Homilia de D. Carlos Azevedo na cerimónia de ordenação presbiteral

Ser padre é ser profeta e pastor de modo sacerdotal

 

A concluir os diálogos de despedida da Última Ceia, Jesus, na chamada oração sacerdotal, afirma cumprir a missão de dar a conhecer o amor do Pai pela humanidade. Nunca tinha aparecido um profeta com exercício sacerdotal e qualidades de pastor. É absolutamente novo. Aconteceu em plenitude o mandato profético vivido por Jeremias: “Irás onde eu te enviar e dirás tudo o que Eu te mandar” (Jer. 1, 7). “Ponho as minhas palavras na tua boca” (1,9). Jesus entrega a palavra de Deus, qual profeta, em consumação plena de si mesmo, qual pastor e todo o seu mistério se derrama em hora orante, na intimidade sem tempo, qual sacerdote. Aqui se concentra a síntese do seu ministério recebido totalmente do Pai, transformado em obediência, feita oração. Tudo o que Cristo Jesus fez e disse tinha o objectivo de manifestar o amor do Pai pelo mundo; tudo é glória eterna do Pai; tudo consagra na verdade, entregando a vida até ao fim pelos seus.

O Evangelho de João condensa, de modo orante, a transmissão da vivência de Jesus para os apóstolos. Jesus vê o anúncio do Reino de Deus, consumado, agora, na fé dos discípulos. Estes pescadores da Galileia passam a ser consagrados na verdade de Jesus, na sua unidade perfeita com o Pai. Permanecendo com os pés na terra, deixam de ser do mundo, porque são e estão no Pai. Opera-se a consagração na verdade eterna e ao mesmo tempo na missão, na proclamação desta Palavra da verdade, na Igreja. O sacrifício fecundo consagra os actos da vida, sem querer reservar para si um momento sequer da sua existência. O prolongamento da Palavra de Jesus é autoridade dos seus, mantida na unidade dos seus. Perdida esta unidade, perde-se, por assim dizer, a palavra original, criadora, salvadora de Deus no mundo. Perde-se a autoridade. A unidade é a revelação suprema da glória de Deus, do amor eterno do Pai e do Filho. A glória de Deus é a comunhão plena, perfeita, total. Os nossos esforços e desejos unificam-se, convertem-se em oração, em intercessão e em poder de Jesus. Ser padre é ser profeta e pastor de modo sacerdotal, no estilo de Cristo.

Estamos muito presos a uma concepção de verdade como oposta à mentira. Envolvidos por aparências, habituados ao mundo das ficções, submersos em finanças virtuais, temos dificuldade em captar o que seja ser consagrado na verdade. Consagrados na verdade quer dizer projectados na missão, segundo o dinamismo interior do Espírito da verdade. A santidade evangélica ordena-se à missão, confiada por Deus a cada ser humano. Cada pessoa é chamada a submeter-se aos caminhos invisíveis de Deus. A verdade de Deus não se mede pelos frutos exteriores.

Seremos tanto mais verdadeiros quanto nos unirmos a Jesus, quanto gostamos de estar mais nele do que em nós, quanto participarmos da sua Verdade.

Caro Miguel, em cada tua entrega pelos outros, em cada celebração vivida com verdade, em cada gesto de congregação e de ternura chegue o povo de Deus a compreender o amor eterno, a entrega que o Pai fez no seu Filho Jesus. O teu modo de ser padre seja profecia do gozo da eternidade, estando no mundo. Não desperdices a graça de ser consagrado na verdade de Jesus e na vivência profunda do sacerdócio cristão.

2. Esta beleza de vida dos consagrados, totalmente centrada na verdade do amor de Deus, sofre múltiplas incompreensões. Estas pertencem também à oração de Jesus: o mundo odiou-os porque não são do mundo. Não pertencemos ao mundo. Estamos, mas não somos. O mundo aborrece quem não lhe pertence. A Palavra de Deus contraria os gostos e critérios mundanos. O mundo aplaude os que se passam para ele.

Deus promete a Jeremias: “Não terás medo pois eu estou contigo para te livrar” (Jer. 1, 8). Jesus não pede a Deus para retirar os apóstolos do mundo, mas implora também para os livrar do Maligno, para os arrancar ao poder do mal. Jesus chama cada um como é, com o pedaço de mundo que lhe está na carne e no sangue, nos sentidos e nas relações. A consagração na verdade é transportada em vasos de barro. Só a força do Espírito faz perder o gosto de viver de si próprio, graças a uma atracção que liberta para dar a vida pelo mundo. Os cristãos não amaldiçoam o mundo, negam o seu domínio com espírito novo. Guardar da malícia é fundamental porque o espírito mundano insinua-se com facilidade, veste-se de anjo, é pai da mentira. O ambiente mundano de mil modos entorpece a missão.

Podemos experimentar a solidão da fé, aceitar o fracasso do afastamento de muitos, enfrentar a incredulidade e até o ódio, mas a permanente entrega, a constante misericórdia converte, oferece o perdão.

Caro Miguel, o mundo sente que te perdeu. Se és servo de Jesus Cristo não és do mundo. Se guardares a Palavra dentro de ti o mundo perde-te para sempre. Os discípulos não pertencem mais ao mundo. Contudo, também podem deitar mão ao arado e olhar para trás. És livre para sonhar mais do que podes porque Deus te sustenta com graças que não imaginas. Ainda que muitos e muitas te queiram seus, sê só de Deus e serás para todos profeta, sacerdote e pastor.

 

3. Sem este sacerdócio, sem esta oração como sacrifício eterno de Jesus, como imolação e oferta, não há profeta, nem pastor. Já que os discípulos não provêm do mundo, Deus consagra-os, sela-os com a virtude da Palavra para que não cedam diante das atracções mundanas que impressionam e esmagam. A consagração na verdade e o não ser do mundo configuram algumas atitudes pastorais, bem identificadas na Carta de Pedro: Apascentai governando não constrangidos, mas de boa vontade, tal como Deus quer; não por ganância, mas por dedicação; não como dominadores, mas como modelos do rebanho (1Pd 5,2-4). Não ser do mundo é resistir a estas formas de poder, à maneira do mundo. O ministério presbiteral precisa de gente livre, de corações libertos, de pastores felizes e disponíveis na obediência, sem má cara, livres de ganância, dispostos à austeridade alegre e solidária, misericordiosa e compassiva. Qualquer comportamento despótico e dominador contraria a perspectiva de serviço, de diaconia, opõe-se à fraternidade cristã.

Caros irmãos e irmãs: Deus tem poucos que lhe pertencem, tem poucos aliados e o mundo vence pelo impacto do número, o peso da quantidade. Jesus não arranca do perigo, atira para o risco e sem defesas.

Alguns têm sido tentados a pensar que quem não é do mundo não o pode ganhar para Deus. Aduzem uma lógica convincente: ninguém ganha outro para si, enquanto não o conhecer. Quem não é do mundo, é um estranho, não sabe ser próximo, não faz como Jesus que deixou o céu para ser próximo dos feridos e pecadores. Manter-se à distância é ser como os escribas e fariseus! Esta argumentação demagógica tem produzido estragos, prejudicado a novidade do testemunho cristão. Os critérios do mundo trabalham suavemente sobre os discípulos de Jesus e pouco a pouco mudam-nos em mundo, como o lobo assimila a si a ovelha que devora. Os discípulos consagram-se pelo exercício da sua missão, não pelo mérito das manifestações, nem pelas devoções beatas, nem pelo aparato clerical.

Não somos do mundo mas não nos sentimos melhores do que os do mundo. Não sabemos quanto duraremos no bem. Avançar, com temor e humildade, permite-nos abandonar a leviandade de coração. Amamos os do mundo para que, no seu dia e hora, passem para Deus. O amor humilde fará apressar os passos e o temor fará ir vendo onde pôr os pés para não cair. Quem é de Deus ama todo o bem, quer todo o bem, favorece todo o bem, louva todo o bem, junta-se com os desejosos do bem, defende os que lutam pelo bem, ama a verdade e não a vaidade; dedica-se, mas não por interesses contrários ao bem comum; evita contendas, mas não foge dos combates pelo bem.

Tendo Jesus por modelo não tememos estar no mundo, ser do nosso tempo, sem nos submetermos ao mundano. Jesus rompeu com estruturas de dominação e amou cada pessoa do seu tempo, como Bom e Belo Pastor, amou com a frontalidade profética de quem era de Deus e exigia obediência radical e liberdade inventiva.

Caríssimo Miguel: não sejas padre à maneira deste grupo ou daquele movimento, desta última corrente ou à moda antiga. Tem como modelo Jesus e serás tu mesmo modelo do rebanho porque profeta de Deus, sacerdote de Cristo e pastor segundo o Espírito Santo.

Monte Abraão, 10-07-2010 (Ordenação Presbiteral de Miguel Ribeiro)

+ Carlos Moreira Azevedo, Bispo auxiliar de Lisboa

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