Tópicos de um percurso teológico

João Duque

Perdoem-me os leitores, antes de tudo, a presunção de falar do rico percurso teológico de Joseph Ratzinger/Bento XVI em tão poucos parágrafos. É um atrevimento que, em realidade, não terá desculpa possível. Mas há circunstâncias que atenuam os atrevimentos. E, assumida esta desculpa inicial, já poderei, com alguma despreocupação, referir ao de leve aquilo que considero ser o essencial desse percurso. Que sirva, simplesmente, de aliciante para que o leitor possa mergulhar nos recantos mais fundos dessa teologia.

Antes de mais, convém não perder o horizonte do início, pois aí se lançam as bases de tudo. E, nesse início, encontra-se sobretudo a consciência da importância do pensamento histórico em teologia. Por influência de Agostinho e de Boaventura, essa reapropriação da dimensão histórica da revelação e da correspondente teologia foi, sem dúvida, um dos mais importantes passos da renovação teológica do séc.XX, influenciada pela Nouvelle Théologie francesa (Daniélou, De Lubac…) e conducente ao Concílio do Vaticano II. É preciso ter noção de que, com essa perspectiva teológica, recuperava-se, de forma nova, um modo de relação com a Escritura e com os escritos da história do cristianismo, sobretudo dos primeiro séculos, que a denominada Teologia Neo-escolástica tinha praticamente abandonado. Basicamente, reafirmava-se uma relação intrínseca entre a verdade cristã e as transformações da história, contra uma visão lógico-estática e eterna dessa verdade. Os trabalhos académicos do jovem teólogo Joseph Ratzinger são importantes contributos para essa renovação. E foram, por isso mesmo, controversos na academia.

Esta perspectiva aproximou Ratzinger do espírito do Concílio Vaticano II, com o qual naturalmente se entusiasmou. Mais tarde, contudo, tornou-se céptico em relação a determinados modos de aplicação e recepção desse concílio. Sempre que a relação entre verdade da fé cristã e história humana foi interpretada como relativização dessa verdade, que passa a ser construída, em cada circunstância histórica, a partir dos dados do mundo, como se não tivesse uma tradição própria ou como se essa tradição fosse falsa – sempre que uma corrente teológica ou uma tendência pastoral, até mesmo litúrgica, enveredou por essa perspectiva de ruptura, Ratzinger teve dificuldade em aceitar os ímpetos da nova teologia.

Isso aconteceu já em Tübingen, na altura em que se desenvolveram importantes projectos de Teologia Política e de Teologia da Esperança, sob forte influência da tradição neo-marxista. Não negando elementos válidos a esses projectos teológicos, Ratzinger foi, sobretudo, duro crítico do seu caminho de fundamentação da verdade cristã fora da grande tradição cristã, recorrendo a intuições e argumentos próprios de filosofias políticas que, além do mais, considerava duvidosas. Foi nessa atitude crítica que escreveu a «Introdução ao Cristianismo» e, sobretudo, a «Escatologia» (esta, elaborada já no contexto menos polémico de Regensburg, mas mantendo o mesmo gesto crítico em relação aos projectos escatológicos seus contemporâneos). Essas obras, que apresentam uma releitura do cristianismo e dos seus grandes temas em termos contemporâneos, mas numa linha de perfeita continuidade com a tradição cristã, sem cedências fáceis a certas modas filosóficas, marcarão o núcleo da sua perspectiva, em relação à teologia actual: uma perspectiva renovadora mas, ao mesmo tempo, crítica em relação ao que ele considerava uma aventura perigosa, por terrenos teológicos que poderiam levar à própria deturpação da doutrina cristã.

Parece-me, na minha humilde opinião, ter sido esta leitura da teologia dos anos 70 e 80 do séc. XX (sempre com base numa atitude polémica) que determinou a sua atitude como Cardeal Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé. Assim como, já enquanto Arcebispo de Munique, se tinha assumido como defensor de uma relação estreita com a tradição teológica do cristianismo, contra rupturas mais ou menos atrevidas, assim agora, com muito mais razões, assumiu essa posição, em relação a toda a Igreja Católica. Seja na leitura que fez da Teologia da Libertação, seja, mais recentemente, em relação à Teologia das Religiões não cristãs, a perspectiva de fundo é de vigilância, para evitar a ruptura com os elementos considerados fundamentais da tradição cristã e que poderíamos identificar com a verdade do cristianismo, na relação aos diversos momentos da história, mas sem se deixar determinar, em absoluto, pelo relativismo do historicismo total, ou pelo fascínio de correntes filosófico-políticas de moda.

Poderemos dizer que esta preocupação essencial tem determinado o pontificado de Bento XVI. Os seus escritos principais são, de facto, escritos teológicos sobre o que considera serem os pilares do cristianismo, num mundo em que corremos o risco de relativizar tudo. Assumindo, agora, um tom afirmativo e conciliador, diferentemente do tom polémico dos escritos anteriores, não deixa de se situar no mesmo registo fundamental. Ao mesmo tempo, vai abandonando a radicalidade de certa perspectiva crítica, reconhecendo elementos importantes nas tentativas teológicas a que anteriormente se tinha oposto. Não porque tenha mudado de perspectiva, mas porque, entretanto, o debate teológico fundamental se alterou significativamente.

Exemplo disso é o caso feliz de certas coincidências (sem encobrir reais diferenças), sobretudo quanto à centralidade da referência a Deus, entre a sua teologia e a teologia de Johann Baptist Metz, tido como fundador da Nova Teologia Política e que foi, sem dúvida, um dos alvos da sua crítica, na fase de Tübingen. Por um lado, Metz é hoje mais céptico e crítico em relação ao rumo que a nossa cultura foi tomando, sendo também forte opositor do actual relativismo dito «pós-modernista». Ao mesmo tempo, Bento XVI, sobretudo nas Encíclicas Spe Salvi e Caritas in Veritate, avalia de modo mais vasto a dimensão política da esperança e da própria actividade teológica. Nesse sentido, parece-me que podemos encontrar, no percurso teológico de Ratzinger/Bento XVI, independentemente do seu múnus de Bispo de Roma, um dos maiores e mais equilibrados contributos para a renovação teológica na cultura actual.

João Duque, Prof. Teologia na UCP, Secr. Com. Episcopal Doutrina da Fé e Ecumenismo

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