Catequese do Bispo da Guarda no 5.º Domingo da Quaresma

V DOMINGO DA QUARESMA

Oração: experiência e força de perdão e reconciliação

1. Celebramos o quinto domingo da Quaresma, também chamado primeiro domingo da Paixão. De facto as atenções dos cristãos e da Igreja, ao longo destas duas últimas semanas da Quaresma, voltam-se, de forma espe­ci­al, ­­para contemplar a Paixão e morte de Cristo e seu significado para as pes­so­as e para a história. A celebração da Via-Sacra, a leitura mais intensa das passagens bíblicas sobre a Paixão e sobretudo a comemoração da mor­te de Cristo no dia solene de Sexta-Feira Santa são os grandes momen­tos destes dias finais de Quaresma.

No meio de um mundo muito marcado pela frieza das relações entre os cidadãos, que têm dificuldade em ultrapassar a barreira dos interesses materiais e imediatos, o mistério da Paixão de Cristo convida-nos a fazer percursos de comunhão dentro das comunidades da Fé, mas também na Sociedade enquanto tal. De facto é inquestionável o desejo profundo das pessoas a viverem relações de qualidade para as quais estão vocacionadas. Também é evidente a tentação diária por que passam as mesmas pessoas sujeitas a pressões sociais de vária ordem para organizarem a sua vida com o único objectivo de satisfazerem necessidades materiais e imediatas. É esta contradição presente na existência diária das pessoas que nós constatamos e que, de facto, o mistério da Paixão de Cristo ilumina e nos ajuda a superar.

 

2. A Palavra de Deus hoje proclamada, no início das últimas duas semanas da Quaresma especialmente voltadas para a meditação do mistério da Paixão de Cristo, começa por nos fazer um forte apelo à esperança. “Eis que vou realizar uma coisa nova, que já começa a aparecer”. Isto afirma o profeta depois de convidar o Povo desterrado e esmagado, de facto, pelo peso da escravidão, a olhar para o futuro, mais do que para o passado desventuroso. Também nós hoje sentimos o forte incentivo para a esperança que nos vem da nossa Fé em Jesus Cristo, apesar dos muitos sinais preocupantes vindos da sociedade, da cultura e dos comportamentos de muitas pessoas do nosso tempo.

Para ter credibilidade, a esperança precisa de assentar num novo estilo de relação entre as pessoas. O homem não pode ser lobo para o homem, a lei do mais forte tem de ser substituído pela lei da relação gratuita e da cooperação, o princípio da competitividade, que pode ser um factor de crescimento e desenvolvimento com importância, na medida em que estimula o despertar de capacidades e sua aplicação para bem da comunidade, precisa de ser regulado sobretudo pelo princípio da solidariedade. As próprias leis não podem ser feitas e aplicadas como instrumentos ao serviço dos interesses das pessoas e dos grupos mais capacitados. O Seu objectivo tem de ser sempre promover a bem total de cada pessoa e das pessoas todas.

No Evangelho de hoje encontramos um caso em que a frieza da lei, se tivesse sido aplicada sem ter em conta as condições da pessoa em causa, teria gerado um grande prejuízo.

O perdão e a reconciliação continuam ontem como hoje a ser os caminhos mais indicados também para promover a verdadeira coesão social. Perdão e reconciliação não querem dizer que as pessoas não assumam as responsabilidades pelo mal cometido. Sempre a tradição cristã distinguiu, no processo do perdão e da reconciliação, entre a culpa e a pena. A culpa fica destruída com o arrependimento e o perdão de Deus através do Seu representante. A pena, que leva consigo a obrigação de reparar, quanto possível, o mal praticado, persiste e tem de ser cumprida até ao limite das possibilidades de cada um. Nós desejamos uma sociedade reconciliada, sem que tal signifique qualquer espécie de branqueamento dos erros cometidos e porventura de prejuízos causados a outros. Também Jesus àquela mulher pecadora que nenhum dos presentes teve coragem de condenar disse “nem eu te condeno”, mas acrescentou “vai e não tornes a pecar”. Uma sociedade reconciliada é uma sociedade em contínuo processo de sanação, em que se estimulam as boas práticas e se corrigem, quanto possível, os erros cometidos e suas consequências nefastas.

Para nós cristãos a relação com Jesus Cristo, que entregou a sua vida pela reconciliação de todos os seres humanos entre si e com Deus Pai, é determinante neste percurso de perdão e reconciliação. A experiência de S. Paulo que hoje nos apresenta a Carta aos Filipenses é um estímulo muito grande para todos colocarmos a pessoa de Cristo e o seu estilo de vida no centro da nossa vida e na mira dos percursos que desejamos fazer tanto no interior das nossas comunidades da Fé como no tecido da vida social. Sobretudo ao longo destas duas últimas semanas da Quaresma queremos seguir de perto os passos de Jesus que ofereceu a sua vida até à morte e morte da cruz para inaugurar um novo estilo de relação entre as pessoas marcado pela lei do perdão e da reconciliação. Desta forma iniciou uma humanidade nova.

 

3. É essa humanidade nova que nós pedimos e com ela nos comprometemos ao rezar a oração do Pai Nosso. E pedimo-la ao dizer “Santificado seja o Vosso nome”, mas também “venha a nós o Vosso Reino” e ainda “seja feita a Vossa vontade na terra como nos Céus”. Não queremos ter a pretensão de fazer aumentar a santidade de Deus em si mesma, que é infinita. Desejamos, isso sim, que a santidade infinita de Deus se espelhe cada vez mais nas decisões e acções humanas para bem da Igreja, da sociedade e da própria criação.

Pedimos para que o próprio Deus através da Pessoa de Cristo Ressuscitado e na força renovadora do Espírito Santo de facto reine no coração das pessoas e da própria história e que os valores do Reino de Deus sejam cada vez mais vividos nas relações sociais.

E quando pedimos que a sua vontade se cumpra, desejamos de facto associar-nos ao processo desse cumprimento, fazendo coincidir com a d’ Ele a nossa própria vontade, como aconteceu na Pessoa de Jesus Cristo. Desta forma colaboramos na própria missão da Igreja, mas também para que toda a terra percorra cada vez mais os caminhos da verdade e do bem.

Pedimos ainda o Pão nosso de cada dia o perdão das nossas ofensas na medida em que também perdoamos aos que nos ofendem; pedimos finalmente a Deus que nos livre do mal apesar da inevitabilidade das tentações.

O Pão que pedimos é aquele que mata a fome física, mas também aquele que mata a fome de bens espirituais, principalmente a fome de Deus. É por isso que nós rezamos sempre o Pai Nosso, durante a celebração da Eucaristia, imediatamente antes da Comunhão. De facto, a fome de Deus não se extinguiu nem se extinguirá porque ela faz parte da identidade mais funda de cada ser humano.

A responsabilidade do perdão que cada ser humano transporta consigo obriga-nos a enfrentar a relação existente entre o perdão que se recebe e o perdão que se oferece. Mesmo a lógica humana diz que cada cidadão não pode jogar com dois pesos e duas medidas. A urgência do perdão, hoje mais que nunca decisiva para a sustentabilidade das relações sociais, beneficia cada um mas obriga-o à atitude consequente de também perdoar. O perdão para ser autêntico pede conversão ou seja mudança de atitudes e comportamentos. Mobiliza-nos portanto, também a todos para atitudes de sincera correcção fraterna e de educação para novas atitudes geradoras de comunhão e cooperação entre os indivíduos. Em todo este processo de construção da humanidade nova inaugurada por Cristo, pedimos a Deus que nos livre do mal, embora cientes de que as tentações para entrarmos por caminhos errados não vão cessar. A responsabilidade da escolha é nossa, é de cada um de nós. E para essa escolha, que só é humana e humanizante se for recusa do mal e opção pelo bem, cada um tem de se motivar a si mesmo mas também motivar os outros.

Só uma rede de cooperação entre os cidadãos e os diferentes grupos de cidadãos verdadeiramente empenhada em promover os caminhos do bem e alertar para as consequências desastrosas dos percursos errados, mesmo que sejam escolhidos em nome de um certo conceito de liberdade pessoal, pode garantir futuro sustentável às nossas sociedades.

Por isso sentimos que é necessário denunciar e condenar os erros que se cometem, mas é igualmente necessário organizar a sociedade para apontar os verdadeiros caminhos do bem, da autêntica humanização. Denunciar e condenar os erros efectivamente cometidos sem nada ter feito para motivar os caminhos do bem e ajudar as pessoas a percorrê-los com alegria e entusiasmo pode ser mais uma forma de hipocrisia social.

 

Vamos viver a nossa Páscoa profundamente decididos a acolher os caminhos do Reino de Deus, que fazem parte da Humanidade Nova, onde, pela porta do nosso Baptismo, já entrámos.

Procuremos meditar a Paixão de Cristo e a sua força de redenção para o mundo,

Procuremos descobrir e experimentar como a vida da Igreja enquanto tal e em particular os sacramentos são os caminhos escolhidos pelo próprio Cristo para transformar a nossa vida pessoal e a vida de todas as pessoas e do mundo.

É por isso que para nós viver a relação viva com Cristo e n´Ele com o Pai que está nos céus, segundo os indicadores que estão presentes na oração do Pai Nosso, é um bem fundamental como também o é para toda a sociedade e para o próprio mundo.

Que esta Páscoa nos ajude, por isso, a crescer na responsabilidade de contribuir para a construção da Igreja, mas igualmente na responsabilidade de ajudar o mundo a reconciliar-se com o seu futuro na Pessoa de Cristo e no seu Evangelho.

Igreja Paroquial do Sabugal, 21 de Março de 2010

+Manuel R. Felício, Bispo da Guarda

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