Maria Carlos Ramos
Há desafios que não são novos, revestem-se sim de contornos particulares e de urgências diferentes e se a seu tempo não forem considerados pelas instituições tornam-se estranhas e motivo de vergonha para as gerações seguintes.
O papel das mulheres na igreja e o acesso das mulheres ao sacerdócio pertencem a esses desafios que se tem preferido pôr no fim da lista das prioridades ou inquietações da Igreja.
A Igreja podê-las-á adiar mas não as poderá evitar.
Hoje existem inúmeras organizações católicas que, um pouco por todo o mundo, há décadas reflectem sobre o papel das mulheres na Igreja Católica e em particular sobre a ordenação sacerdotal das mulheres. A discussão tem sido acesa entre académicos e a hierarquia da Igreja. As questões de ordem bíblica e teológica levantadas têm cada vez menos força.
Reconhecidas academias, de grande confiança da igreja, têm-se debruçado sobre estes assuntos. Entre elas, uma comissão ad hoc de Direito Canónico, que em 1995, no 57º Encontro Anual, da Canon Law Society of América, chegou à conclusão que a ordenação das mulheres na igreja antiga tinha um carácter sacramental e propôs a reintrodução desta ordenação na Igreja Católica contemporânea.
Há pelo menos uma organização, chamada Roman Catholic Womenpriests, nos Estados Unidos, que se autodenomina “católica” e que, com conhecimento público, ordena mulheres, com carácter sacramental, desde 2002. Ainda que se tenha conhecimento que Ludmila Javorova, a primeira mulher ordenada sacerdotisa a 28 de Dezembro de 1970 – tempo que estas mulheres designam por ‘tempo de catacumbas’.
Este grupo defende que a ordenação destas mulheres é válida, de acordo com o Direito Canónico da Igreja Católica, pois foram ordenadas por Bispos Católicos, que estão na linha da sucessão apostólica. Com mulheres da África do Sul, Áustria, Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Lituânia e Suíça, a Roman Catholic Womenpriests tem uma vida pastoral organizada e dinâmica, cobrindo todos os estados nos Estados Unidos e as paróquias em que estas mulheres estão, tendo-se registado um crescente acolhimento por parte dos católicos norte-americanos, inclusivamente por parte de um grande número de padres.
Em jeito de resposta à Canon Law Society of America, mas provavelmente para clarificar e rectificar a Roman Catholic Womenpriests, a Comissão Teológica Internacional do Vaticano, em 2002 declara reconhecer que, nas comunidades da igreja das origens, algumas mulheres foram ordenadas, ainda que mantenha vastas reservas quanto ao carácter sacramental dessas ordenações. A Comissão acrescenta que tais ordenações não se realizaram no seio da Igreja Católica, mas sim em movimentos heréticos, porque muito cedo os Padres da Igreja as declinaram.
Em 2008 a Roman Catholic Womenpriests foi excomungada juntamente com os bispos e os padres que a apoiaram e hoje vive apartada da Igreja. Na sua heresia afirmam: «O sensus fidelium falou. Nós, as mulheres não estamos a pedir permissão para ser sacerdotisas. Estamos a tomar de volta o nosso legítimo lugar ao serviço de Deus.»
Num olhar crítico sobre a história da igreja encontramos, desde a primeira hora, a presença e o compromisso das mulheres na construção das comunidades cristãs. Muitas vezes e de muitos modos, ao longo da história da igreja, encontramos mulheres que se levantam e protestam contra uma igreja masculina na sua forma de ser e agir. Qual trabalho de respigador que procura sementes perdidas no restolho, as mulheres peneiraram a história para, por entre a imensidade e complexidade dos factos, encontrarem pequenos e humildes vestígios: nomes, breves referências, lápides, histórias de vida de mulheres. A maior parte das vezes encontram a completa omissão ou simplesmente o mutismo.
Tem sido esse trabalho que faz com que as mulheres reclamem um novo olhar e uma nova ordem social, económica, política e religiosa.
As mulheres fazem hoje, com os dados novos, uma depuração e uma desconstrução das narrativas que as moldaram. Heréticas ou não, muitas mulheres descobrem que fora da igreja também há salvação. Sós ou em grupos preferem os caminhos da mística e da espiritualidade ao discurso religioso.
Não basta uma homilia com laivos de linguagem inclusiva: ‘Caríssimas irmãs, Caríssimos irmãos…’; não basta que algumas mulheres ensinem teologia; não basta afirmar que ‘elas tem dignidade’ ou que ‘elas têm vocação’, não basta exaltar a maternidade e o papel que as mulheres têm na vida social e económica.
As mulheres são hoje mais exigentes. Subestimá-las é um erro porque foi dito aos antigos e a nós também: «Não fostes vós que me escolhestes; fui Eu que vos escolhi a vós e vos destinei a ir e a dar fruto, e fruto que permaneça» (Jo 15,16)
Que as nossas filhas tenham a coragem de nos perdoar a lentidão de coração e a fraca inteligência.
«De manhã cedo, dizeis: ‘Hoje temos tempestade, pois o céu está de um vermelho sombrio.’ Como se vê, sabeis interpretar o aspecto do céu; mas, quanto aos sinais dos tempos, não sois capazes de os interpretar!» (Mt 16,3)
Foi no perscrutar dos tempos que, em cada tempo, a Igreja procurou ser sinal de esperança.
E se nos deixássemos tomar pela dúvida e pelo desassossego? Afinal «o vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasce do Espírito.» (Jo 3,8)
Maria Carlos Ramos, GRAAL