Homilia de D. Manuel Clemente nas exéquias de D Júlio Tavares Rebimbas

D. Júlio, bispo do Porto e amigo para sempre

Três meses depois de nos termos reunido nesta catedral para celebrar as exéquias de D. Armindo Lopes Coelho, eis-nos de novo aqui, pedindo agora o eterno repouso de D. Júlio Tavares Rebimbas, Arcebispo-Bispo emérito do Porto, na feliz recompensa dos seus muitos e generosos trabalhos pastorais.

Muitos e generosos, de facto foram. E com uma cadência especialmente rara e exigente, para qualquer percurso episcopal.

Oriundo do Presbitério de Aveiro, onde foi notável pároco de Ílhavo, aí deixando larga obra pastoral e social, percorreu depois Portugal Continental de Sul a Norte, sendo sucessivamente Bispo do Algarve, Auxiliar do Patriarca de Lisboa (com o título de Arcebispo de Mitilene), 1º Bispo de Viana do Castelo e finalmente Bispo do Porto (1982-1997), na exigente sucessão de D. António Ferreira Gomes.

Em todos estes relevantes cargos eclesiais, o Senhor D. Júlio foi dedicado Pastor do Povo de Deus, concretizando o espírito e as determinações do Concílio Vaticano II, quer nas iniciativas que tomou, quer no seu modo cordial e próximo de estar e proceder com todos. Foi constante amigo do seu clero e deixou pelas Dioceses que serviu um rasto de gratidão e simpatia, inteiramente merecidas.

Desde a resignação, residia na Casa Diocesana de Vilar, estrutura de grande importância para a acção pastoral, que edificou com muito empenho e bem denota a sua clarividência.

Não é com este brevíssimo currículo que aqui lembramos D. Júlio e agradecemos a Deus o grande dom da sua vida. Currículo verdadeiro escreveu ele no coração de tanta gente – clérigos, religiosos e leigos – que acompanhou em horas boas ou difíceis, com grande solicitude e amizade repetida. Mais verdadeiro ainda é o que indelevelmente ficou no próprio coração de Deus, onde “a caridade nunca acabará”.

Ouvimos no Evangelho que “naquele tempo, ao ver a multidão, Jesus subiu ao monte e sentou-se. Rodearam-no os discípulos e Ele começou a ensiná-los, dizendo: ‘Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos Céus…’”.

Deixai-me repartir convosco o sentimento que agora mantenho, precisamente a partir deste trecho: Aquele olhar de Jesus sobre a multidão incide particularmente sobre D. Júlio; aquela bem-aventurança enunciada, dirige-se especialmente a ele.

Espírito pobre e disponível teve-o ele em altíssimo grau, só assim se explicando a cadência de nomeações que aceitou, como que montando e desmontando a tenda dos antigos patriarcas, para seguir o apelo divino, eclesialmente mediado.

Foram efectivamente muitas e variadas as suas sucessivas moradas, inesperadas sempre, no tempo e na localização. De Aveiro ao Algarve, onde notavelmente estreou o seu episcopado, há alguma semelhança ribeirinha, e aí se sentiria bem, na primeira aplicação das indicações conciliares. (Aí mesmo o conheci na minha juventude, quando nos visitou numa actividade escutista, perto de Faro, deixando em todos agradabilíssima impressão.)

Menos expectável e quase inédita foi a nomeação seguinte, para Auxiliar do nóvel Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, de saudosa memória. Não me lembro de caso assim, de alguém passar de Bispo Diocesano para Auxiliar dum colega mais jovem e mais recente no episcopado. Mas com D. Júlio não houve hesitação nem problema e a sua estada em Lisboa foi sempre simples, prestável e animadora para todos nós, naqueles tempos complexos e perplexos de antes e depois de 1974.

Contando já serviço em três Dioceses, foi chamado a inaugurar a de Viana do Castelo, com tudo o que implica organizar de raiz uma nova Igreja local. Aí voltou D. Júlio para o Norte, com a mesma discrição e idêntico ânimo, recomeçando sempre.

Alguns anos passados, assumiu a sucessão de D. António Ferreira Gomes, exigente para qualquer prelado, dada a excepcional craveira episcopal, cultural e cívica de quem tinha de substituir. E assim chegou D. Júlio a esta catedral que foi a sua, durante quinze preenchidos anos, de muito labor e solicitude. Em todos deixou a impressão feliz que só deixam os homens bons, em tudo ficou a marca positiva de quem só queria acertar. No final do seu trabalho portuense, a Diocese ganhara muito do cariz pessoal do seu Bispo, em comunhão, simplicidade e bom espírito. Espírito de disponibilidade evangélica, precisamente essa que é conatural ao reino dos Céus.

Com o amor ao clero e a atenção aos pobres, juntava D. Júlio a acertada visão do trabalho conjunto de Secretariados, Associações e Movimentos. Isto mesmo o levou a perspectivar e concluir a Casa Diocesana de Vilar, de que aproveitamos tanto. Obra de grande envergadura, fê-la com a determinação consequente e discreta de quem não desiste das ideias boas e necessárias. Estou certo de que a Diocese não teria hoje a coesão que apresenta sem esta excelente iniciativa, que tanto aproxima militantes e cristãos em geral. – Também por isto, muito obrigado D. Júlio!

Como fiz com o Senhor D. Armindo, também vou incluir aqui, ao modo de testamento pastoral, algumas das últimas reflexões de D. Júlio, praticamente na sua despedida de Bispo diocesano. Retiro-as dum escrito intitulado Palavra aos seminaristas, datado de 2 de Maio de 1997.

Alguns parágrafos referem-se ao clero, cuja alma conhecia bem, com pleno envolvimento paterno. Vivera com os padres de cinco dioceses sucessivas os sonhos e os dramas de antes, durante e depois do Concílio. Considerava que “sendo aqueles que mais de perto e mais dolorosamente sofreram os duros golpes dos últimos cinquenta anos, também foram os que mais assistiram os outros, sem eles, na maioria dos casos, terem consciência da assistência devida”. Não é difícil adivinhar aqui a referência pessoal aos muitos que acompanhara discretamente. Precisamente aos muitos que agora, já diante de Deus, agradecem a solicitude de D. Júlio. Mas, a atitudes destas, só podemos aludir.

Dos padres fala ainda mais, no referido escrito. Homem de Igreja e para a Igreja, assim os divisava, como se divisaria a si mesmo: “A dimensão pastoral da comunhão eclesial leva-nos a considerar uma das mais profundas atitudes espirituais do presbítero, a sua eclesialidade. Com efeito, o ministério presbiteral não é um ministério isolado […]. A sua tarefa é um trabalho eclesial em que está presente um grande amor à Igreja, um cuidado particular pela sua unidade e uma atitude predominantemente reconciliadora nela”. Todos quantos privaram com D. Júlio reconhecê-lo-ão nestas linhas, como o primeiro cumpridor do que estipula aos padres: grande amor à Igreja, cuidado pela sua unidade, atitude reconciliadora sempre.

Finalmente o programa – o seu próprio e especial programa -, quando postula “sacerdotes que evangelizem, tentando abrir o coração dos nossos contemporâneos à experiência de Deus, para que reencontrem a dignidade do homem procurando e fortalecendo a fé, com atenção preferencial aos pobres e oprimidos, […] suscitando na Igreja um laicado responsável, com sentido missionário, com todas as formas de associativismo católico; cuidando especialmente das vocações sacerdotais e consagradas, vocações de serviço, de entrega ao próximo…”.

Amados irmãos e irmãs aqui presentes, como presente está D. Júlio junto de Deus: aquele que sufragamos, de algum modo nos sufraga a nós, para cumprirmos este programa que nos deixou e nada perdeu em treze anos passados.

O seu escrito acabava com palavras que traduziam a sua alma sempre generosa: “Até sempre, amigos e irmãos. Alegria e paz para todos vós…”. Digamos então: “- Até sempre, Senhor D. Júlio! Alegria e paz também para si, que tanto as comunicou a todos!”.

Em nome pessoal e da Diocese, agradeço profundamente a Monsenhor Virgílio Vieira Resende, a Dª Miraldina de Oliveira Novo e a quantos – ao longo da vida, ou em tempos mais próximos – acompanharam de perto o Senhor D. Júlio, com grande solicitude e amizade.

Sé do Porto, 7 de Dezembro de 2010

+ Manuel Clemente

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