A dimensão pastoral da área humana

O presbítero está chamado a ser imagem viva de Cristo e a reflectir em si mesmo as mesmas atitudes humanas e que se devem tornar transparentes numa singular eficácia pastoral (cf. PDV 43). A comunidade cristã tem o direito de ter junto de si um pastor que seja transparência da humanidade de Cristo. João Paulo II adverte bem a dificuldade no alcance deste propósito e por isso, referindo-se a esta transparência, usa a expressão “na medida do possível”, sabendo que o possível é sempre o testemunho de uma personalidade humana que esteja integrada e madura.

A área humana da formação entendida numa perspectiva pastoral deve ter em atenção a formação a novos conteúdos e novas perspectivas. Novos conteúdos na linha das qualidades que um seminarista deve procurar alcançar no processo de identificação em Cristo, e novas perspectivas no horizonte daquelas qualidades e virtudes que a missão pastoral exige. Para que esta formação seja possível é preciso ter em conta em primeiro lugar a centralidade que deve existir neste horizonte formativo a dimensão afectivo-sexual porque se trata exactamente de estarmos ao centro da força energética da pessoa humana. Uma adequada formação humana em sentido pastoral deve exigir uma atenção particular a esta área afectiva da parte dos formadores e da parte do próprio seminarista. Este deve reconhecer em si alguns pressupostos nos quais assenta a formação da própria pessoa: que a pessoa humana como um ser consciente, chamado a crescer na consciência de domínio de si como ser livre e responsável, mas que neste caminho encontra divisões interiores que podem provocar diversas tensões, ora de progresso evolutivo, ora de regresso, mas que cresce no equilíbrio entre estes pólos; deve procurar viver as relações interpessoais como oportunidade e “lugar” da sua realização, como acolhimento e doação, capacitando esta relação a uma atitude de abertura ao transcendente, que pode ser ao mesmo tempo um transcender-se num esforço de alcance do divino, mas também um transcentrar-se na medida em que não é mais o centro de si. Esta última atitude é fundamental na medida em que o seminarista em formação é aquele que vai crescendo na consciência que não deve ser o centro das relações e da vida dos outros e nem deve ser o centro na relação com Deus.

Podemos assim propor uma evolução na atitude de acompanhamento e formação destes campos que vai do centrar-se aos transcentar-se: o seminarista deve fazer um percurso que passa pelo conhecimento de si e das suas capacidades e limites (“centramento”) para que possa iniciar um processo de “descentramento” que se trata de perceber o mistério que a vida é, necessitando de sair de si e das suas convicções para conseguir entrar nesse mesmo mistério. O conhecimento da fase anterior de conhecimento da realidade e da psicodinâmica latente deverá seguir para o passo seguinte de encontro consigo próprio purificando as motivações e as atitudes segundo as aspirações que se criam no seu interior, que exigem determinado modo de desejar. A proposta de Jesus Cristo e do modelo de vida evangélico é fundamental para provocar uma atracção pelos seus valores e estilo de vida, pelo seu modo de ser e de desejar, pelo seu modo de decidir sobre si mesmo e sobre a história. Desejar a Jesus Cristo não só é o grande valor na escolha de uma opção vocacional, mas é também querer configurar-se à sua própria forma de desejar. Um jovem que faça este caminho com seriedade e sendo ajudado com verdade, é confrontado neste momento com uma dialéctica de base porque perceberá a sua distância e diversidade no modo de desejar. Este é o momento em que, olhando para o percurso feito, percebe um caminho de maturação, de auto-conhecimento, de confiança crescente em Deus e de sintonia de desejos, com conflitos interiores que se aperfeiçoam em dinâmica de projecto de crescimento tendo em vista o fim a alcançar que é a paixão activa por Cristo. Ainda que a formação humana segundo esta dinâmica esteja presente em todo o percurso, a consciência e o trabalho nesta dimensão torna-se muito importante e necessário nos primeiros tempos de formação e no Tempo Propedêutico.

A proposta de Jesus Cristo como ideal e realidade a seguir não é apenas do foro espiritual. Como apresentámos, é numa correcta formação humana que devemos apontar Jesus Cristo como proposta de desejo e atracção para que todas as forças da personalidade possam encontrar n’Ele a sua finalização. Na proposta formativa e neste diálogo entre a dimensão humana na forma como já apresentámos e a dimensão pastoral, deve-se agora ter em atenção três âmbitos que são ao mesmo tempo exigência formativa que brota da caridade pastoral de Jesus Cristo:

a) Formar na liberdade. A teologia apresenta-nos a liberdade coma a propriedade essencial do cristão porque fruto do Mistério Pascal de Cristo, mas também como valor que pertence à realidade do amor divino. O Homem é criado livre, para na liberdade fazer as suas opções, não como decisão autoritária sobre a vida, mas como realização segundo um horizonte-esperança que a fé cristã provoca em cada baptizado.

Formar à liberdade é reconhecer a responsabilidade que cada seminarista deve imprimir na sua formação, é reconhecer que é na liberdade que se joga a verdadeira possibilidade de crescimento e que se “configura come obediência convicta e cordial à ‘verdade’ do próprio ser, ao significado do próprio existir” (PDV 44). Só uma formação que reconhece a liberdade como um espaço natural de crescimento responsável é que é garantia de uma resposta vocacional também livre de condições e de um exercício de ministério exercido como resposta livre à missão confiada.

Em espaço formativo de seminário joga-se sempre a dicotomia real entre liberdade e autoridade. É bom recordar que ‘auctoritas’ vem de auger que significa ‘aquele que me faz crescer’. Neste sentido a autoridade é exercida em favor da liberdade de cada um como espaço interior e pessoal de crescimento responsável e ao serviço do próprio bem e da missão a exercer.

 

b) Formar a afectividade. Este campo da formação humana deve merecer uma atenção permanente da parte dos formadores e da auto-formação que o seminarista deve realizar. Só no conhecimento de si e na canalização e integração de todas as forças da personalidade humana é que a proposta do celibato poderá encontrar campo para ser uma resposta livre e humanamente acolhida dentro de si. A maturidade é uma realidade complexa e que não é fácil circunscreve-la totalmente. Podemos entender um seminarista maduro como aquele que adquiriu a capacidade de agir livremente, que integrou e desenvolveu virtudes humanas, que adquiriu uma capacidade de autocontrolo e integração das diversas forças emotivo-afectivas. Esta é também a convicção da PDV:

A educação para o amor responsável e a maturidade afectiva da pessoa tornam-se absolutamente necessárias para quem, como o presbítero, é chamado ao celibato, ou seja, a oferecer, pela graça do Espírito e com a resposta livre da própria vontade, a totalidade do seu amor e da sua solicitude a Jesus Cristo e à Igreja. (PDV 44).

Formar a afectividade não é apenas um elemento da psicologia e da pedagogia formativa, mas é uma exigência daquilo que St. Agostinho chama amoris officium e que nós definíamos em linguagem espiritual como caridade pastoral. A afectividade tem uma componente espiritual enquanto procura criar em cada seminarista uma capacidade de amar como a capacidade de Cristo, que exige predisposições humanas e psicológicas, mas também um sentido transcendente que é dom acolhido e transformante em cada um. Na medida em que o seminário for espaço de formação afectiva, na relação com formadores e seminaristas e for espaço de crescimento no amor de Deus para o amor aos outros, cresce na expectativa de poder ser sinal visível do mesmo amor de Cristo e ser anúncio profético da novidade transformante que é o amor livre de Deus.

c) Formar uma personalidade madura. Este é o objectivo de toda a formação humana já anteriormente visto, mas é a preocupação que perpassa a formação de um pastor. Através da acção educativa em seminário o candidato deve comprovar na sua vida tudo aquilo que implica configurar a sua vontade com a de Cristo para O poder servir na Igreja. A clareza do ideal vocacional e o percurso para o atingir com verdade e vontade são elementos fundamentais para que a personalidade possa ser alicerçada não apenas em referências humanas de crescimento, mas também moldada segundo valores espirituais. Neste sentido é importante que cada um tenha conhecimento de quem é, que se possa trabalhar no conhecimento-de-si através de uma adequada pedagogia nos desejos, impulsos, atitudes. Formar a uma personalidade madura no sentido pastoral é ter como horizonte a atitude-de-pastor que implica formar ao realismo, à moderação, ao equilíbrio, à serenidade, à objectividade, à prudência, à responsabilidade, à capacidade de análise, de reflexão, de controlo emotivo, capacidade de decisão, segurança pessoal e despojamento.

João Alves, padre, Seminário de Sta Joana Princesa, Aveiro

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