Homilia do Bispo do Porto na Sexta-feira Santa

SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO DO SENHOR

– Para que nesta Sexta-Feira se garanta a Páscoa do mundo!

Amados irmãos e irmãs

Reunidos como estamos neste lugar e nesta hora, somente explicáveis pelo que sucedeu noutro lugar e pela mesma hora há tantos séculos; tendo ouvido, realmente ouvido, uma narração antiga, que mantém uma actualidade maior do que outras de há pouco tempo: é caso de nos interrogarmos mais, sobre o que fazemos e por que o fazemos…

Adiantemos já o que diremos no tempo todo desta breve meditação. Estamos aqui para responder, com a nossa fé e as nossas vidas concretas, à pergunta que Pilatos deixou no ar.

– Lembrai-vos da pergunta?! Retomemos a narrativa: “Disse-Lhe Pilatos: ‘Então, Tu és rei?’ Jesus respondeu-lhe: ‘É como dizes, sou rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a Minha voz.’ Disse-lhe Pilatos: ‘Que é a verdade?’”.

Pois bem, caríssimos irmãos e irmãs, nós sabemos o que é a verdade. Mais: nós sabemos Quem é a verdade. Melhor dizendo, somos surpreendidos por ela, estando nesta mesma surpresa um grande sinal de que o é de facto, como realidade que nunca imaginaríamos.

Os factos o comprovam. Nunca se propôs a ninguém um Deus crucificado. E, tomando para a cruz as tábuas do presépio, nunca se imaginou a verdade de Deus na verdade dum homem, como sucedeu com o menino adorado pelos magos e perseguido por Herodes, perdido e reencontrado no templo, trabalhando numa oficina de aldeia, falando simplesmente aos pobres e interpelando fortemente os soberbos, negado por um amigo e continuando a chamá-lo assim, inteiramente despojado e iniquamente maltratado, firme apenas no próprio abandono, porque se definia como entrega, cordeiro imolado e pão oferecido…

Nunca o imaginaríamos deste modo. E os próprios que por algum tempo o seguiram, só se convenceram do que Ele dizia e fazia quando a sua morte se abriu em vida, vida inegável por excesso de presença, assim atestando a realidade do que anunciara.

Nada óbvio, na verdade. Como óbvia não fora a presença de Deus entre o seu povo, tantos séculos antes, mesmo libertando-o do Egipto, mesmo sustentando-o no deserto, mesmo revelando-lhe a Lei ou fazendo resplandecer a face de Moisés…

Nunca óbvio, e por isso mesmo repetimos os ídolos com que O substituímos, os nossos “deuses” de devaneio.

Por isso repito: a absoluta imprevisibilidade de um Deus crucificado acaba por constituir a maior prova duma realidade totalmente oferecida. Verdade que, uma vez recebida, nos fará entender também o que nunca entenderíamos de nós próprios nem da vida do mundo, como somos realmente, não como tendemos a presumir.

Basta reparar como, mesmo os cristãos, com dois mil anos andados à roda da cruz, nos distraímos tanto dela. Derrama tal luz que preferimos fugir-lhe com os olhos, fixando-os em tantas coisas secundárias, que nem veríamos senão fossem iluminadas por ela. Basta ver como nalguns templos, mesmo quando belos, só com esforço reparamos na cruz, tão distraídos ficamos com outros motivos… Pior ainda, é que esta distracção visual em relação à cruz, é geralmente sinal duma distracção mental e espiritual em relação à verdade de Deus e do que as nossas vidas podem e devem ser a partir de Deus. – Triste prejuízo, enorme perda de tempo!

No Evangelho de João, esta declaração da verdade de Deus em Cristo e da nossa verdade a partir d’Ele, é certamente mais acentuada. Talvez tivesse passado mais tempo, para os primeiros discípulos se darem conta do que realmente acontecera, do que definitivamente acontecera em Cristo, como verdade divina assim patenteada.

As alusões sucedem-se. Como quando Tomé, ouvindo os propósitos de Jesus, lhe perguntou: “Senhor, não sabemos para onde vais, como podemos nós saber o caminho?” Para ouvir a resposta de Jesus: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém pode ir ao Pai senão por mim” (Jo 14, 5-6).

Já ouvimos esta resposta de Jesus. – Até que ponto a compreendemos deveras? Jesus é a Verdade, convence-nos e deslumbra-nos. – Mas já percebemos que essa Verdade é Caminho, mais existencial do que essencialista, ou melhor, que a sua “essência” está no constante movimento para o Pai, levando-nos no seu encalço e, nisso mesmo, fazendo-nos viver?

– Percebemos que viver é conviver, pois a verdade é a vida em caminho, com quantos avançam em Cristo Caminho, no constante regresso ao seu princípio, para nele e só nele progredir?

Isso mesmo nos permite Jesus para além de nós, pois nos oferece como meta de realização eterna o seu próprio Pai, em quem e com quem aliás vive sempre. Retomemos o trecho: “[Jesus respondeu a Tomé]: ‘Se ficastes a conhecer-me, conhecereis também o meu Pai. E já o conheceis, pois estais a vê-lo.’ Disse-lhe Filipe: ‘Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta!’ Jesus disse-lhe: ‘Há tanto tempo que estou convosco, e não me ficaste a conhecer, Filipe? Quem me vê, vê o Pai. Como é que me dizes, então, ‘mostra-nos o Pai? Não crês que Eu estou no Pai e o Pai está em mim?’” (Jo 14, 7-10).

Deixai-me insistir, caríssimos irmãos e irmãs: – Já nos convertemos verdadeiramente a um Deus assim? Ou, dito doutro modo: – Já nos convertemos à verdade de Deus, que assim se manifesta em Cristo?

Retomando o diálogo entre Jesus e Pilatos, certamente não o terminaríamos como o governador romano. Não perguntaríamos displicentemente: “- Que é a verdade?”. Reconhecemos, isso sim, que a verdade de Deus está exactamente ali, naquele “homem de dores”, um só com o Pai e um também connosco, no amor imenso que partilham entre si e agora nos abrange a todos, como misericórdia e graça.

E sabemo-lo tanto, realmente tanto, que daqui não saímos, enquanto fixação da nossa alma e da nossa vida. Verdade imensa, revelada n’Ele, atracção indizível, actuada assim: mutuamente nos pertencemos agora, Cristo e nós, reino indestrutível que só a verdade consegue. Sentimos, ouvimos, sabemos que é exactamente como Ele respondeu a Pilatos: “É como dizes: sou rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a Minha voz”.

Exactamente assim, esta verdade. Exactamente por isso, aqui estamos agora, como em todo o mundo cristão se reúne a inumerável multidão dos crentes em torno da Santíssima Cruz. Nada mais de Deus e nada mais de todos, do que esta inaudita verdade para sempre revelada: aqui, finalmente, cabe todo o drama do mundo; aqui, finalmente, toda a realidade de Deus, na dor que em Cristo compartilhou e salvou.

 

Resta agora acompanhá-Lo ao Calvário. Ali O crucificaram, e com ele mais dois: “um de cada lado e Jesus no meio”. – Estais a vê-Lo, irmãos: “E Jesus no meio”?! No meio, no centro, no cume, gostam alguns de estar, mas com altivez ou vaidade. Cristo também ficou no meio, mas como caridade e fonte; não para se adiantar aos outros, mas para servir igualmente a todos. Deste modo, estejamos também no meio, como disponibilidade e prontidão, como quem serve.

Na cruz permaneceremos. Ali receberemos as últimas ofertas, precisamente as mais íntimas e pessoais, que Jesus reparte connosco. A sua própria Mãe, oferecida e para sempre recebida em nossas “casas”, ou seja, na vida de cada um: “Eis a tua mãe!”. Por fim, o sangue e a água que brotam do coração trespassado, Espírito e vida de Jesus em nós, graça infinita de salvação e paz.

– Quantas coisas aprendemos, irmãos e irmãs, no reino de Cristo, onde a graça de Deus nos mantém! – Quantas coisas acontecem em nós a partir dela, grandes demais para as dizermos, verdadeiras também porque as experimentamos!

Mas algo mais será necessário ainda, para que a adesão seja completa e esta celebração autêntica. É necessário que a verdade recebida seja também em nós caminho e vida. Que em Cristo, reconhecido e confessado, também nos dirijamos cada vez mais para o Pai, em filiação coerente. Que em Cristo, vida oferecida, nos ofereçamos também em convivência e partilha: com quem não saiba, com quem não tenha, com quem ainda não “viva” no reino do amor de Deus.

Por agora, concentremo-nos inteiramente na cruz do Senhor. Com os olhos, irá a atenção; com a atenção, o coração convertido. Tudo acontece pelo Espírito que, provindo do Pai, nos concentra em Jesus. – Para que nesta Sexta-Feira se garanta a Páscoa do mundo!

 

+ Manuel Clemente

Sé do Porto, 2 de Abril de 2010

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