Sobre o Programa de estabilidade e crescimento (PEC)

Posição do Grupo de Trabalho «Economia e Sociedade» da Comissão Nacional Justiça e Paz

1. Considerando a importância de que se reveste o Programa de estabilidade e crescimento (PEC) recentemente apresentado pelo Governo à Comissão Europeia, o Grupo de trabalho «Economia e Sociedade» (GTES) da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) considera seu dever e responsabilidade manifestar a sua opinião sobre as orientações de política financeira, económica e social constantes desse documento, em virtude das implicações que as mesmas poderão ter na vida pessoal e colectiva dos portugueses, nos próximos anos. Movem-nos preocupações pela construção de uma sociedade mais justa, mais inclusiva, mais solidária e onde seja possível um verdadeiro desenvolvimento humano. ´

2. Dada a situação financeira do País, e o modo como ela é apreciada pelo mercado internacional e pelas instâncias comunitárias, mais cedo ou mais tarde, haveria de surgir a necessidade de um programa de equilíbrio das contas públicas e de contenção do endividamento dos portugueses, para dar segurança aos credores, permitir o acesso ao crédito no mercado internacional e conter o respectivo custo. Por isso, não subestimamos o esforço feito pelo Governo para apresentar um programa de ajustamento credível, com recurso a corte na despesa pública e aumento das receitas do Estado.

Esse esforço deveria ser acompanhado por uma activa procura de consenso entre os partidos na aplicação de medidas incluídas, ou a incluir, no PEC, manifestando a seriedade com que encaram a situação do país

3. Ainda assim, o GTES quer expressar, desde já, as suas preocupações quanto às possíveis consequências negativas que poderão decorrer da respectiva execução, se, entretanto, não forem seguidos outros rumos e tomadas outras medidas directamente votadas ao desenvolvimento sócioeconómico, à contenção do desemprego, à correcção das desigualdades nas suas várias vertentes e à erradicação da pobreza, que continua a atingir parte significativa da população portuguesa.

4. Reconhecemos que é delicada a situação em que o nosso País se encontra face aos mercados financeiros, nomeadamente no que respeita ao nível de défice público, recentemente agravado pela necessidade de fazer face aos efeitos da crise mundial; ao endividamento público e privado já alcançado e correspondentes encargos com a dívida externa. Sabemos, também, como, no actual contexto de liberalização do mercado financeiro, os credores adquiriram e conservam tal poder que os torna particularmente exigentes em matéria de garantias e de custo do dinheiro.

Em nosso entender, porém, o PEC sendo um esforço do Governo português para ir ao encontro dessas exigências de credibilidade externa, não deve esconder ou ignorar os verdadeiros problemas estruturais de um País que enfrenta um processo de reestruturação acelerada do seu processo produtivo, num contexto de globalização e financeirização crescentes e de crise mundial por superar. Assim sendo, o problema português de conseguir o equilíbrio financeiro não é uma situação singular que apenas diga respeito aos portugueses, antes está correlacionada com o ambiente externo.

5. Por isso, o GTES denuncia a presente desregulação do mercado financeiro mundial – que cria situações muito gravosas para as pequenas economias em dificuldade – e desejaria que, particularmente no âmbito da União Europeia, se fizessem os indispensáveis esforços para que, com a maior brevidade, se encontrem caminhos de uma eficiente regulação financeira do mercado mundial.

6. Por outro lado, consideramos que a União europeia e a sua moeda única só terão viabilidade se vier a existir, a curto prazo, uma coordenação reforçada da política económica e financeira de todo o espaço comunitário, a qual, em nosso entender, deve visar objectivos de desenvolvimento humano sustentável (do ponto de vista ambiental e de coesão social). Uma tal politica deverá vincular o Banco Central Europeu (BCE), de modo a que a política monetária da responsabilidade desta entidade esteja efectivamente ao serviço da economia comunitária e seus estados-membros.

7. Também não aceitamos a brandura com que as instâncias comunitárias têm agido em relação aos offshores ou o facto insólito de o BCE não dispor de capacidade para apoiar os países em dificuldade financeira, obrigando estes a ter de recorrer ao crédito dos bancos privados e a suportar juros abusivos e demais condições não raro especulativas, e, por outro lado, consentindo que os bancos privados se refinanciem junto do BCE a taxas de juro quase nulas.

8. Merece, igualmente, denúncia e reprovação o excessivo poder adquirido por certas agências de rating e o papel que as suas classificações têm, de facto, nas condições de acesso ao crédito e custo do mesmo. Não se compreende que a União Europeia não se tenha ainda dotado de uma unidade independente de avaliação de risco financeiro ao serviço de uma governação comunitária.

9. Portugal, como País membro da União, deve usar da sua capacidade de intervenção para que a U.E. disponha da competência e dos meios necessários para aperfeiçoar os seus mecanismos de governação à escala comunitária e de influência na construção de uma forma adequada de regulação democrática do mercado global.

10. Relativamente às medidas preconizadas no PEC, cabe chamar a atenção para algumas das suas possíveis consequências negativas que, ao longo da sua vigência, deverão, do nosso ponto de vista, ser corrigidas, bem como apontar caminhos que, em nosso entender, deveriam ser seguidos.

11. Quanto aos cortes nas despesas, estão contempladas no PEC metas aceitáveis no que se refere à contenção de gastos gerais considerados supérfluos, maior racionalização nas aquisições de bens e, principalmente, uma redução significativa com gastos em consultadorias em outsourcing. É  fundamental que a Administração pública procure patamares de eficiência e eficácia, aos menores custos.

12. Já no que respeita a reduções na despesa social, é oportuno lembrar que aquela não pode ser vista como um custo: deve antes ser considerada como um investimento no capital humano e, bem assim, como um instrumento de coesão social e uma condição necessária para cumprir um dever de equidade e solidariedade, sobretudo em tempos de crise económica.

13. Com as dificuldades que se avizinham, é fundamental que o Estado não deixe de cumprir o seu papel de protecção social, em particular no combate à pobreza e à protecção dos desempregados. De igual forma, deve assegurar a oferta pública de bens e serviços essenciais, com destaque para a educação e a saúde, com adequados padrões de qualidade.

14. Quanto ao previsto congelamento dos salários na administração pública, entendemos que se trata de uma medida injusta e com previsíveis consequências negativas do ponto de vista da desejada sustentação da actividade económica, pelo lado da procura. Mesmo admitindo ser necessário reduzir o volume total das despesas com pessoal, tal redução deverá fazer-se de modo equitativo, aproveitando para consagrar um leque salarial mais justo e restringindo o recurso a prémios, despesas de representação e outras de que beneficiam os gestores e os quadros técnicos superiores. Nunca à custa de redução indiscriminada de salários, pela via do respectivo congelamento. Não pode esquecer-se que o padrão de remunerações da Administração Pública serve de referência ao sector privado.

15. Idêntico reparo merece a intenção do PEC quanto à diminuição do emprego na função pública, medida, também ela perigosa, dado que há sectores da Administração e serviços públicos onde, já hoje, existem manifestos défices de recursos humanos. Por outro lado, não pode esquecer-se o elevado nível de desemprego existente no País e o papel que, nestas circunstâncias, o Estado (Administração central e Autarquias) pode desempenhar na necessária sustentação do emprego.

16. No que toca à despesa em investimento público, dado o seu impacto em termos de incentivo à actividade económica e na criação de emprego, entende o GTES que importa, sobretudo, apostar numa selectividade rigorosa e orientada por critérios de satisfação de necessidades reais e de bem comum. O PEC prevê a desaceleração em alguns projectos de investimento público, o que parece sensato, mas não deveria descurar os investimentos públicos destinados à melhoria da qualidade de vida dos cidadãos ou a servirem de incentivo à modernização e reestruturação do tecido produtivo.

17. A este propósito, cabe lembrar que as pequenas obras públicas de desenvolvimento local se apresentam com efeitos, directos e indirectos, relevantes do ponto de vista da utilização dos recursos humanos locais e absorção do desemprego, além de que se traduzem, imediatamente, no bemestar das respectivas populações locais, servindo, por isso, objectivos de coesão social, que não podem deixar de ser contemplados em qualquer 4 estratégia de ajustamento. O incentivo à expansão da economia social e solidária deveria merecer a devida consideração.

18. No que concerne ao aumento das receitas públicas, entendemos que na execução do PEC não deve perder-se de vista a necessidade de corrigir as grandes desigualdades na repartição da riqueza e do rendimento existentes no País e aproveitar esta oportunidade para proceder a uma adequada reforma do nosso sistema fiscal e de contribuição para a Segurança Social.

19. Julgamos que, neste período de ajustamento, seria admissível o recurso a novas fontes de receita, como, por exemplo, a constituição de um Fundo de emergência consignado a objectivos de erradicação da pobreza ou de criação de emprego, com base num adicional de tributação a recair sobre espectáculos e divertimentos ou bens considerados de luxo.

20. Do mesmo modo, considera o GTES que se impõe um esforço complementar para acelerar a cobrança de montantes elevados de impostos em dívida assim como a tomada de medidas de prevenção da fuga considerável de receitas fiscais através de paraísos fiscais.

21. Prevê o PEC o recurso à alienação de participações do Estado num conjunto de empresas estratégicas. Entendemos que abdicar dessas participações é prescindir de uma certa margem de intervenção na economia, além de que se trata de obter receitas imediatas de uma só vez, mas prescindindo de receitas futuras.

22. No âmbito das parcerias público-privadas, é de desejar que se procedam a reapreciações de cada situação concreta, de molde a procurar acautelar não só a esperada qualidade dos bens contratualizados como também a partilha equitativa dos correspondentes riscos financeiros.

23. Reconhece o GTES que não é da sua competência debruçar-se sobre aspectos de ordem técnica implicados no PEC e na sua execução; tão pouco considera que deva pronunciar-se em termos análogos à das diferentes facções partidárias ou parceiros sociais. As considerações feitas neste documento relevam de uma concepção de economia não divorciada de uma ética social que tem como referenciais a dignidade da pessoa humana e o bem comum.

24. É neste horizonte, que julgamos dever alertar para que a consequência mais negativa que poderia decorrer deste PEC é ele alimentar a ilusão de que constitui a chave para enfrentar os nossos problemas de desenvolvimento a médio prazo. Com efeito, o País precisa de um rumo para um desenvolvimento sustentável, do ponto de vista ambiental e de coesão social e não é um mero crescimento económico que o permite alcançar.

25. O modelo de crescimento implícito no PEC parece sobretudo assentar nas exportações. Ora, hoje é geralmente reconhecido que um tal modelo não é garantia de real desenvolvimento e não assegura que sejam alcançados objectivos, em nosso entender fundamentais, como sejam: a equitativa repartição do emprego e do rendimento; um trabalho digno para todos; a igualdade de oportunidades no acesso ao progresso; a prioridade da erradicação da pobreza; a promoção da qualidade de vida dos cidadãos.

26. Como já em outras ocasiões a CNJP afirmou, insistimos em que a pobreza não é uma fatalidade. Significa, apenas, que há necessidades básicas de uma boa parte da população a que o mercado, nas actuais circunstâncias, não dá resposta e, por conseguinte, a erradicação da pobreza deve ser considerada um objectivo explícito de toda a política pública e não uma mera questão residual ou hipotético efeito secundário de um qualquer crescimento económico. É fácil demonstrar que pode haver elevado índice de crescimento económico com agravamento da pobreza e da exclusão social.

27. Por outro lado, todos nós reconhecemos que há necessidades colectivas no domínio da educação, da saúde, da segurança, da habitação, que estão por satisfazer e cuja satisfação deve ser tida como objectivo a atingir por uma estratégia de desenvolvimento que, para o efeito trace metas concretas, pois estas não se alcançarão apenas com o mero crescimento económico entregue a uma lógica do mercado sob a hegemonia dos interesses do capital financeiro internacional.

28. Não pode, igualmente, esquecer-se que está por enfrentar o processo de reestruturação do processo produtivo em curso e a passagem a uma economia baseada no conhecimento. Há sinais positivos devidamente destacados no texto do PEC, nomeadamente no domínio da expansão dos serviços e na intensidade da componente tecnológica, mas há que traçar uma estratégia clara de transição que permita fazer face aos custos sociais das indispensáveis reestruturações e sua repartição equitativa.

29. Com esta sua tomada de posição, o Grupo de Trabalho «Economia e Sociedade» da CNJP quer oferecer às comunidades cristãs e à sociedade civil um estímulo para que reforcem o seu interesse e empenhamento na construção de um mundo mais justo e por isso também mais feliz. Dirige-se, igualmente, aos poderes públicos na perspectiva de um serviço de cidadania e de responsabilidade democrática, que reclama maior empenhamento por parte do governo e de outras entidades com participação nas instâncias comunitárias no sentido de pugnar por uma construção europeia mais sólida e mais respeitadora de valores éticos comuns.  

O Grupo de Trabalho “Economia e sociedade”

27 Abril 2010

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