Homilia do Bispo do Porto na Vigília Pascal

Mortos para o pecado e vivos para Deus!

 

Amados irmãos e irmãs, aqui iluminados na luz pascal:

É antes de mais a vós, caríssimos catecúmenos, que me dirijo. Agradecendo ao Espírito que vos trouxe aqui, para vos unir indelevelmente a Cristo: a Cristo, que vos dará o nome e vos proporcionará a filiação divina, no Espírito que o une ao Pai.

É muito bom e oportuno verificar como acontece agora o que aconteceu há quase dois milénios, com a mesma originalidade e frescura. Homens e mulheres deste tempo – como os homens e mulheres das primeiras gerações cristãs – descobrem que Jesus Cristo está vivo. Descobrem que, assim sendo, a verdadeira vida, a que se sustém em tudo e para sempre, é essa mesma que venceu a morte e já preenche de eternidade os nossos dias.

Isto descobristes vós, caros catecúmenos, pela palavra de alguém, por uma leitura feita, pelo testemunho de cristãos, pelo percurso catecumenal. A pouco e pouco, de todos esses estímulos e sinais, resultou uma presença viva e vivificante. Aconteceu convosco algo semelhante ao que lemos num passo do Evangelho segundo São João: uma mulher da Samaria encontrara Jesus e, em Jesus, uma realidade nova e insuspeitada, que a enchera de alegria absoluta. Não se conteve que não fosse comunicá-la aos conterrâneos. Estes insistiram com Jesus para que ficasse algum tempo com eles. E o trecho continua assim: “Então muitos mais creram nele por causa da sua pregação, e diziam à mulher: ‘Já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que Ele é verdadeiramente o Salvador do mundo’” (Jo 4, 41-42).

– Não foi assim que aconteceu convosco?! – Não é assim que aconteceu e continua a acontecer com todos nós, caríssimos irmãos e irmãs?! Foi, é e será assim, para além de todas as trevas antigas e actuais, de todas as tristezas do mundo e que até na Igreja subsistam. Da memória viva que mantemos d’Ele, do testemunho evangélico que alguém nos traga, da ambiência única da comunidade cristã, da caridade profunda de algum gesto feito, sobressaiu-nos Ele, Cristo vivo e Senhor do tempo novo.

Sabemo-lo. Inegavelmente sabemo-lo, porque esta voz não se dissolve nas outras, nem se confunde com mais nenhuma. Sabemo-lo, porque esta memória não cansa e está cheia de futuro. Sabemo-lo, num saber de experiência feito, num saber de convivência alimentado, de oração sustentado.

 

É uma sabedoria aberta, porque não condicionamos Cristo ao que podíamos prever d’Ele, marcando-lhe o encontro e a forma. Muitos que O tinham ouvido falar dum reino, previam-no rei como os outros, ainda que mais poderoso e fulgurante. Mesmo na sua roda mais próxima, havia quem pensasse assim. Ficaram frustrados na expectativa e afastaram-se antes ou depois da sua morte. Para estas e outras expectativas, o Calvário fora uma desilusão total: um homem torturado, crucificado e morto, era só o que podiam ver, que já não queriam ver. As trevas cobriram a terra. Ainda houve quem o sepultasse à pressa, rolando uma grande pedra, como quem desistia para sempre.

Até aí, a realidade era só a conhecida; a sabedoria era apenas previsão. Previsão que nem sequer incluía aquela história antiga de promessas por cumprir, essa mesma que fomos acompanhando com as leituras já escutadas nesta Vigília. História sagrada, porque, mais do que aos homens, revelava a Deus, na sua vontade irreprimível de ser “Deus connosco”, ainda além das nossas expectativas, sempre acima das nossas desistências.

Mas naquela madrugada – nesta mesma que revivemos agora -aconteceu como ouvimos: “As mulheres que tinham vindo com Jesus da Galileia foram ao sepulcro, levando os perfumes que tinham preparado. Encontraram a pedra do sepulcro removida e, ao entrarem, não acharam o corpo do Senhor Jesus”.

Caros catecúmenos – e nós todos convosco – aqui está o sobressalto, a cesura que abre a realidade além das expectativas. Não aconteceu com qualquer um ou uma. Aconteceu com aquelas mulheres “que tinham vindo com Jesus da Galileia”. Não é obrigatório ser sempre assim, mas quase sempre acontece: há um certo caminho que prepara o encontro, há uma certa companhia – pode ser uma simples curiosidade intelectual, a conversação com algum crente, alguma rotina religiosa até – que pode abrir à surpresa.  E ali mesmo, onde julgávamos encontrar um resto, abre-se de súbito um vazio, a preencher doutra maneira. Doutra inimaginável maneira.

E o trecho continuava: “Estando elas perplexas com o sucedido, apareceram-lhes dois homens com vestes resplandecentes. Ficaram amedrontadas e inclinaram o rosto para o chão, enquanto eles lhes diziam: ‘Porque buscais entre os mortos Aquele que está vivo?”.

As vestes resplandecentes dão outra luz ao anúncio, indicando-lhe a origem celeste. Como se voltássemos à primeira luz do mundo, que só de Deus proviera: “No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo, e o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas. Deus disse: ‘Faça-se a luz.’ E a luz foi feita” (Gn 1, 1-3). O túmulo é a nova terra vazia, a luz daqueles homens resplandecentes incide agora sobre a nova criação: a vida absoluta do Ressuscitado, a vida que precisamente n’Ele, novo Adão, nos é oferecida. Essa mesma que o círio pascal acendeu esta noite, essa mesma que a veste branca dos baptizados assinalará aqui.

E a pergunta que lhes foi feita, é-nos feita também a nós: “porque buscais entre os mortos Aquele que está vivo?” Sim, caríssimos catecúmenos, a conversão significa uma profunda mudança da nossa compreensão das coisas. O pior que nos poderia suceder seria abeirarmo-nos desta realidade novíssima tentando reduzi-la ao que já antes conhecíamos, negando-lhe a autenticidade e a oportunidade.

Tudo quanto nos é dado em Jesus Ressuscitado é absolutamente novo, não podendo ser aprisionado por preconceitos e ideias feitas. Não o encontraremos “entre os mortos” e nem sequer bastarão os vivos – desta vida natural –  que ainda não “morreram”. Só a realidade irredutível do Crucificado – Ressuscitado, também naqueles que o seu Espírito começa a ressuscitar neste mundo, pode constituir agora a base e a substância do que pensemos, digamos e façamos.

Para melhorar alguma coisa nesta terra, bastaria a primeira luz do Génesis; e por aqui ficaríamos, voltando ao pó donde provimos. Para divisarmos e nos ambientarmos já àquela “terra” que as bem-aventuranças prometem (cf. Mt 5, 5), é precisa esta última luz pascal e o esplendor dos seus mensageiros. De todos os que anunciaram e agora continuam a anunciar: “Não está aqui: ressuscitou!”. Também por isso a nossa veste é branca.

 

E tudo o mais que ouvimos continua a acontecer. Aquelas mulheres foram contar aos Apóstolos o que tinham visto – especialmente o que não tinham visto – e o que tinham ouvido sobre a ressurreição de Jesus. Não foi grande o acolhimento, pois àqueles homens que só depois fariam jus ao nome de “apóstolos = enviados”, as palavras das mulheres “pareciam-lhes um desvario, e não acreditaram nelas”.

Caríssimos irmãos e irmãs, connosco não será doutra maneira. Rendidos que estejamos à ressurreição de Cristo, rápidos e solícitos que sejamos em anunciá-la a todos, depararemos com muitas resistências de fora e até de dentro. De fora, naturalmente, onde a luz pascal ainda não tenha incidido por falta de mensageiros “resplandecentes”, por palavras e obras de grande coerência pascal. Mas também “de dentro”, quando o nosso, assim dito, cristianismo não ultrapassar uma religiosidade natural, mais ou menos folclórica, onde já nem sequer incide aquela primeira luz da criação. E resistências “de dentro” de nós mesmos, enquanto toda a nossa inteligência, toda a nossa vontade, todos os nossos afectos não estiverem transfigurados pela luz definitiva em que a ressurreição acontece.

Irmãos catecúmenos, tudo o que importa já vos foi dito por São Paulo, no trecho que ouvimos da carta aos Romanos. Com ele sabemos que o baptismo não é um rito exterior ou uma conveniência social, mais ou menos adiado e localizado por conveniências de relações, de locais ou de festas. É absolutamente outra coisa, porque se trata radicalmente doutra vida, tão nova como a ressurreição de Cristo em nós, tão exigente como a sua morte também. São Paulo, de facto, não poupa nas palavras nem normaliza a linguagem: “Todos nós que fomos baptizados em Jesus Cristo fomos baptizados na Sua morte. Fomos sepultados com Ele pelo Baptismo na Sua morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do pai, também nós vivamos uma vida nova”.

Não vos pareça isto demais, porque menos não seria nada, cristãmente falando. Deixai-me por isso, caríssimos catecúmenos, deixai-me por isso, caríssimos irmãos e irmãs, pedir-vos a todos o que os mensageiros divinos pediram às mulheres que foram ao túmulo, o que Paulo pediu aos cristãos de Roma: testemunhai com renovada convicção e ainda mais brilhante fulgor a presença do Ressuscitado e a novidade do seu reino. Com toda a consequência prática nas vossas vidas, como é imprescindível sempre e muito particularmente agora. Ainda com as palavras de Paulo: “Porque na morte que sofreu, Cristo morreu para o pecado de uma vez para sempre; mas a sua vida é uma vida para Deus. Assim vós também, considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus, em Cristo Jesus”.

Sé do Porto, 3 – 4 de Abril

+ Manuel Clemente

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top