. Há que enquadrar, por isso mesmo, o acontecimento Jesus, situando-o face ao mundo judaico que o envolve e do qual dependem os parâmetros da sua doutrina e da sua missão e, da mesma forma, perante o poder romano que o condiciona no contexto das expectativas que foi capaz de gerar à sua volta. Por isso, não é possível fazermos uma aproximação à pessoa e à mensagem de Jesus sem ter em conta esse enquadramento, já que muitos dos elementos que os Evangelhos nos facultam como referenciais da sua vida só podem ser compreendidos à luz desse contexto. Importa, igualmente, ter presente que os Evangelhos, principal fonte de que dispomos para o conhecimento de Jesus, não são um livro de ‘história’, mas antes um testemunho acreditado e vivido acerca do Mestre, já com ecos do que foram as primeiras experiências do ser e do agir cristão.

 

1. Jesus e o Judaísmo do seu tempo:

O Judaísmo do período intertestamentário em que Jesus viveu mantinha uma forte componente pluralista, formada por diversos grupos e movimentos, uns mais fiéis à ortodoxia judaica do que outros, embora todos preocupados com a mesma fidelidade a Deus e à Lei. A Lei, para além do Templo e do Culto, era a grande instituição que norteava toda a vida judaica, tanto individual como social, o que justifica de sobremaneira a atenção que os Evangelhos lhe conferem e o cuidado de Jesus no tratamento e no relacionamento com as questões referentes à Torah (Lei). Na verdade, Jesus afirma-se judeu e é assim que a sua mensagem começou por ser aceite e acreditada. As largas referências que o Novo Testamento nos oferece e que definem a sua identidade têm todas elas a marca de um Judaísmo vivido e aceite como paradigma de vida (Jo 4,22: ‘a salvação vem dos judeus). Assim se compreende que Mateus, no seu Evangelho, tenha dedicado alguns capítulos (5-7) ao ensino que Jesus faz aos seus discípulos, num processo de complementaridade mais do que contraposição entre a Lei judaica e a sua mensagem, fazendo com que estes assumam uma nova identidade na sua relação com Deus e na comunidade.

Idêntico processo encontramo-lo também no que diz respeito ao Culto e ao Templo. O aparente relativismo que Jesus faz destas instituições comporta já em si a experiência vivida pela própria comunidade cristã das origens, mesmo estando convictos que a atitude de Jesus para com essas instituições já não constituía um absoluto, tal como sucedia no sistema judaico. A relativização do culto como um fim em si mesmo encontra nas próprias palavras de Jesus a suprema contestação, razão pela qual é acusado de atentar com o ‘lugar sagrado’, de não respeitar o sábado e de se apresentar como sendo ‘filho de Deus’. Estas três acusações não foram criadas nem instituídas pela polémica judeo-cristãs das décadas subsequentes à sua morte, nem motivadas certamente pelos comportamentos das primeiras comunidades cristãs, já que estas mantiveram até tarde, talvez até à década de 70, fortes vínculos de proximidade e de partilha. Tal não se nos afigura possível se isso não tivesse encontrado eco e fundamento nas palavras do Mestre.

No entanto, a ‘questão judaica’ acerca de Jesus não nos parece que seja possível perspectivá-la, de forma correcta e elucidativa, sem termos em conta a ruptura que veio a acontecer no período que se seguiu à destruição do Templo e ao re-posicionamento do Judaísmo que tal acontecimento determinou. De facto, confrontado com o Império que acabava de destruir e esmagar a liberdade desejada, o Judaísmo sentiu a necessidade de se defender de um adversário interno, o cristianismo que emergia de dentro, uma vez que em relação ao inimigo externo já nada havia a fazer. É assim que assistimos não apenas à reorganização do Judaísmo em torno da Lei, mas também à condenação de toda e qualquer alternativa que pudesse enfraquecer a identidade do movimento que tinha sobrevivido à tragédia de 70, ou seja, a corrente farisaica da ‘Escola de Hillel’. Destruído o Templo e terminado o sistema cultual que o sustentava, o Judaísmo reforça agora o poder da Sinagoga que se torna o lugar por excelência da leitura da Escritura e pela qual passam as funções de a interpretar e de determinar a sua canonicidade. É também a partir da Sinagoga que uma parte significativa da literatura judaica extra-bíblica se constituiu como corpo doutrinal e foi redigida. Bastaria, para tanto, lembrar os Targums, os Midrashim, a Mishná, o Talmud e a influência que estes escritos tiveram na consolidação das tradições judaicas e na ‘formatação’ dos códigos doutrinais do Judaísmo. 

É neste contexto que decorre o grande confronto entre o Judaísmo e Jesus, ou seja, entre a Comunidade cristã que dá continuidade e expressão vivencial à mensagem do Mestre e a Sinagoga – expressão do Judaísmo saído do pós-Templo – que visa neutralizar todas as formas de autonomia ou de representação que possam colocar em perigo a frágil identidade que tinha resistido à catástrofe.

Por isso, podemos facilmente perceber que o confronto entre o Judaísmo e Jesus não é apenas o resultado das propostas radicais que o ‘Mestre’ Galileu apresenta, mas também a expressão de uma ruptura progressiva que se vai acentuado entre o movimento que dá continuidade a essas propostas e o sistema judaico que cria à sua volta uma repulsa por tudo o que possa pôr em causa o absoluto da Lei, tal como ela era interpretada pelos Rabinos da época. 

 

2. Jesus face ao domínio do Império: 

No que ao Império diz respeito, a relação entre Jesus e o poder romano está pouco vincada nos testemunhos do tempo, aparecendo quase sempre de forma indirecta nos textos do Novo Testamento. Aliás, as alusões a contactos entre Jesus e a presença romana, salvaguardando o que aos relatos da Paixão diz respeito, parecem reflectir mais aquilo que viria a ser a situação da Comunidade cristã das origens do que a realidade vivida e confrontada pelo próprio. Há, todavia, um confronto que é facilmente constatável; não o sendo directamente, é-o por interpostos executantes do poder romano, no caso concreto os Herodianos. De facto, o Império mostrou sempre uma grande incapacidade de lidar e saber gerir a ‘questão judaica’, pelo que, astutamente, soube utilizar agentes locais para tentar disfarçar e mediar essa dificuldade. É assim que Herodes entra em cena e acabará por prestar um notável serviço ao poder romano que foi aguentando essa situação até ao limite, quando destituiu Arquelão e o fez substituir pelo poder militar que era exercido pelos Procuradores.

É assim que Jesus se vê confrontado, de forma indirecta, pelos partidários de Herodes que mais não eram do que os agentes do ‘status quo’ em termos políticos e sociais.  

De ascendência idumeia, Herodes fora educado em Roma e aí estabelecera contacto com alguns daqueles que viriam a ser os chefes do império, acabando por seu proclamado ‘rei dos judeus’, vassalo e amigo, em 37 (até 4 a.C.), com a missão explícita de restabelecer a paz entre os judeus e pôr cobro as lutas internas entre os diversos grupos que continuavam em cena e que traziam a instabilidade ao império, enfraquecendo-o numa das suas fronteiras mais vulneráveis.

Fiel a este compromisso e desejoso de ganhar a benevolência dos seus protectores, Herodes desenvolve uma política assente em 3 pilares: .procurar ganhar a simpatia dos judeus através de um notável programa de grandes obras e construções, mormente no Templo, servindo-se dos recursos económicos da tribo dos Idumeis que eram ricos comerciantes; perseguição sangrenta e implacável contra todos os inimigos que não eram apenas os seus, mas também os que se oponham à ocupação romana; enfraquecimento e esvaziamento dos poderes das autoridades tradicionais da região, mormente religiosas e sacerdotais.

É neste contexto que emergem os grandes movimentos e grupos de que era composta sociedade judaica ao tempo de Jesus e que assumem importante papel nas narrativas dos evangelhos: Saduceus, Fariseus, Herodianos, Essênios e Zelotas. Como se pode constatar pelos ecos

Como sabemos, não foram pacíficos os contactos entre estes grupos e o movimento de Jesus, embora ele mesmo estivesse a aberto à adesão de todos e encontremos referências elogiosas a alguns deles nas suas próprias palavras. Temos também a presença de ex-membros de outros grupos entre os seus, tal como é o caso de Simão, o zelota. Mas é sobretudo contra a ética farisaica e a forma como os saduceus se ‘colavam’ ao poder político dominante na Judeia que Jesus reage, procurando perspectivar a sua atitude numa verdadeira motivação que valorizasse os valores de Deus e não os interesses dos homens. Apesar de sabermos hoje todo o drama da sua vida e a forma como ele se desenrolou, a grande preocupação de Jesus face à política do Império e dos seus representantes foi sempre a de pautar o seu projecto de vida numa atitude de grande liberdade interior, procurando obedecer mais a Deus do que aos homens (Act 5,29). Isso mesmo se pode constatar pelo episódio do pagamento ou não do tributo a César (Mt 22,15-21).

Por outro lado, o espaço político da Palestina, mormente as chamadas cidades livres da Decápole, com um clima social de forte influência romana, permitiram que Jesus exercesse aí, de forma livre, o seu ministério, o que não sucederia na Judeia, onde existia um forte controle por parte das autoridades religiosas do Judaísmo. De facto, Jesus encontra nesse espaço geográfico um campo propício para o anúncio da sua mensagem, uma vez que aí não podia ser oficialmente acusado de estar a violar os preceitos do judaísmo nem tinha de se submeter à legislação ocasional imposta pelo Sinédrio ou decretada pelos Sumo-Sacerdotes do tempo. Por isso, em diversas passagens, os Evangelhos aludem ao facto dele se ter retirado para a Galileia, percorrendo o território da Decápole ou mesmo refugiando-se em zonas onde não se fazia sentir a autoridade religiosa de Jerusalém. Estes dados, a que nem sempre se presta a devida atenção, são importantes, não apenas para compreender os itinerários de Jesus, mas também para perceber o alcance da sua mensagem. Isto permite-nos perceber como o próprio Jesus tinha consciência que a sua missão devia superar os confins do nacionalismo judaico e as tensões políticas impostas pelo Império e estabelecer uma nova relação entre os diversos povos que habitavam a Palestina.

 

3. Jesus na afirmação da sua autonomia:

De acordo com as informações que nos são facultadas pelos historiadores da época, e também pelos ecos que encontramos nas fontes judaicas e mesmo nos escritos do NT, o ambiente social do tempo de Jesus está marcado por uma forte instabilidade que assenta em duas causas directas: A situação de pobreza em que a maioria da população vive e a opressão constante a que se vêem submetidos pelo poder ocupante.

Deste cenário emerge naturalmente um forte sentimento de revolta que levava ao constante emergir de pretensos Messias que se fazem acreditar através de falsas promessas, visando apenas aliviar as precárias condições em que o povo se encontrava. Todavia, as inúmeras revoltas que se foram sucedendo apenas contribuíram para agravar ainda mais uma situação que de si já era tremendamente penosa.

Os textos da época falam-nos dessa resistência quase permanente à ocupação e das revoltas constantes que eram chefiadas por pretensos Messias que se faziam aclamar um pouco por toda a parte. Tais revoltas são o culminar de um longo processo que envolveu também a época de Jesus e que fez com que Ele tivesse sido visto ou aguardado como mais um do longo rol de pretensos Messias. Disso se faz eco o seu processo de condenação e é este clima de resistência constante que nos ajuda a melhor compreender esse enquadramento e a forma hábil como o poder religioso, representado pelo Sinédrio e a classe sacerdotal, souberam explorar em benefício próprio o clima de tensão existente para se libertarem de alguém que lhes era incómodo. Facilmente nos apercebemos que o processo, tal como ele nos é apresentado nos escritos do NT, é um logro em que o poder político se deixou envolver, sem daí tirar qualquer vantagem. A conjugação de interesses entre o poder político (Império) e o poder religioso (Judaísmo), sempre que isso era conveniente aos dois, parece ter sido também uma constante política por parte da potência ocupante que nunca olhou a meios para alcançar seus fins.

Nesse aspecto, creio que o império romano escreveu nesta parte do mundo uma das folhas mais negras da sua história, uma vez que sem deixar obra de mérito, nem cultural nem social, aqui gastou inutilmente imensos dos seus recursos. Jesus terá contribuído, em boa parte, para começar a partir daí, pela sua mensagem e pelo espírito dos seus seguidores, a destruir o Império nas próprias bases em que ele assentava, apesar disso apenas ter sucedido cerca de 3 séculos depois. 

 João Lourenço, director do Centro de Estudos de Religiões e Culturas Cardeal Höffner da Universidade Católica Portuguesa,

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