Os dilemas de Tolstói: um génio da literatura

Calcula-se que cerca de quatro mil pessoas assistiram ao funeral de Leon Tolstói fará, no próximo dia 20 de Novembro, cem anos. Um número impressionante se se tiver em conta que as cerimónias decorreram na aldeia onde vivia, perto de Tula, e que as autoridades, devido às suas posições contra a Igreja Ortodoxa e contra o império russo, proibiram leitores e admiradores de viajarem de Moscovo ou São Petersburgo.

Nascido a 28 de Agosto de 1828 no seio de uma família nobre russa, Tolstói fica órfão de mãe aos dois anos e sete anos depois perde também o pai. Na Universidade de Kazan (em 1844) começa a sua educação formal. Três depois, abandona a universidade e muda-se para Moscovo. Em 1852 começa a escrever o livro «Infância» e a «Adolescência» em 1854. De volta à sua terra natal (Isnaia Poliana) cria (1859) uma escola na sua propriedade onde lecciona de acordo com os seus ideais pedagógicos.

Era o escritor mais conhecido da sua época, fama que o tempo não esmoreceu. Da monumental «Guerra e Paz» à trágica «Anna Karénina», passando pelas pequenas pérolas que são «A Morte de Ivan Iliitch», «A Sonata de Kreutzer» ou «A Felicidade Familiar», é um autor que atravessa modas e gerações, permanecendo como exemplo de precisão e mestria narrativa.

Desde muito cedo que lhe reconheceram o génio artístico e a sua capacidade única de efabular. Jogava com as personagens e as situações, sendo capaz de combinar uma visão épica com o ritmo e destino individual da personagem. Segundo Filipe Guerra (in: Jornal de Letras, nº 1041) “nunca houve escritor mais biografado e autobiografado (os livros «Infância», «Adolescência» e «Juventude»)”.

No entanto há um adjectivo que não é possível omitir quando se qualifica este escritor: cristão. O homem Tolstói e o escritor Tolstói (nem sempre em sintonia) “foi um cristão que escreveu e praticou princípios anarquistas”  – lê-se no artigo de Filipe Guerra. Numa viagem a Moscovo fica chocado com a pobreza da grande cidade. “Não pode ser, assim não pode ser” – diz. Tem necessidade de fazer algo, a incapacidade consome-o. A mulher (casa com Sophia Behrs em 1862 e teve mais de uma dezena de filhos) tenta consolá-lo.

Com o tempo Tolstói afasta-se cada vez mais da mulher e começa a ter desprezo pelos apetites carnais. Está convencido que o prazer sexual “é um grave defeito” (In: «Oitenta Vidas que a Morte não apaga»). No livro «A Sonata de Kreutzer» prega a relação casta no casamento, no entanto Sophia dá à luz “o seu décimo terceiro filho. Contradições…” (In: «Oitenta Vidas que a Morte não apaga»). Uma vida cheia de dilemas… Preocupava-o a miséria alheia e decide fugir do conforto de sua casa e vai viver para longe de Isnaia.

“Parece-me poder considerar, sem erro, como objectivo da minha vida a aspiração consciente de um completo desenvolvimento de todo o ser. Seria o mais infeliz dos homens se não encontrasse um objectivo para a minha vida, um objectivo geral e útil; útil, porque a alma imortal, ao desenvolver-se, passa naturalmente a um ser superior e mais correspondente à sua natureza” (In: «A Raiz do Mal» de Tolstói).

Depois da profunda crise espiritual que o atormenta, converte-se ao cristianismo e decide adoptar uma vida de pobreza e simplicidade. A Tolstói nada resta senão escrever. Publica: «A Morte de Ivan Iliitch», «A Sonata de Kreutzer», «Senhor e Servo» e «Ressurreição».

Em 1901, na sequência da sua obra «Ressurreição», em que expõe a sua própria concepção da religião, é excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa. Perante este facto responde: “Não partilho, é verdade, a fé do Santo Sínodo, mas creio em Deus, que para mim é o espírito, o amor, o princípio de todas as coisas”. Também o governo passa a considerá-lo uma ameaça e muitos dos seus livros são proibidos.

Um ano antes de morrer decide deixar os direitos de publicação das suas obras e diários ao seu amigo Chertkov (um ex-oficial do exército com quem trava profunda amizade desde 1883). A sua mulher e este discípulo travam uma discussão em torno do «Diário Íntimo de Tolstói», que deve ser publicado depois da sua morte.

No ano da sua morte e com 82 anos viaja pela Rússia de comboio. As más condições da sua viagem acabam por fazê-lo adoecer. No seu diário explica a “a vontade terrível de partir”: “A minha alma aspira, com todas as forças, ao repouso, à solidão, para viver em harmonia com a minha consciência, ou se isto não é possível, para fugir ao desacordo gritante que existe entre a minha vida actual e a minha fé”. Por sua vez, Henry Troyat, biógrafo de Tolstói, escreve: “O seu drama é o de não se poder evadir de uma felicidade material que ele condena”.

Luis Filipe Santos

 

Partilhar:
Scroll to Top
Agência ECCLESIA

GRÁTIS
BAIXAR