Missão: Marcos, Métodos e Teologias

Começou-se nas cidades, ou de cidade em cidade. Assim Cristo, os Apóstolos, especialmente Paulo. E ainda depois, diria Eusébio de Cesareia, já no século IV, salientando este aspecto itinerante e, antes de mais, a conversão do pregador e a pregação: “Discípulos notáveis destes homens, edificaram Igrejas sobre os fundamentos que os Apóstolos tinham começado a estabelecer por toda a parte. Desenvolveram sempre mais a pregação. Lançavam as sementes salutares do reino dos céus em toda a extensão da terra habitada. Com efeito, muitos discípulos foram então marcados no seu espírito pelo Verbo de Deus, com um vivíssimo amor da sabedoria. Primeiro cumpriam o conselho do Senhor, distribuindo os seus bens aos pobres. Depois, deixavam a sua terra para cumprir a função de evangelistas, querendo pregar a palavra da fé aos que ainda a não tinham ouvido […]. Deixavam apenas os fundamentos da fé nos países estrangeiros, aí estabelecendo outros pastores, aos quais confiavam o cuidado de formar aqueles que tinham introduzido na Igreja. Feito isto, voltavam a partir para outros povos e outros países, sustentados pela graça e o socorro divino” (Eusébio de Cesareia, História eclesiástica, III, 37-38). 

Mas o tempo de Eusébio era já o das Igrejas “estabelecidas”, nas cidades do Império de Constantino. A preocupação maior era a de integrar na comunidade cristã, pelo catecumenado, as multidões de aderentes. Como se fosse mais o tempo de receber quem vinha do que procurar quem não estava…

 

Fosse como fosse, o quadro muda com a ruralização geral, subsequente à queda do Império do Ocidente no século V, provocada pelas invasões bárbaras. Foi o tempo da segunda missão europeia, feita em meio rural e prevalentemente por monges, a partir de comunidades estáveis sucessivamente fundadas. Beda o Venerável, conta-nos assim a (re)evangelização da Inglaterra (Kent), feita pelos monges “beneditinos”  de Agostinho de Cantuária, enviados pelo papa Gregório Magno no final do século VI: “Quando entraram na morada que lhes fora oferecida, começaram a imitar a vida apostólica da Igreja primitiva: serviam a Deus rezando assiduamente, velando e jejuando; e pregavam a palavra da vida a todo o que chegasse. […] Rapidamente, muitos [autóctones] acreditaram e foram baptizados, admirados que ficaram com a vida simples e pura [dos monges] e com a doçura da sua celeste doutrina. Perto e a leste da cidade havia uma igreja outrora erigida em honra de S. Martinho [de Tours], quando os romanos ainda habitavam na Grã-Bretanha. […] Aí mesmo começaram a juntar-se, a recitar os salmos, a celebrar a missa, a pregar e a baptizar, até que receberam do rei, entretanto convertido, mais autorização de pregarem em toda a parte e de construir ou restaurar igrejas” (História eclesiástica…, I, 26).

 

Quando as cidades renascerem, precisarão duma nova modalidade missionária, prevalentemente urbana, mas também presente na malha paroquial entretanto desenvolvida e muito ligada a ritos ancestrais e à sacralização de tempos, lugares e coisas, sempre apetecida pela religiosidade popular. E volta-se a insistir na pregação evangélica, certamente mais do que no ritualismo fixo e cíclico. Muito emblemáticos desta terceira “missão” europeia serão os mendicantes, como neste passo de S. Francisco de Assis: “Por este mesmo tempo entrou na Ordem um outro homem de bem, elevando-se a oito o número de irmãos. Reuniu-os a todos o Santo Pai [Francisco] e, depois de longamente lhes ter falado do Reino de Deus, do desprezo do mundo, da renúncia à vontade própria e da sujeição da carne, dividiu-os em quatro grupos e disse-lhes: ‘Ide, caríssimos, dois a dois, por todo o mundo e anunciai aos homens a paz e a penitência para a remissão dos pecados […].’ E recebendo eles com grande júbilo o mandato que a santa obediência lhes confiava, prostraram-se diante do bem-aventurado Pai que depois os abençoou, enternecido e devoto, e disse a cada um: ‘Põe a tua confiança no Senhor e Ele cuidará de ti’. Eram as palavras que sempre repetia quando enviava os seus frades a cumprir qualquer missão” (Tomás de Celano, Vida Primeira, XII, 29).

 

A Idade Moderna trouxe à missão cristã o duplo desafio duma Europa ocidental dividida entre católicos e protestantes e do contacto com outros Continentes, abertos pela expansão ibérica. O Concílio de Trento (1545-1563) insistiu num clero mais pastoral e melhor formado; algumas congregações, entretanto formadas ou reformadas, lançaram-se em novas missões internas ou “populares”, reanimando as comunidades ou o que sobrava destas. Do entusiasmo e da urgência quase “escatológica” com que tantos se lançavam na missão ultramarina, dão-nos conta alguns trechos de S. Francisco Xavier, escritos na Índia: “Viemos por povoações de cristãos, que se converteram há uns oito anos. […] Os cristãos destes lugares, por não terem quem os instrua na nossa fé, somente sabem dizer que são cristãos. […] Quando eu chegava a estas povoações, baptizava todas as crianças por baptizar. […] Ao entrar nos povoados, as crianças não me deixavam rezar o Ofício divino, nem comer, nem dormir, e só queriam que lhes ensinasse algumas orações. […] Como seria ímpio negar-me a pedido tão santo, comecei pela confissão do Pai, do Filho e do Espírito Santo, pelo Credo, Pai-nosso, Ave-Maria, e assim os fui ensinando. Se houvesse quem os instruísse na fé, tenho por certo que seriam bons cristãos. […] Muitas vezes me vem ao pensamento ir aos colégios da Europa, levantando a voz como homem que perdeu o juízo e, principalmente, à Universidade de Paris, falando na Sorbona aos que têm mais letras que vontade para se disporem a frutificar com elas. Quantas almas deixam de ir à glória e vão ao inferno por negligência deles!” (Cartas de 20 de Outubro de 1542 e 15 de Janeiro de 1544). E é um facto que interpelações deste género contagiaram muitos europeus para a missão ultramarina, nos vários espaços descobertos. Concomitantemente, desenvolveram-se missões internas na Europa, como as de Frei António das Chagas, na segunda metade do século XVII, em várias dioceses portuguesas e a pedido dos respectivos bispos. Apenas um curto trecho ilustrativo, quer do que fazia quer do entusiasmo popular que o acompanhava, como se o brasido que restava só o esperasse para atear de novo: “Cursou as estradas, que pareceu próprio mandado por Deus com avisos seus a todas as terras […]: saíam-no a receber povos inteiros, acompanhavam-no turbas pelos caminhos como a Cristo pelos desertos: em suas entradas na freguesias se repicavam os sinos, como nas maiores festas e de festa eram todos os dias que ele lá se detinha nelas; pregando, confessando, ensinando a doutrina cristã e oração mental, fazendo pazes, alcançando perdões e outros serviços de Deus; porque nos tais dias não havia qem trabalhasse mais que pelo ouvir e se confessar” (Padre Manoel Godinho, Vida e morte […] do Venerável Padre Fr. António das Chagas, Lisboa, 1712, p. 68). Podemos dizer que este estilo “moderno” da missão, quer europeu quer ultramarino, se manteve até bem perto de nós, reanimando as comunidades daqui ou criando as novas de além. Ganharão um tom mais apologético na Europa pós-Revolução Francesa, mas não diferem essencialmente nos tópicos nem nos modos.

 

O século XX, porém inaugurará um novo período, qual quinta etapa missionária, caracterizada quer pela indigenização da Igreja nos antigos territórios coloniais, quer pela redescoberta da Europa como espaço de missão, com outra densidade sócio cultural. Da primeira referência, é exemplo o seguinte passo da Carta apostólica Maximum illud, de Bento XV, 30 de Novembro de 1919: “Assinalemos, finalmente, aquilo que deve constituir uma das preocupações principais de todo o director de missão: a formação e a organização de um clero indígena […]. Os papas sempre pediram com insistência aos superiores de missão para fazerem uma alta ideia dessa parte tão importante do seu múnus e empregarem nela todos os seus esforços. […] É lamentável que, a despeito dessa vontade dos sumos pontífices, regiões nascidas há séculos para a fé católica ainda se achem desprovidas de clero indígena digno deste nome”. Sabemos como a partir daqui se caminhou muito mais depressa nesse sentido. Entretanto, a própria Europa exigiu recomeços, ficando célebre o apelo de H. Godin e Y. Daniel em La France, pays de mission?, 1943: “Há toda uma população parisiense, mesmo educada, que não tem nada de cristão. […] Como todas as missões, a conquista do proletariado é um trabalho duro e que pode ficar muito tempo estéril; também exige a todos os que o empreendem que se entreguem a ele totalmente. […] Uma tarefa de tal género exige padres absolutamente decididos, que se entreguem a este trabalho preferido de Cristo sem esperarem muito poder voltar atrás. Há partidas para a missão que não deixam pensar no regresso”.

 

O final do século XX trouxe-nos algo de diferente como repto missionário e neo-evangelizador, porque menos estruturado e mais arredio à oferta tradicional das comunidades de partida e de destino. Partia-se duma comunidade mais ou menos definida, para perto ou para longe, para convidar ao regresso, ou ao ingresso numa nova que se criasse. Hoje, a rarefacção mental e sentimental pós-moderna não gosta de definir posições ou oposições e a complexificação da sociedade, com as suas itinerâncias e várias pertenças, bem como as múltiplas conexões mediáticas e informáticas, tornam menos simples a indispensável reconfiguração comunitária, indispensável para a vida cristã. Seja como for, é esse o objectivo declarado da nova evangelização, e mesmo da missão em geral: “É urgente, sem dúvida, refazer em toda a parte o tecido cristão da sociedade humana. Mas a condição é a de se refazer o tecido cristão das próprias comunidades eclesiais que vivem nesses países e nessas nações. […] Esta nova evangelização, dirigida não apenas aos indivíduos mas a inteiras faixas de população, nas suas diversas situações, ambientes e culturas, tem por fim formar comunidades eclesiais maduras, onde a fé desabroche e realize todo o seu significado originário de adesão à pessoa de Cristo e ao seu Evangelho, de encontro e de comunhão sacramental com Ele, de existência vivida na caridade e no serviço” (João Paulo II, Exortação apostólica pós-sinodal Christifideles laici, 1988, nº 34).

Porto, 23 de Outubro de 2010

+ Manuel Clemente

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