Luzes e sombras da música barroca em Grândola

Depois de ter percorrido Santiago do Cacém, Castro Verde, Almodôvar, Alvito e Beja, a sexta edição do Festival Terras sem Sombra de Música Sacra termina a sua edição de 2010 com um concerto do grupo Sete Lágrimas na igreja matriz de Grândola, no dia 8 de Maio, às 21.30 horas.

A iniciativa, levada a cabo em parceria com o apoio do município e da paróquia locais, subordina-se ao título “Kleine Musik: Música de Heinrich Schütz e Ivan Moody” e, fazendo justiça à temática escolhida para o Festival no ano em curso, cruza a música antiga com a criação contemporânea, num diálogo fecundo entre dois grandes mestres europeus.

Heinrich Schütz (1585-1672) compôs, entre 1636 e 1639, duas séries de “Pequenos Concertos Espirituais” (“Kleine geistliche Konzerte”) para um grupo de uma a cinco vozes e baixo contínuo, que correspondem à atormentada espiritualidade de um período de dor e sofrimento como foi o da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). As pequenas composições inspiraram-se em variadas fontes textuais, desde a tradução alemã ou latina do Antigo Testamento aos escritos de Santo Agostinho.

Chamando a si a tradição da “pequena música” do Barroco, os responsáveis pelo consort Sete Lágrimas, tenores Filipe Faria e Sérgio Peixoto, decidiram tornar realidade um olhar actual sobre a obra do maior compositor alemão do século XVII partindo da mesma selecção de textos que há quatro séculos estiveram na base da sua composição. Trata-se, como salientam, de “um reflexo de processos criativos, não de linguagens – um encontro entre o novo e o antigo, um espelho de hoje,” construído sobre a grande música de ontem graças à cumplicidade de Ivan Moody (nascido em 1964).

Este, por seu turno, não esconde a satisfação por ter aceitado o convite, nada fácil, que lhe endereçaram. “Sempre considerei extremamente impressionante a música de Schütz. É impressionante pela forma como contextualiza a exuberância do Sul num tecido musical do Norte (marcado pela austeridade, em virtude das sequelas da guerra) – e como este estoicismo aparente esconde tanta riqueza espiritual”.

Moody, aliás, frisa o ponto de partida da sua intervenção: “Reflectir como num espelho era uma ideia central do projecto, devendo ter-se presente que todos os espelhos distorcem; que ponto de partida criativo poderá ser mais rico do que o esforço de reflectir e complementar um Mestre através de um «espelho em enigma»?”

Vinho Velho em Odres Novos

Sete Lágrimas é um consort de músicos especializados em música antiga e contemporânea – dirigido pelos tenores Filipe Faria e Sérgio Peixoto – que explora a ténue fronteira entre a música erudita e as tradições seculares.

Após intensa pesquisa, o grupo apresentou-se pela primeira vez, em 2000, com a estreia nacional do Primeiro Livro de Madrigais para Duas Vozes, de Thomas Morley (1595). Este repertório encerra em si a magia do Renascimento europeu, que fazia da música e dos paradigmas clássicos uma forma de arte nova apta a comunicar com o público de um modo ainda não experimentado, e lançou o mote para os projectos futuros do “ensemble”.

Desde 2006 que Sete Lágrimas é o grupo residente do Festival Terras sem Sombra. Em 2007 editou Lachrimæ #1 (MU Records), que alcançou enorme sucesso. Entre as iniciativas seguintes destaca-se Diaspora.pt, uma viagem em torno das relações estéticas, conceptuais e linguísticas da música dos países dos cinco continentes percorridos pelos Descobrimentos, pela secular diáspora cultural portuguesa e pela lusofonia. O grupo vem ainda desenvolvendo projectos de composição de música original e arranjos de música antiga para o cinema, o teatro e a televisão.

A ligação de Sete Lágrimas ao Alentejo reflectiu-se no seu quarto trabalho discográfico, Silêncio, com a estreia de trabalhos especialmente encomendadas aos compositores Ivan Moody, Andrew Smith e João Madureira, no âmbito da homenagem prestada a D. Manuel Franco Falcão, bispo emérito de Beja, por ocasião do 25.º aniversário do Departamento do Património Histórico e Artístico [DPHA] da mesma Diocese.

Este projecto de nova música sacra para instrumentos antigos promove um olhar contemporâneo sobre a Bíblia que resultou nas obras “Genesis I-III”, “Lamentation I-III” e “Passio I-III”, além de peças da tradição medieval de Inglaterra e da Rússia e das “Cantigas de Santa Maria”, de Afonso X. Foi considerado pela crítica como o melhor disco de música clássica editado em 2009.

Terras sem Sombra regista evolução positiva

O Festival de Música Sacra do Baixo Alentejo, promovido desde 2006 pelo serviço responsável pelo património da Diocese de Beja e pela Arte das Musas, caracteriza-se por ser itinerante e ter lugar em alguns das principais igrejas históricas da região, visando a captação de um público alargado, algo da maior importância em terras que permanecem votadas a um esquecimento quase absoluto por parte dos principais circuitos da música erudita portuguesa.

Mas a iniciativa, pensada como uma “pequena História da Música” e realizada com o apoio da Direcção-Geral das Artes (Ministério da Cultura), da Delta e das autarquias dos concelhos visitados, tem outros traços distintivos nos seus cromossomas.

“É nossa preocupação oferecer palco a jovens intérpretes e agrupamentos profissionais a quem o país dá poucas oportunidades de actuarem entre nós, embora muitos deles possuam carreiras internacionais”, salienta José António Falcão, director do DPHA. E acrescenta logo a seguir: “a música constitui um dos melhores aliados para dar vida a monumentos que enfrentam o problema do abandono e do esquecimento por parte das comunidades”.

De facto, o Festival tem ajudado a colocar o Alentejo no roteiro da música internacional e está a captar participantes não só deste território mas também de outros pontos do país e até da vizinha Espanha. Os reflexos disto sentem-se em vários âmbitos, valorizando o turismo numa época baixa para a região.

Segundo Falcão, “2010 veio consolidar a tendência, já detectada em anos anteriores, para o alargamento da esfera geográfica do Festival; um terço do nosso público vem de outras regiões, nomeadamente do Algarve, Grande Lisboa, Extremadura e Andaluzia, mas não é inusual a presença de espectadores de Coimbra, Porto ou Madrid”.

Na edição que está prestes a terminar contou-se sempre com “casa cheia”, apesar das condições atmosféricas terem sido, por vezes, adversas.

Outro aspecto a realçar, de acordo com as entidades organizadoras, prende-se com a adesão do público jovem, o que levou a programar este ano um concerto pedagógico – experiência que se pretende vir a repetir, à semelhança de outras actividades do Festival, como as palestras e visitas que antecedem cada concerto ou a conferência de fundo, a cargo de especialistas em musicologia.

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