As palavras proferidas por Bento XVI no Encontro com o “mundo da cultura” no Centro Cultural de Belém em Lisboa constituem motivo de júbilo e reflexão aprofundada. Sob os ecos do pensamento de Santo Agostinho, o Papa refere uma tensão, que por vezes chega ao conflito, entre o presente e a tradição. O presente surge absolutizado pelo mundo, desligado do património cultural do passado e sem a intenção de “delinear o futuro”. Partindo do conhecimento das nossas raízes culturais e históricas, o Papa lembrou a “forte tradição” do “Povo Português”, marcada por três factores: a milenária influência cristã; um sentido de responsabilidade global e a afirmação da aventura dos Descobrimentos e do entusiasmo missionário. Invocou, assim, a “partilha do dom da fé com outros povos” e a afirmação de um ideal de universalidade e de fraternidade inspirador de uma “aventura comum”. E se é verdade que falou da influência do laicismo, não deixou de enfatizar a existência de um universo ético e de um “ideal” a cumprir no relacionamento com o resto do mundo. No fundo, importa termos consciência do conflito – “entre a tradição e o presente” – que se exprime numa crise da verdade. “Um povo que deixa de saber qual é a sua verdade fica perdido nos labirintos do tempo e da história, sem valores claramente definidos, sem objectivos grandiosos claramente enunciados”. As sociedades modernas alimentam naturalmente no seu seio essas tensões entre o serviço da sociedade e a sabedoria, portadora de um “sentido da vida e da história” – e é preciso retirar consequên-cias positivas dessa natural tensão.
Com Santo Agostinho, são os três presentes que se confrontam e completam: o presente passado e a tradição recebida das gerações que nos antecederam, o presente presente que obriga à tomada de consciência da contemporaneidade e o presente futuro que comporta a esperança. Do que se trata é de compreender que a fidelidade à pessoa humana exige a fidelidade à verdade, única garantia de liberdade. E de que Verdade fala Bento XVI? De uma Verdade divina, que se liga ao “Logos” eterno, ao Verbo feito carne, a Deus feito pessoa. Fala-nos, porém, de uma leitura da verdade, que obriga a agir para compreender – “a conivência da Igreja, na sua adesão firme ao carácter perene da ‘verdade’, com respeito por outras verdades ou com as verdades dos outros, ligando essa busca a uma aprendizagem, que continua”. E é sintomático que, com o mundo da cultura, o Papa fale de uma aprendizagem com “outras verdades” e com “as verdades dos outros”. E foi evidente a preocupação de Bento XVI falar para fora e não para dentro da Igreja – abrindo horizontes e assumindo claramente um diálogo com a modernidade. Afinal, a ligação entre fé e razão obriga ao lançamento dessas pontes, ou não fora o sucessor de Pedro o Pontifex maximus, o grande artífice de pontes duradouras de diálogo e de respeito, de liberdade e dignidade. Referindo-se a S. João, e citando a encíclica “Caritas in Veritate” o Papa diz-nos que “a fidelidade à pessoa humana exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade e da possibilidade de um desenvolvimento humano integral”. E se a Verdade, para os cristãos, é divina, o certo é que Jesus Cristo personifica a humanidade e obriga à tomada de consciência da diversidade, do pluralismo e dos outros. Assim, a liberdade obriga a trilhar vários caminhos – a partir do “carácter perene da verdade” e do respeito dialogante pelas diferenças. E a “Igreja deve entrar em diálogo com o mundo em que vive”, como afirmou Paulo VI. Essa atitude dialógica deve, porém, fazer-se sem ambiguidades e com respeito por todos. Demarcando terreno relativamente ao relativismo, Ratzinger fala de “diversidade cultural”, da “existência da cultura do outro” e de enriquecimento através do bem, da verdade e da beleza.
E, ao citar Camões, na invocação do dar “novos mundos ao mundo”, falou dos portugueses como “obreiros da cultura em todas as suas formas” e desafiou os cultores do pensamento, da ciência e da arte a não terem medo de se confrontar com a fonte primeira e última da beleza. Mas, mais do que isso, continuando a falar para fora, invocou enfaticamente o Concílio Vaticano II e “uma renovada consciência da tradição católica”, com vista a uma “civilização do amor”, capaz de assumir a modernidade, incorporando críticas, superando-as e evitando “erros e becos sem saída”. É por isso oportuno “levar as pessoas a olharem para além das coisas penúltimas e porem-se à procura das últimas”. Isto, sem esquecer quem começa pelas penúltimas e por aí trilha o caminho. E terminou com uma imagem felicíssima a falar dos navegadores do oceano, e a apelar aos criadores culturais como “navegantes do Bem, da Verdade e da Beleza”. “Fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza”.
Guilherme d’Oliveira Martins
Presidente do CNC