Alocução de D. Manuel Clemente no Te Deum pelo 5.º aniversário da eleição do Papa Bento XVI

Amados irmãos e irmãs, aqui reunidos para dar graças a Deus pela pessoa e o ministério do Santo Padre Bento XVI

 

 

O primeiro sentimento propriamente cristão é sempre de acção de graças. Podemos até dizer que, quando assim não seja, é a nossa definição, como discípulos de Jesus Cristo, que está em causa.

Na verdade, o cristianismo de cada um e de todos só desperta quando nos começamos a sentir profundamente agraciados. Pelo dom da vida, antes de mais, e pela eternidade da mesma, a partir da ressurreição de Cristo.

Ressurreição d’Ele, que, pelo seu Espírito, nos vai ressuscitando também a nós. Espírito Santo que nos faz filhos de Deus em Cristo. Espírito que em nós clama: “Abba! Pai!”, permitindo-nos dizer tudo quanto a oração do Pai Nosso enuncia, começando pela santificação do nome divino.

A nossa principal celebração litúrgica chama-se precisamente “Acção de Graças” (Eucaristia). Nela reconhecemos tudo quanto Deus nos oferece em Cristo, agradecendo a Palavra e o Pão da Vida, em que o Filho Eterno se oferece como alimento absoluto da nossa fome essencial. Esta oferta de Cristo, nunca por demais reconhecida, é o lugar definitivo do retorno gratíssimo ao Pai que O enviou e, pelo Espírito, mantém presente e oferecido à Igreja e, através da Igreja, ao mundo. A todas as imensas fomes e necessidades deste mundo.

Sim, irmãos e irmãs, nós guardamos as palavras de Cristo, como foram ditas a Nicodemos, naquela noite feita dia: “Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único, para que todo o que n’Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16).

É por isto, também, que na Liturgia cristã se podem e devem incluir todas as circunstâncias humanas, desde que em gratidão, oferta e esperança; agradecendo até a última esperança, aquela que persiste diante da morte, ou dos seus múltiplos sinais. Nada que Cristo não tenha assumido do presépio à cruz, nada que não tenha sido salvo pelo seu sentimento filial, para com o Pai, e absolutamente fraterno e solidário, para connosco. 

Mas a acção de graças que nos define na essencial atitude cristã, não se circunscreve à celebração eucarística em sentido estrito. Dela se alarga à vida em geral, para que continue eucarística.

Como agora acontece no Te Deum que cantamos na passagem do 5º aniversário pontifício do Papa Bento XVI. Na feliz ocorrência, damos graças a Deus pelo ministério de Pedro; e damos graças também pelo pontífice que actualmente lhe dá nome e figura.

 Lembramos o trecho evangélico. Simão é “Pedro”, porque na firmeza da sua fé nos firmamos também nós. Por graça e disposição divinas, a fé de Pedro sustenta como rocha firme a fé de toda a Igreja, mantendo-a na confissão de Jesus como “Cristo”, ungido pelo espírito, Filho de Deus e connosco irmanado, em salvação oferecida.

Assim foi e assim continua a ser, na já longa série de nomes que Pedro foi tendo na Igreja, até ao de Bento que hoje usa. Como naquele dia em Cesareia de Filipe, quando Jesus perguntou aos discípulos sobre o que os homens diziam d’Ele. Tudo quanto vem a seguir, ganha nas actuais circunstâncias do pontificado de Bento XVI um particularíssimo acerto: “Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: ‘Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo.’ Jesus disse-lhe em resposta: ‘És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne nem o sangue quem to revelou, mas o meu Pai que está nos céus. Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno nada poderão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus, e tudo quanto ligares na terra ficará ligado nos céus, e tudo quanto desligares na terra será desligado nos céus’” (Mt 16, 16-19).

Em especial para nós, cristãos católicos, é graça e encargo reconhecer na série bimilenar dos sucessores de Pedro a concretização geral desta promessa de Cristo. Não encontraremos mesmo, em qualquer outra realidade histórica e institucional, algo de semelhante ao ministério petrino-papal, quer na fidelidade dogmática, quer na capacidade de se retomar e propor, do modo mais adequado a cada época.

Como na nossa agora. O Papa Ratzinger trouxe ao pontificado, na sucessão da grande figura de João Paulo II, o contributo muito oportuno da sua personalidade fortíssima, nos aspectos doutrinais e práticos.

Intelectualmente, como inteligência aguda e aplicada, quer à tradição eclesial, quer aos muitos anos já vividos, da Alemanha a Roma, na preparação, realização e aplicação do Concílio Vaticano II, fielmente interpretado. Como professor de Teologia, como Bispo e Cardeal junto do Papa Wojtyla, em muitas aulas, conferências e obras escritas, nos debates com intelectuais de relevo, crentes e não crentes, o actual Pontífice é, indubitavelmente, uma das vozes mais ouvidas e dos pensamentos mais seguidos, por todos os que não desistem de compreender e aprofundar tudo quanto à humanidade respeite. E isto mesmo em tempo de interrogações gerais e desistências múltiplas. Aliás, desde o princípio do seu pontificado, têm-se sucedido as referências positivas e até laudatórias ao seu exercício de razão, mesmo – e às vezes sobretudo – por parte de pensadores não confessionais.

É marca distintiva do verdadeiro intelectual a capacidade de manter a serenidade do pensamento e a tranquilidade da escrita, por mais perturbado que esteja o tempo e por mais melindroso que seja o assunto. Também neste ponto é notável a figura de Bento XVI: não ilude a questão, não precipita o argumento, não antecipa a conclusão e não bloqueia a leitura. Um exemplo ímpar de verdadeiro diálogo, que acredita na racionalidade comum e oferece ao interlocutor constantes motivos de reflexão e subsídios fecundos para finalmente perceber. Serenamente, partilha o caminho feito, disponível para prosseguir, com as sugestões que a realidade continue a oferecer. Comprova afinal a potencialidade da Tradição cristã, que criativamente guarda.

Recordamos certamente a sua primeira encíclica, Deus Caritas Est, e como as orientações pastorais e as indicações práticas são antecedidas por um dos mais claros e bem preenchidos resumos de quanto à afectividade humana respeita. O mesmo se diga das encíclicas seguintes, sobre a esperança e sobre os critérios de resolução da actual crise sócio-económica mundial, em termos de caridade na verdade. Ninguém fica defraudado na expectativa ou no tempo que dedique a seguir o magistério de Bento XVI. Muito pelo contrário, terá repetidas surpresas, deparando com ideias singulares e modos originais de apresentar verdades de sempre na linguagem do momento.

Três exemplos apenas. Na exortação Sacramentum Caritatis, nº 11, o Papa não receou referir-se deste modo à própria transubstanciação eucarística: “A conversão substancial do pão e do vinho no seu corpo e no seu sangue [de Cristo] insere dentro da criação o princípio duma mudança radical, como uma espécie de ‘fissão nuclear’ (para utilizar uma imagem hoje bem conhecida de todos nós), verificada no mais íntimo do ser; uma mudança destinada a suscitar um processo de transformação da realidade, cujo termo último é a transfiguração do mundo inteiro, até chegar àquela condição em que Deus seja tudo em todos (1 Cor 15, 28)”. Na encíclica Spe Salvi, nº 2, também não hesitou em caracterizar muito modernamente a esperança: “Em linguagem actual, dir-se-ia: a mensagem cristã não era só ‘informativa’, mas ‘performativa’. Significa isto que o Evangelho não é apenas uma comunicação de realidades que se podem saber, mas uma comunicação que gera factos e muda a vida. A porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente, foi-lhe dada uma vida nova”. E, em 8 Dezembro passado, no tradicional acto de veneração à Imaculada Conceição na Praça de Espanha, em Roma, o Papa soube ser particularmente incisivo na denúncia de muita vertigem mediática corrente e dos seus efeitos alienantes: “… cada dia, através dos jornais, da televisão e da rádio, o mal é narrado, repetido e amplificado, habituando-nos às coisas mais horríveis […]. O coração endurece-se e os pensamentos obscurecem-se. […] Os mass media tendem a fazer com que nos sintamos sempre ‘espectadores’, como se o mal se referisse somente aos outros, e como se certas coisas nunca pudessem acontecer. Contudo somos sempre ‘actores’ e, tanto no mal como no bem, o nosso comportamento tem influência sobre os outros”.

Os exemplos continuariam, como decerto nos surpreenderão em muito do que nos disser em breve e, particularmente, aqui no Porto. Só um espírito excepcionalmente lúcido e atento consegue falar assim, motivando qualquer auditório minimamente interessado. Como maximamente estamos nós, e sempre gratos.

 

Personalidade forte, também nas aplicações práticas. O exercício racional nunca separou Bento XVI da realidade eclesial e mundial, no que esta traga de mais concreto e interpelante, rumo à idoneidade evangélica.

Certamente recordamos as suas meditações para a Via Sacra no Coliseu de Roma, pouco tempo antes da morte de João Paulo II. Aí aludia com palavras fortes – e porventura inesperadas – às graves contrafacções por vezes observadas na Igreja e nos seus ministros, que urgia corrigir e ultrapassar. Pois bem, desde que assumiu o pontificado, Bento XVI tem sido incansável na análise e correcção de abusos, reforçando-nos a todos no mesmo sentido e dando ao mundo um exemplo ímpar de reforma institucional, que certamente estimulará outros a fazerem o mesmo nos seus próprios campos.

Lucidez e coerência, também não têm faltado a Bento XVI na abordagem doutras temáticas sensíveis, desde o campo ecuménico e inter-religioso a tudo o que respeite à vida humana, da concepção à morte natural. E pena é que a agenda e a pressa mediáticas não captem nem transmitam, em geral, a linha de pensamento e argumentação do Pontífice, ficando-se frequentemente por alguma alusão que, tirada do contexto, ocasione ou alimente a polémica. Não são raros os que, lendo depois o que Bento XVI integralmente disse, vêm reconhecer-lhe oportunidade e razão. 

Digo por fim, amados irmãos e irmãs, que, dando muitas graças a Deus pelo actual pontificado, devemos igualmente trabalhar para que o seu magistério seja mais acolhido e encontre mais consequência na nossa vida pessoal e comunitária. Como ouvíamos no diálogo entre Jesus e Pedro, o ministério e a graça do Papa existem na Igreja e para a Igreja, como solidez e fidelidade evangélicas mais garantidas. Apelo por isso às comunidades católicas da Diocese do Porto, prestes a receberem a visita papal, que se comprometam a divulgar e aprofundar, entre os seus membros e no meio envolvente, os pronunciamentos de Bento XVI, passados, actuais e futuros. Ser cristão é receber tudo quanto Cristo nos oferece: em Pedro e nos seus sucessores, Cristo garante-nos uma particular companhia e um constante apoio, certo e seguro, para a Igreja e para o mundo.

E, como ouvimos o primeiro Papa garantir aos antigos presbíteros, ouviremos todos dentro de dias Bento XVI assegurar-nos aqui no Porto, por palavras semelhantes, a Cristo e a nós referidas: “Quando o Príncipe dos pastores aparecer, recebereis a coroa de glória que jamais se ofuscará!” (1 Ped 5, 4).

Sé do Porto, 18 de Abril de 2010

+ Manuel Clemente

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