Assinala-se este sábado, 20 de novembro, o centenário da morte de Leo Tolstoi (1828-1910). Evocamos a obra do escritor russo com o trecho final de “Ressurreição” (1899).
«Em vez de se deitar, Nekliudov passeou durante muito tempo pelo quarto, de um lado para o outro. O seu caso com Katiucha estava terminado. Deixara de lhe ser útil e este pensamento enchia-o de tristeza e de vergonha. Mas esperava-o uma outra obra que, longe de estar terminada, o atormentava mais do que nunca e exigia toda a sua atividade.
Os terríveis males que observara no decorrer das últimas semanas e sobretudo, o que acabara de presenciar nessa horrível prisão, todos esses males que tinham causado entre outras mortes a do simpático Kryltsov reinavam, triunfantes, sem que entrevisse a menor possibilidade de os destruir ou sequer de os combater.
Na sua imaginação surgiram os milhares de seres degredados, encerrados numa atmosfera pestilenta por generais, promotores e diretores de prisão indiferentes à sorte desses infelizes. Evocou o estranho velho, liberto de tudo, que acusava as autoridades e passava por louco, assim como os cadáveres e o belo rosto de cera de Kryltsov, que morrera num desespero. Como outrora, interrogou-se sobre se era ele, Nekliudov, quem estava louco ou os outros, aqueles que eram cúmplices de todos estes atos pretensamente razoáveis, e a pergunta impunha-se-lhe com uma força nova, reclamando uma resposta.
Cansado de andar enquanto refletia, sentou-se no divã diante do candeeiro e, num gesto maquinal, abriu o Evangelho que o inglês lhe dera e que ele deitara para cima da mesa quando despejou os bolsos. «Dizem que neles se encontra resposta para tudo», pensou, começando a ler a página aberta ao acaso. Era o capítulo XVIII de S. Mateus:
1. Então os discípulos aproximaram-se de Jesus e disseram: quem é o maior no Reino dos céus?
2. E Jesus, tendo chamado uma criança, colocou-a no meio deles e disse:
3. Em verdade vos digo que se não vos transformardes e fordes como esta criança não entrareis no Reino dos céus.
4. E por isso todo aquele que se humilhe como esta criança será o maior no reino dos céus:
«Sim, sim, é realmente isso!», pensou Nekliudov lembrando-se de que apenas sentira consolo e alegria nos momentos em que se humilhara.
5. E aquele que receber esta criança em meu nome, é a mim que recebe.
6. Mas se alguém escandalizar um destes pequenos que em mim creem, melhor seria para ele que lhe suspendessem ao pescoço uma mó de moinho e o lançassem ao fundo do mar.
«Que quer dizer aquele que receber e onde é que ele receberá? E que significa em Meu nome?, perguntava ele a si próprio, ao dar-se conta que estas palavras continuavam vazias de sentido para ele: «E porquê: uma mó de moinho ao pescoço e ao fundo do mar? Não; há qualquer coisa que não é clara, nem exata.» Lembrou-se de que, em várias ocasiões da sua vida, se pusera a ler os Evangelhos e que sempre o afastara dessa leitura a obscuridade de certos passos. Leu os versículos 7, 8, 9 e 10 que falam dos «escândalos» e dizem que eles têm de acontecer na terra, dos castigos pelo fogo do Inferno onde os homens serão precipitados, de certos pequenos anjos que contemplam a face do Pai que está nos Céus. «É pena que tudo isso seja tão incoerente, pois sente-se que lá no fundo há algo de bom.»
11. Porque o Filho do homem veio para salvar o que se tinha perdido.
12. Que vos parece? Se um homem possuísse cem ovelhas e uma delas se tresmalhasse não deixaria ele as outras noventa e nove nas montanhas para ir em busca da que se perdera?
13. E se viesse a achá-la, em verdade vos digo, essa causar-lhe-ia maior alegria do que as noventa e nove que não se extraviaram.
14. A vontade do vosso Pai que está nos céus é igualmente a de que se não perca um único dos seus filhos.
«Sim, a vontade do Pai é que eles não se percam, mas, no entanto ele perecem às centenas e aos milhares. E não existe qualquer maneira de os salvar», disse para consigo.
21. Então Pedro, aproximando-se dele, disse: Senhor, quantas vezes deverei perdoar ao irmão que pecar contra mim? Até sete?
22. Jesus respondeu: não te digo que até sete vezes mas até setenta vezes sete.
23. É por isso que o Reino dos céus é semelhante ao do rei que quis fazer contas com os seus servos.
24. Quando ele se pôs a fazer contas, trouxeram- lhe um que devia dez mil talentos.
25. E não tendo ele com que pagar, o seu senhor o mandou vender, e a sua mulher e filhos, com tudo quanto tinha, para que a dívida fosse paga.
26. Então aquele servo, prostrando-se, o adorava, dizendo: Senhor tem paciência para comigo que eu te pagarei tudo.
27. Então o senhor daquele servo, movido por íntima compaixão, soltou-o e perdoou-lhe a dívida.
28. E quando saiu, aquele servo encontrou um dos seus companheiros que lhe devia cem dinheiros. Agarrou-o e apertou-lhe o pescoço, dizendo: paga-me o que me deves.
29. Então o seu companheiro, prostrando-se a seus pés, implorava-lhe, dizendo: tem paciência para comigo, que eu te pagarei tudo.
30. Mas o outro não quis, e foi metê-lo na prisão até que pagasse a dívida.
31. Os seus companheiros, tendo visto o que acontecera, contristaram-se muito e foram contar ao seu senhor tudo o que se passara.
32. Então o senhor mandou-o à sua presença e disse-lhe: servo malvado, perdoei-te inteiramente a tua dívida porque mo suplicaste.
33.Não devias tu também ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?
«Será possível que seja apenas isto?», exclamou ele após ter lido essas palavras. E a voz interior respondeu-lhe: «Sim, é só isto.»
Aconteceu com Nekliudov o que frequentemente acontece com as pessoas atraídas para a vida espiritual. Um pensamento que a princípio lhes pareceu estranho, paradoxal e até mesmo cómico, encontra confirmações cada vez mais numerosas e torna-se de súbito para elas a verdade mais simples e mais evidente. Foi assim que ele viu que o único meio eficaz de lutar contra os terríveis males de que sofrem os homens consistia em eles se reconhecerem sempre culpados perante Deus e, por conseguinte, incapazes de corrigir os seus semelhantes. Tornou-se evidente que os terríveis males que presenciara nas prisões, bem como a tranquila segurança dos seus responsáveis, provinham apenas de os homens quererem realizar uma coisa impossível: sendo maus, pretenderem corrigir o mal existente. Seres viciosos queriam corrigir outros seres viciosos e imaginavam consegui-lo por meio de castigos corporais. E o resultado era que pessoas cúpidas e necessitadas tinham como profissão o aplicar esses castigos, essas pretensas correções, corrompendo-se eles assim até ao último grau e corrompendo as vítimas. Agora via claramente de onde procediam todos os horrores que lhe fora dado observar e o que era necessário fazer para os suprimir. A resposta que lhe faltava encontrar era a que Cristo tinha dado a Pedro: É preciso perdoar sempre e a todos, perdoar um número incalculável de vezes, porque não há ninguém que não seja culpado e que, portanto possa castigar e corrigir os seus semelhantes.
«Na verdade, é impossível que as coisas sejam tão simples», dizia Nekliudov para consigo. No entanto, ainda que isto lhe parecesse estranho por estar habituado a pensar o contrário, via agora claramente que essa resposta trazia a solução tanto na teoria como na prática. Agora deixara de o preocupar o eterno problema da conduta a ter para com os criminosos. Devia-se então deixá-los impunes? A pergunta só teria sentido se estivesse demonstrado que o castigo diminui a criminalidade e modifica os criminosos. Mas como a realidade demonstra o contrário, tornando evidente que nenhum homem tem poder para modificar outro homem, então, a única atitude sensata é a de renunciar a um procedimento não só inútil como também prejudicial, imoral e cruel. «Durante séculos, homens considerados criminosos foram castigados. E qual foi o resultado? Longe de fazerem desaparecer o crime, esses castigos apenas conseguiram aumentar o número dos criminosos, juntando-lhe ainda agentes do aparelho repressivo: carcereiros, inquiridores, promotores e juizes.» Nekliudov compreendia agora que a sociedade e a ordem social subsistem não graças a esses criminosos legais que julgam e condenam os outros homens, mas porque, apesar de tudo e a despeito dessa aberração, os homens conservam um pouco de amor e de piedade uns pelos outros.
Com a esperança de achar a confirmação dessa ideia nos Evangelhos, Nekliudov pôs-se a lê-los desde o princípio. Quando chegou ao Sermão na Montanha, que sempre o comovia, compreendeu pela primeira vez que os seus conceitos, longe de serem abstratos e de recomendarem uma conduta extraordinária e impossível de manter, eram, pelo contrário, mandamentos de uma aplicação simples, clara, prática, e que bastava segui-los (e isso era facílimo) para instaurar uma organização social completamente diferente, que não só faria desaparecer toda essa violência que tanto indignava Nekliudov, mas permitiria ao homem atingir o bem supremo, o Reino de Deus na Terra.
Esses mandamentos eram cinco:
O primeiro (Mat., V, 21-26), consistia em que o homem não deve matar o seu irmão, nem irritar-se contra ele, nem desprezá-lo ou chamar-lhe louco; se se zangar com alguém, deve reconciliar-se antes de oferecer um sacrifício a Deus, isto é, antes de rezar.
O segundo (Mat., V, 27-32), em que o homem não deve entregar-se à sensualidade, nem desejar uma mulher pela sua beleza, e uma vez casado há de permanecer fiel.
O terceiro (Mat., V, 33-37), em que o homem não deve prometer nada por meio de juramento.
O quarto (Mat., V, 38-48), em que o homem não deve pagar olho por olho, mas oferecer a face direita quando for agredido na esquerda; deve perdoar as ofensas, suportá-las com resignação e não recusar nada do que lhe peçam os seus semelhantes.
O quinto (Mat., V, 43-48), que o homem não deve odiar os seus inimigos e lutar contra eles, mas amá-los, ajudá-los e servi-los.
Nekliudov fitou a chama do candeeiro e ficou imóvel. Recordando a fealdade da nossa existência, imaginou o que ela poderia ser se os homens fossem educados segundo esses mandamentos, e sentiu invadir-lhe a alma um sentimento de entusiasmo que havia muito não sentia. Era como se, após longas angústias e sofrimentos, tivesse encontrado de repente o apaziguamento e a libertação.
Passou a noite acordado e, como sucede a muitas pessoas que relêem os Evangelhos, compreendeu imediatamente o sentido de certas palavras que lera tantas vezes sem sequer as notar. Tal como uma esponja, observou tudo quanto de útil, grave e reconfortante havia nesse livro. Parecia-lhe que já conhecia tudo quanto lia e que estava apenas a confirmar coisas que sabia desde há muito, ainda que só agora começasse a senti-las e a acreditar nelas.
Naquele momento não só acreditava que, se cumprissem estes mandamentos, os homens poderiam alcançar o mais alto grau de felicidade, como estava convencido de que a sua obrigação consiste precisamente em cumpri-los. Neles residia a única razão de ser da vida, e afastar-se desse cumprimento era um erro que arrastava atrás de si o devido castigo. Isto deduzia-se de todos os ensinamentos de Cristo, mas estava expresso com uma força e uma clareza particular na parábola dos vindimadores. Estes imaginavam-se donos do horto que lhe tinham mandado cultivar, que tudo o que ele continha lhes pertencia, e que não tinham outra obrigação senão a de gozar a vida, esquecendo o seu senhor e desembaraçando-se de todos aqueles que lhes faziam recordar a sua existência e as obrigações que tinham para com ele. «Nós agimos de uma maneira muito semelhante – pensou Nekliudov – ao supormos com estúpida segurança que somos donos da nossa própria vida e que ela nos foi dada para que a gozássemos. Isto é absurdo! Se nos mandaram para aqui, foi por vontade de alguém e com uma finalidade determinada. Ora, nós resolvemos viver apenas em função da nossa felicidade. Por isso é natural que nos sentimos mal, como se sentiria um trabalhador que desobedeceu ao seu patrão. A vontade dO Senhor está expressa nesses mandamentos. Só após a sua realização virá o Reino de Deus na Terra e os homens atingirão o mais alto grau de felicidade de que são capazes.»
«Procurai o Reino de Deus e tudo o mais vos será dado por acréscimo.»
«Mas nós procuramos o acréscimo e é natural que não o encontremos. Eis, pois, o objetivo da minha existência. Uma vida termina e outra começa.»
Essa noite foi para Nekliudov o começo du ma nova existência. Não que ele tivesse adotado um outro modo de vida, mas tudo o que lhe aconteceu a partir dessa época assumiu a seus olhos um sentido inteiramente diferente. O futuro nos mostrará qual será o termo desse novo período da sua vida.»
Trad.: Alfredo Brás, Maria Clarinda Brás