Homilia do Bispo do Porto na Missa Crismal

Relembrando a dimensão sacerdotal da existência cristã

“A graça e a paz vos sejam dadas por Jesus Cristo, a Testemunha fiel, o Primogénito dos mortos, o Príncipe dos reis da terra. Àquele que nos ama e pelo Seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus, Seu Pai, a Ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Ámen”.

Amados irmãos e irmãs, no sacerdócio comum dos baptizados e no sacerdócio ministerial em particular: É destas rápidas e imensas frases do Apocalipse, há pouco ouvidas, que tiro hoje inspiração e motivo para a nossa Missa Crismal. Faço-o por razões imediatas, de estarmos em Ano Sacerdotal. Faço-o por razões da maior oportunidade pastoral, conforme a julgo e partilho convosco – irmãos bispos, padres e diáconos, religiosos e demais consagrados, fiéis leigos aqui presentes nesta catedral de nós todos.

Vale este ano e muito, para nos relembrar a dimensão sacerdotal da existência cristã. Podia dar-se o caso de a esquecermos ou atenuarmos, imersos que estamos num mundo cada vez mais complexo e espesso, em que a densidade das coisas e a urgência dos assuntos nos fizesse adiar, ou mesmo esquecer, a finalidade de tudo.

Outros tempos, outras circunstâncias, levavam-nos noutro sentido, igualmente problemático. Estádios menos desenvolvidos da humanidade faziam-na sempre insegura e timorata, face às incertezas meteorológicas, às fragilidades da saúde ou às ameaças dos outros. Vivia-se menos e “com o credo na boca”. Era-se naturalmente religioso, pedindo ao céu o que a terra não garantia: segurança e paz.

Associado a tudo isto, mantinha-se um “sacerdócio” pagão, protagonizado por homens ou mulheres “de virtude”, que com palavras e acções mágicas traziam algum descanso e certeza. A natureza, na rotina das estações de cada ano, enquadrava tudo, como força própria, adormecida ou desperta, propiciada e festejada.

Assim se era naturalmente “religioso”, ligado ao todo por momentos cíclicos, ritos ancestrais e personagens mediadoras. E não é difícil descortinar que, por dentro de muita solicitação religiosa que ainda nos é feita, permanecem estas motivações atávicas, conscientemente ou inconscientemente disfarçadas com referências cristãs, avulsas ou transtornadas.

A resistência da religiosidade natural mal convertida continua a ser um dos escolhos mais difíceis da acção pastoral que pretendemos. Sabemo-lo bem e leva-nos por vezes a uma autêntica “conversa de surdos” entre o que nos pedem e não devemos oferecer, sem que nós compreendamos bem o que pretendem. Só com acolhimento paciente da humanidade de cada um e uma evangelização mais decidida, na catequese e no acompanhamento espiritual, poderemos avançar neste campo. Campo em que por vezes parecemos começar, mesmo que o cristianismo tenha chegado ao nosso território há tantos séculos…

Foi aquele quadro que a modernidade e a contemporaneidade alteraram profundamente. A modernidade foi substituindo a investigação ao empirismo e a razão à crendice, valorizando doutro modo a realidade secular, temporal. A contemporaneidade trouxe-nos uma grande velocidade e precipitação de inovações, espaços e ideias, estremecendo e alterando sucessivamente as bases e os modelos em que nos entendíamos, a nós e aos outros. Logicamente, os sentimentos e as convicções sofrem igual instabilidade. Eclesialmente, os espaços comunitários, das famílias às paróquias, diluem-se também. Consequentemente, os credos e os ritos, também por falta de enquadramento tradicional, privatizam-se e subjectivizam-se.

Voltando ao trecho do Apocalipse: – Que “reino de sacerdotes” teremos então, quando a convivência rareia e as intenções pouco ultrapassam as de cada um? Reino implica pertença geral, sacerdócio significa projecção para Deus, ambas mais complexas agora, entre um quadro que passou e outro que havemos de refazer, mais adiante. É o nosso momento e encargo. O nosso hoje indispensável.

Traz-nos isto mesmo ao que o Concílio Vaticano II considerou no capítulo VII da Lumen Gentium, a saber, “o carácter escatológico da Igreja peregrina e a sua união com a Igreja celeste”, lembrando-nos que vivemos a partir do “fim”, já oferecido na Páscoa de Cristo; e que tudo quanto dizemos e fazemos, enquanto Igreja, tem o único sentido alargar a todos o que já se realizou em Cristo.

Isso mesmo agradecemos, como filhos, e oferecemos ao Pai em exercício sacerdotal. Nisto se legitima a Igreja, como realidade e acção: “Já chegámos, portanto, ao fim dos tempos: a renovação do mundo está irrevogavelmente decretada e vai-se realizando de certo modo já neste mundo” (nº 48). E em todo o tamanho da Igreja, da terra ao céu: “Vivemos de maneira eminente a nossa união com a Igreja celeste, especialmente quando, na sagrada Liturgia, na qual a virtude do Espírito Santo age sobre nós mediante os sinais sacramentais, celebramos juntos, em fraterna alegria, os louvores da majestade divina, e quando todos, resgatados pelo sangue de Cristo, de todas as línguas e povos e nações, reunidos numa única Igreja, glorificamos a Deus uno e trino, com o mesmo cântico de louvor” (nº 50).

Não nos pareça isto demasiadamente “espiritual”, pois, se não for assim, não será propriamente “eclesial”. Creio que, fora desta radicalização escatológica e finalizada, quer como consciência e interioridade, quer como motivação e atitude, não podermos cumprir o que a actualidade da Igreja requer e o próprio mundo reclama, mesmo quando parece dispensar-nos. Ou seja, que estejamos no mundo e nas mais correntes das circunstâncias, oferecendo-lhes a Páscoa de Cristo, pela palavra mais clara, os sinais mais expressivos, a oração mais contemplativa e a caridade mais activa.

E, em tudo isto, serviremos a paz. Na sua última encíclica, o Papa Bento XVI reflecte sobre a problemática contemporânea, para dela fazer ocasião de novidade nas várias dimensões da vida pessoal e colectiva. E – retomando considerações de João Paulo II – não deixa de insistir neste ponto fundamental: “É necessária uma real mudança de mentalidade, que nos induza a adoptar novos estilos de vida, nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom e a comunhão com os outros homens para um crescimento comum sejam os elementos que determinam as opções dos consumos, das poupanças e dos investimentos” (Caritas in Veritate, nº 51).

Sim, caríssimos irmãos e irmãs, o melhor serviço que prestaremos ao mundo será dar-lhe o exemplo e o estímulo dum povo sacerdotal, em que cada um dos seus membros tenha, como Cristo, o seu coração no Pai; daí ganhando uma convivência alargada e fraterna com tudo e com todos, fruindo sem dissipar, partilhando sem açambarcar, louvando sem se fechar. E a exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa, que há sete anos quis oferecer-nos “Jesus Cristo, vivo na sua Igreja, fonte de esperança para a Europa”, disse-o eloquentemente: “A Igreja, que acolhe esta revelação, é uma comunidade que reza. Ao rezar, escuta o seu Senhor e aquilo que o Espírito lhe diz; adora, louva, agradece, e também implora a vinda do Senhor: ‘Vem, Senhor Jesus!’, afirmando deste modo que só dele espera a salvação” (nº 66).

E aqui nos reencontramos também como povo sacerdotal, quer no sacerdócio comum dos baptizados, quer no sacerdócio ministerial dos padres.

Quanto a nós, bispos e padres, a condição celibatária só nesta verdade se compreende e assume, segundo a graça recebida. Não se compreenderá fora desta luz, não se viverá senão ao seu fulgor. Ainda menos hoje, quando a mentalidade geral parece contrariá-la, encontrando em graves contrafacções de alguns clérigos o reforço da sua crítica, como se o celibato sacerdotal fosse inadequado ao ministério e até um óbice à maturidade pessoal.

Creio bem que, daqui a algum tempo – mais ou menos longo, não o sei – virá ao de cima a verdade dos factos, decerto mais “verdadeira” do que as generalizações absolutamente indevidas, que entretanto se propalam, com gritante injustiça. Ou seja, que a grande maioria do clero vive de modo sereno e feliz o seu celibato “pelo reino dos céus”, assim participando na própria condição existencial e pastoral de Jesus Cristo, como Ele a quis viver também. E que esta mesma condição ajuda a manter a Igreja nesse plano último que é realmente o dela, figurando e activando a finalização de todas as coisas em Deus.

Pelo contrário, não deixa de ser estranho que, depois de – tão árdua e justamente – a modernidade ter dessacralizado o mundo – pretender agora alguém mundanizar a Igreja. – Vivam recíproca e dinamicamente o mundo como mundo e a Igreja como Igreja: aquele para realizar a criação, que é o seu dinamismo específico, esta para lhe oferecer a nova criação no Espírito de Cristo, que tudo conclui! Não com rivalidade, mas como dois momentos duma única finalização, ou como aprofundamento das coisas para além delas, oferecendo eternidade ao tempo.

Por isso mesmo, tudo o que existe na Igreja é oferecido ao mundo, para o abrir além dele, não tanto como negação, antes como interpelação e desafio, manifestando em cada padre celibatário – como Paulo e tantos outros o perceberam de Cristo – que, de facto, Deus é bastante e só n’Ele nos ultimamos. Assim mesmo edificando a Igreja de todos os baptizados, chamando-os àquela realidade que será geral, depois dos dias: “Na ressurreição, nem os homens terão mulheres nem as mulheres, maridos; mas serão como anjos no Céu” (Mt 22, 30).  Não são alusões facilmente aceites pela mentalidade actual. Nunca o terão sido muito, aliás, porque irredutíveis a horizontes cerrados. Mas aconteceu especialmente connosco, caríssimos irmãos no sacerdócio ministerial de Cristo, o mesmo que já sucedeu aos primeiros ouvintes, quando Ele disse estas coisas. Porque o evangelista conclui assim, passados dois versículos: “E a multidão, ouvindo-o, maravilhava-se com a sua doutrina” (Mt 22, 33).

E todos sabemos – caros padres – como a nossa presença junto dos outros baptizados de qualquer estado de vida, exactamente pela marca escatológica que um celibato correctamente assumido nos confere, os ajuda a encarar mais esperançosamente a vida e a morte, mais serenamente as vicissitudes, pela largueza do fim – dos últimos fins do homem, precisamente. É por esses últimos fins, em nós tornados princípio de outra vida, que nós, sacerdotes celibatários, damos a nossa contribuição específica e orgânica, com todos os outros irmãos e irmãs – também celibatários, ou vivendo em sagrado matrimónio -, para começar neste mundo um Reino sem fronteiras. Aconteceu que percebemos: “Há os que assim se fizeram a si mesmos, por amor do Reino do Céu. Quem puder compreender, compreenda” (cf. Mt 19, 12).

Caríssimos sacerdotes: Deixai-me concluir com uma citação particularmente expressiva, que fique como resumo e incentivo para a nossa vida e missão. É do nosso grande e actual Pontífice, que dentro em breve acolheremos no Porto, com toda a gratidão pelo modo lúcido e corajoso com que nos confirma na fé, persistindo – já octogenário, como tantos membros do nosso presbitério – na trabalhosa condução duma Igreja em conversão contínua. Retiro-a da exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis, no seu precioso número 24, onde estabelece a relação entre a Eucaristia e o celibato sacerdotal: “Com efeito, nesta opção do sacerdote encontram expressão peculiar a dedicação que o conforma a Cristo e a oferta exclusiva de si mesmo pelo Reino de Deus. O facto de o próprio Cristo, eterno sacerdote, ter vivido a sua missão até ao sacrifício da cruz no estado de virgindade constitui o ponto seguro de referência para perceber o sentido da tradição da Igreja Latina a tal respeito. Assim, não é suficiente compreender o celibato sacerdotal em termos meramente funcionais; na realidade, constitui uma especial conformação ao estilo de vida do próprio Cristo. Antes de mais, semelhante opção é esponsal: a identificação com o coração de Cristo Esposo que dá a vida pela sua Esposa. […] O celibato sacerdotal, vivido com maturidade, alegria e dedicação, é uma bênção enorme para a Igreja e para a própria sociedade”.

Continuemos então, caríssimos irmãos sacerdotes. E ficai bem certos e cientes de que a melhor apologia do vosso celibato por amor do Reino, está na gratidão das vossas comunidades e de todos quantos usufruem da vossa inteira disponibilidade para o louvor de Deus e o serviço do próximo, alargando na terra uma familiaridade nova, que já assinala e implanta o que o último futuro nos oferece.

Sim, caríssimos irmãos sacerdotes, dirigem-se muito especialmente a vós – e, através de vós, às comunidades que elevais em cada Eucaristia -, as palavras do Apocalipse, nosso futuro presente: “A graça e a paz vos sejam dadas por Jesus Cristo, a Testemunha fiel, o Primogénito dos mortos, o Príncipe dos reis da terra!”.

Sé do Porto, 1 de Abril de 2010     

+ Manuel Clemente

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