Homilia do Bispo do Porto no Domingo de Ramos

Chegámos à Semana Santa de 2010. Chegámos aonde partimos, pois aqui se revela e celebra tudo quanto temos para nós e para os outros, em Cristo oferecido e oferecidos. Peçamos a Deus, peçamos-Lhe do mais fundo e veemente de nós próprios, que esta Semana nos esclareça o espírito e determine a vontade, para que a vida seja em tudo e sempre como Ele quiser, segundo Cristo. Uma Semana para celebrar e recomeçar, com tudo quanto ouvirmos na Palavra, com tudo o que revivermos nos ritos. Uma Semana “santa”, como só o será se for de Deus, inteiramente sua, mesmo que acontecendo em nós.

A narração que acabámos de escutar, decerto atentos e contritos, relatou-nos a Paixão de Cristo na admirável escrita de Lucas, sempre tão atenta à misericórdia divina, manifestada em Cristo, como ao claro-escuro humano, que cada um de nós evidencia. E por si mesma bastaria, para ficarmos agora e por muito tempo em meditação detalhada. Não podendo ser assim, fixo-me brevemente e apenas em três pontos ilustrativos e oportunos, segundo creio.

Incluem-se ainda, no que a nós respeita, nas condições para recebermos frutuosamente os frutos da Paixão de Cristo. E vê-los-emos por contraste, para não repetirmos as atitudes dos dois que a não acolheram na altura, um por frivolidade, outro por cobardia: por mentira, em qualquer dos casos.

 

Ouve-se dizer, por vezes, que tudo seria mais fácil se vivêssemos há dois mil anos e conhecêssemos directamente a Cristo. Mas isso é maneira de dizer – ou de adiar as coisas –, não corroborada pelos relatos evangélicos. E a própria experiência nos demonstra que, sendo o acontecimento muito forte, só a pouco e pouco nos apercebemos dele, como quando os olhos demoram a fazer-se à luz. Jesus é, na verdade, Deus connosco, adaptando-se de tal modo à nossa condição que correu o risco de não ser apercebido, ou de ser mal compreendido e aceite, na verdade que era e oferecia.

Andamos sempre à espera dos deuses que fazemos, imaginando-os segundo as nossas ambições ou os nossos medos. Mas o Filho de Maria, o Homem das Dores, desafia em absoluto tais previsões. Nem espectacular como um mágico, nem vitorioso como um herói, deixa-nos desiludidos ou perplexos, hoje como ontem, por teimarmos em prevê-Lo.

Lembremos um dos que O não acolheram então. Refiro-me a Herodes, com toda a lição do passo que a ele se refere. Contava o trecho: “Ao ver Jesus, Herodes ficou muito satisfeito. Havia bastante tempo que O queria ver, pelo que ouvia dizer d’Ele, e esperava que fizesse algum milagre na sua presença. Fez-Lhe muitas perguntas, mas Ele nada respondeu”.

A alusão é rápida e sóbria, quase demais. Mas o bastante para nos fazer uma advertência gravíssima. Não reconheceremos Jesus se não O olharmos honestamente; não ouviremos as suas respostas se não O interrogarmos correctamente.

Encontra-nos na verdade das vidas, onde estas tocam a verdade de Deus, que a tudo subjaz. Herodes – triste sobejo e má caricatura do que deveriam ter sido as antigas realezas de Israel – queria milagres… Outros os tinham desejado antes, a começar pelos homens de Nazaré da Galileia, que não queriam ficar de fora da sorte doutras terras onde Jesus andara. Mas também estes ficaram desapontados, nada vendo nem percebendo, por falta de verdadeira fé e disponibilidade. Melhor ficara o centurião, que, mesmo sendo gentio, acreditara tão inteiramente em Jesus que logo o seu servo se salvara.

Herodes não, porque os fátuos e poderosos querem diversão que os entretenha e não conversão que os mude. Resultado: ficou sem milagre e sem repostas. E a sobriedade da prosa de Lucas, esta sim nos manifesta Jesus, autenticamente Ele. Aqui o temos patente, no eco preenchidíssimo do trecho que escutámos. Como se O estivéssemos a ver, e estamos mesmo: “Herodes fez-Lhe muitas perguntas, mas Ele nada respondeu”.

Com toda a compreensão que possamos ter, custa verificar que nem a curiosidade nem a decepção de Herodes terminaram entretanto. Surja uma notícia de milagre aqui, de aparição acolá, “novidade” perto ou longe, e não há dinheiro que custe ou distância que canse. Por curiosidade giróvaga ou necessidade imediata, tudo se arranja para ir, para ver, para alcançar… E nem as decepções servem de emenda.

Triste condição a nossa, que quer de Deus tudo quanto Ele não é e não tem e demora tanto a acolhê-lO como realmente é: vida das nossas vidas, vida nas nossas vidas, como se revela em Cristo. Não espectacular, mas fecundo. “Todo-poderoso” porque, aconteça o que acontecer, está sempre connosco e para nós. Amor vitorioso e discreto, autêntico por isso mesmo e só assim, pois a qualidade do amor é ser oferta, não imposição ou deslumbramento. Como Jesus diante de Herodes, esperando em vão que surgisse a única pergunta a que poderia responder, numa relação finalmente verdadeira e desinteressada.

Irmãos e irmãs, deixai-me generalizar a pergunta, neste pórtico da Semana Santa de 2010: – Estais vós, estou eu, estamos todos nós, nesta catedral do Porto, verdadeiramente disponíveis para acolher Jesus na sua verdade, tão forte como discreta, tão divina como humana, tão oferecida como exigente? – Estais vós, estou eu, estamos todos, tão desinteressados e gratuitos que possamos entender a proposta que Jesus foi e é, sem o condicionarmos por alienações e expectativas às quais, aliás, Ele não dará resposta alguma?

Adivinho-vos a resposta afirmativa e dou graças a Deus por isso. Avancemos então, na liberdade pascal.

 

Não avançaríamos, porém, se andássemos de “Herodes para Pilatos”, mudando dos sentimentos do primeiro para os do segundo, ou seja da frivolidade para a cobardia.

Em Pilatos, tudo é contrafacção do verdadeiro poder, político no caso, como cumpriria a um verdadeiro representante do Império. Daquele mesmo “César” a quem Jesus manda dar o que lhe é devido, como a Deus o que lhe devemos também. As fontes históricas não nos trazem boa notícia dele, nem do seu carácter. Este passo do Evangelho evidencia-nos especialmente a sua cobardia, face a Jesus.

Oiçamos: “Pilatos falou-lhes pela terceira vez [aos acusadores de Jesus]: ‘Mas que mal fez este homem? Não encontrei n’Ele nenhum motivo de morte. Por isso vou soltá-Lo, depois de O mandar castigar’. Mas eles continuavam a gritar, pedindo que fosse crucificado, e os seus clamores aumentavam de violência. Então Pilatos decidiu fazer o que eles pediam”.

Fica-nos certamente no ouvido a secura desta última frase do evangelista: “Então Pilatos decidiu fazer o que eles pediam…”. Mesmo convencido da inocência de Jesus, mesmo dispondo de autoridade e de tropas, “entregou-lhes Jesus para o que eles queriam”.

Triste cobardia de Pilatos, mais uma vez tão próxima da crueldade. É geralmente assim: quem mais destrói, sempre que pode, é quem mais foge, sempre que teme. Indisponível para fazer justiça a Jesus, mesmo reconhecendo-lhe a inocência, indisponível ficou para ser justificado por Ele, rendendo-se à verdade que tinha diante de si.

Amados irmãs e irmãs, nós também estamos convictos da inocência de Jesus, que não queria concorrer com Roma no domínio temporal, antes conviver com todos na verdade das vidas, sendo esse afinal o seu Reino. Mas, exactamente por isso, nenhum receio nos fará abandonar a Cristo, nem ao seu Evangelho, a quem os queira extinguir na terra. Nem deixaremos que esta Santa Igreja de justos e pecadores, que é – apesar de nós e também em nós – o seu Corpo no mundo, seja reduzida na sua verdade e esquecida na sua caridade, sempre maiores do que as tristes contrafacções que infelizmente consinta e cuja correcção queremos todos.

 

Da frivolidade de Herodes e da cobardia de Pilatos, sabemos todos bem, amados irmãos e irmãs, porventura demasiadamente bem… Nenhuma delas nos salva, ainda que ambas nos advirtam. Salva-nos outro sentimento, esse sim, exclusivamente de Jesus, constituindo mesmo o que a religião cristã tem de mais original e próprio, sempre que permanece com o seu Senhor e Mestre. É assim enunciado pelo evangelista, com idêntica sobriedade literária, como quem desiste de somar palavras para descrever o que as excede: “Quando chegaram ao lugar chamado Calvário, crucificaram-n’O a Ele e aos malfeitores, um à direita e outro à esquerda. Jesus dizia: ‘Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem’”.

Está aqui o Evangelho todo, precisamente onde nunca chegaríamos. Sabemos pela experiência própria e da inteira história humana, que nos é possível desculpar este ou aquele, mais espontânea ou esforçadamente. Sabemos como foi penosa a marcha da justiça, até alcançarmos níveis razoáveis de punição e regeneração, respeitando direitos humanos finalmente codificados, ainda que nem sempre cumpridos. Sabemos que algum estoicismo nos levaria ao ponto de não resistir a agressões e injúrias… Mas o que ouvimos de Jesus inocente e crucificado é infinitamente maior e universalmente redentor. Clamar “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, é transpor da sua inocência essencial para a nossa culpa real o que é apenas seu e do Pai, ou seja, a caridade, a vida a jorrar da nascente não poluída, no frescor original do Espírito regenerador. E o que Cristo pede e oferece na Cruz é também o que precisamente manifesta em si mesmo: toma-nos para si e recupera-nos nesse amor, que é a própria vida trinitária, desapossada em cada um para o único bem do outro – e agora nosso bem, que decerto não merecíamos.

Aqui me deterei agora, amados irmãos e irmãs, rendido convosco ao coração de Cristo, coração do mundo. Desejando-vos a todos uma Semana santificada pela permanente atenção a estas coisas, narradas e celebradas nos diversos ritos que se seguem. E a alvorada pascal fulgurará depois, de novo e sempre nova!

Sé do Porto, 28 de Março de 2010

+ Manuel Clemente

 

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