Pe. Joaquim Carreira das Neves
O actual Papa é olhado pela elite intelectual como um grande pensador, ao mesmo tempo filósofo e, sobretudo, teólogo. A obra bibliográfica de Bento XVI soma uns seiscentos títulos. De todos sobressai o primeiro volume do livro Jesus de Nazaré, que já atingiu dois milhões de exemplares. Também são bem conhecidos os seus diálogos com filósofos agnósticos e a sua posição ética e política sobre a Europa e o mundo.
Pediram-me para apresentar o rosto e o pensamento do teólogo e do Papa na sua relação com o Judaísmo. O teólogo Joseph Ratzinger aborda o Judaísmo em todos os trabalhos teológicos que recorrem às Escrituras Hebraicas (Antigo Testamento-AT) e, como sabemos, não há qualquer abordagem de teologia cristã que não pressuponha um exame analéptico ao A.T. Na sua análise exegética ao AT é importante reconhecer que Ratzinger cita continuamente os exegetas mais recentes, especialmente os alemães, católicos e protestantes. De todos os seus estudos ao AT gostaria de referir o seu pensamento sobre o “pecado original”.
Perante a letra do mito da criação (Gn 1-3), Ratzinger é do parecer que a narrativa mitológica deve ser compreendida a partir da chave hermenêutica das duas imagens, a do “jardim” e a da “serpente”. A serpente simbolizava para os judeus os cultos da fertilidade, patentes na religião dos cananeus que viviam paredes-meias com os judeus depois da conquista da Terra Prometida. Os judeus eram atraídos por estes cultos e, deste modo, abandonavam o Deus da Aliança. O pecado consiste neste abandono da Aliança de um Deus Único, Santo, Indizível, com leis próprias. O povo era atraído pelos deuses concretos dos cananeus e suas liturgias de “delírio e êxtase” (1). Ratzinger não refere o pensamento de Santo Agostinho que influenciou a Igreja de modo muito negativo, mas realça o pecado “original” de todos quantos vêm a este mundo alterado por não aceitarem a Aliança de Deus. “Nisso podemos dizer que reside a raiz do pecado, sob a forma de negação, por parte dos seres humanos, da sua condição de criaturas, na medida em que recusam aceitar a norma e as limitações que nelas estão implícitas. Eles não querem ser criaturas, não querem estar sujeitos a uma norma, não querem ser dependentes… querem ser Deus” (2).
Esta maneira própria de interpretar o AT é próprio de um grande teólogo que não se prende à tradição cristã depois de Santo Agostinho. Entretanto, o teólogo Joseph Ratzinger é nomeado bispo, arcebispo, cardeal e, finalmente, Papa. Na entrevista, como Papa, que concede ao jornalista Peter Seewald, em 2005, ao ser interrogado sobre o “pecado original”, já refere Santo Agostinho e a doutrina “oficial” da Igreja (3). E é a partir desta obra que descortinamos o pensamento de Joseph Ratzinger (Bento XVI) sobre o judaísmo.
O jornalista começa por lhe perguntar: Qual a razão que levou Deus a eleger um povo? E porquê esse em particular? J. Ratzinger responde: “O Antigo Testamento, em especial no Deuteronómio, sublinha repetidamente a singularidade desta eleição. (…) Não é possível explicar racionalmente esta eleição que permanece um mistério. O ensinamento que daqui podemos retirar é que é Deu quem escolhe. Ele não escolhe para excluir o outro, mas para aceder a uns através dos outros, para entrar no jogo da história”.
O jornalista refere, depois, o exílio dos três mil anos de história, e pergunta: Por que motivo o Egipto dos faraós foi tão grande e poderoso, e o povo com que Deus estabeleceu a sua aliança foi perseguido através dos séculos, expulso e torturado, até à tentativa de aniquilação absoluta com o holocausto? J. Ratzinger responde: “As categorias de Deus são diferentes. A eleição de Deus não confere grandeza no sentido das categorias terrenas. (…) Eis porque foi um povo em permanente risco de ser esmagado, entalado entre duas grandes potências, o Egipto e a Babilónia. Deus escreve a sua própria história em qualquer coisa que não num poder mundano. Daí que o importante na Igreja não seja o poder terreno, mas o facto de sempre encarnar e representar a alteridade de Deus. (…) É um verdadeiro enigma que esse povo diminuto, tanto tempo sem uma terra nem qualquer instituição política, existindo somente na sua dispersão pelo mundo, conserve, apesar de tudo, a sua religião, que mantenha a sua identidade, que continue a ser Israel, que os judeus tenham permanecido judeus e continuado a ser um povo ao longo dos dois mil anos que passaram sem pátria. Se mais não houver, este fenómeno por si só permitiria entrever que alguma coisa de diferente está aqui em causa. (…) Neste sentido, é notório que há mais coisas em jogo do que casualidades históricas. Todas as grandes potências daquela época já desapareceram. Já não existem nem os antigos egípcios, nem os babilónios, nem os assírios. Israel permanece, ensina-nos algo sobre a firmeza e, inclusivamente, sobre o mistério de Deus.”
O jornalista volta a perguntar: Os judeus são ainda o povo eleito de Deus? E J. Ratzinger responde: “Esta é uma questão muito debatida nos últimos tempos. É óbvio que os judeus mantêm uma relação especial com Deus e que Ele não os abandona. E esta também é a perspectiva do Novo Testamento. Paulo diz-nos na Epístola aos Romanos: “No final todo o Israel será conduzido ao redil”. A outra pergunta é: Até que ponto, depois dos acontecimentos do Novo Testamento, depois da criação da Igreja, povo de Deus escolhido entre todos os povos, uma vida baseada no Antigo Testamento que se fecha ao que é novo, procedente de Cristo, continua a ser um caminho válido? Existem hoje as mais diferentes teorias a este respeito. Como cristãos, estamos convencidos de que o AT está internamente orientado para Cristo e de que só encontra a sua autêntica resposta, em sentido pleno, quando é lido a partir de Cristo. Com efeito, o cristianismo não é uma religião por oposição à religião de Israel, é o Antigo Testamento lido à luz de Cristo. (…) Desse modo, o Novo Testamento não é um enxerto. Nem a nossa relação com o AT consiste em nos apropriarmos ilegalmente de algo que, na verdade, pertence a outros, consiste sim na existência de um caminho interno que deixa o AT reduzido a um fragmento inacabado se não for assumido pelo Novo Testamento. Esta é uma das condições basilares do cristianismo. Mas esta convicção corre paralelamente a outra, a de que Israel tem hoje uma missão especial. É verdade que esperamos o momento em que também Israel diga sim a Cristo. (…) Por isso este povo continua a figurar de modo especial no plano divino.”
O jornalista volta a perguntar: Quer isto dizer que os judeus têm de reconhecer o Messias? Responde J. Ratzinger: “É no que acreditamos. (…) Na verdade, nós os cristãos sempre saberemos que Cristo é também o Messias de Israel. Quando e de que maneira se realizará a união entre judeus e gentios – a unidade do povo de Deus – , isso, evidentemente, está nas mãos de Deus. (…) Por um lado o “não” a Cristo leva os israelitas a uma situação de conflito com a posterior acção divina, mas ao mesmo tempo sabemos que eles têm assegurada a fidelidade a Deus. Não estão excluídos da salvação, contribuem para ela determinantemente, e são objecto da paciência de Deus, tal como nós.” (4)
O facto de J. Ratzinger referir as várias opiniões sobre Israel como “povo eleito” tem a ver com as relações entre a Igreja do NT e a Igreja do AT. Para muitos teólogos recentes, a questão deve colocar-se a partir da função do Reino de Deus anunciado por Jesus. O “Reino de Deus” é mais do que a Igreja concreta. Estamos todos, judeus e cristãos, a caminho da realização misteriosa desse Reino. O Concílio Vaticano II fala dos judeus como “povo de Deus” e da Igreja como “o novo povo de Deus”. Será que o “novo” ocupa o lugar do “antigo”? É nesta dialéctica que nos encontramos.
Nem o jornalista nem J. Ratzinger colocaram o problema das catequeses polémicas e apologéticas dos evangelhos. Em João 8, 44, o Jesus “joânico” afirma que o “pai dos judeus é o diabo”. Em Mc 16, 16, só os que “forem baptizados serão salvos”. Em Act 4, 12, segundo S. Pedro, “não há salvação a não ser através de Jesus Cristo”. Não se trata, nos dois evangelhos citados, de palavras do “Jesus histórico”, mas da Igreja em polémica com os judeus e os pagãos. O mesmo se diga da catequese de Lucas nos Actos dos Apóstolos. Mas foi esta catequese que originou as guerras posteriores entre cristãos e judeus.
Finalmente, o filósofo, o teólogo e o pastor-papa J. Ratzinger visitou Auschwitz, Israel e foi orar a sinagogas de judeus. Interrogou Deus sobre o Holocausto, dialogou e orou com rabis nas sinagogas. Determinou como acção primária no seu pontificado o ecumenismo. O pensador e teólogo está submergido no “mistério de Deus” em escatologia histórica. Não há Deus sem história, a começar pela história de Israel. O pastor-papa apresenta-se como servidor da “verdade cristã” – o Messias já veio para judeus e cristãos.
Pe. Joaquim Carreira das Neves, OFM, Professor Jubilado da UCP