O Papa Bento XVI escreveu uma Carta aos Católicos da Irlanda sobre a questão do abuso de menores por parte de membros do Clero. De facto, um país em que a fé católica está intimamente ligada à autonomia da pátria encontrou-se perante a evidência de um número impressionante de abusos sexuais de padres sobre crianças e jovens. Ainda é cedo para avaliar o que vai resultar deste facto para o catolicismo daquele simpático país. Mas o caso irlandês, como já tinha sido o caso americano e os outros que se seguirão devem dar que pensar a todos, desde o Papa ao último fiel. O Papa, como afirma, está a viver um dos momentos mais dolorosos do seu ministério. Ele exprime-o dizendo que sente “pavor e angústia” perante estes “actos pecaminosos e criminosos”. Porém, como é acertado que fosse, a sua palavra mais intensa é dirigida às vítimas dos abusos que, nas palavras da Carta “sofreram tremendamente”, de maneira em geral indefesa, por acção de pessoas a quem estavam confiados e em quem tinham decerto uma grande confiança.
Esta ocorrência clamorosa tem dado a volta ao mundo, no sentido contrário ao movimento do sol. Desde a América do Norte, vem estendendo o seu raio à Europa com a pungência de uma onda imparável. Realmente, a pederastia é uma injúria a pessoas vulneráveis por parte de pessoas de suposta qualidade moral mais elevada, o que coloca essa prática num patamar de inusitada gravidade. Por isso, a pederastia do clero, que em termos de percentagem de todos os abusos não será muito significativo, ganha justamente a máxima acentuação de escândalo por parte da opinião pública. Como pode a Igreja olhar com coragem e com sensatez esta dolorosa evidência? Algumas observações são oportunas.
1. Em primeiro lugar, é bom propósito interpretar o que se passa como uma tomada de consciência da dignidade da criança, por parte do mundo de hoje. É o mundo que lembra à Igreja uma das inovações mais genuínas do Evangelho: a criança tem dignidade humana e é credora da protecção e da estima por parte dos adultos de hoje que transmitem a vida e a educação à geração seguinte. Mas durante milénios não foi assim. No tempo de Jesus não era assim. Ele próprio o advertiu e inventou um novo contexto para a inclusão da criança no universo da dignidade e do respeito. Porém, uma longa transigência com a dignidade da criança pode ser assinalada na história do mundo cristão. Também foi assim com a escravatura e com o lugar da mulher, para dar apenas alguns exemplos. Por isso, os divulgados abusos de menores, sempre existentes, não eram sancionados pela cultura, pela moral e pela lei. Hoje, felizmente, isso está a acontecer e é muito bom que assim seja. Quando sanciona o abuso de crianças, o mundo que fica mais cristão e não o contrário! O que se pede à Igreja é uma humildade muito grande para reconhecer a mão esquerda da Providência neste fenómeno. Reconhecer que alguns na Igreja foram apanhados na curva da história, expiar as culpas e os crimes com frontalidade por parte de todos (bispos incluídos e não apenas padres) é o caminho que se nos apresenta adiante. Apenas este reconhecimento penitente pode dar à Igreja a dignidade de continuar a pregar moral ao mundo, não esquecendo que as pessoas e a sua dignidade são o valor mais importante que há e que é sobre isso que se deve pregar antes de tudo o resto.
2. Em segundo lugar, deve ser dito que a pederastia (ou a pedofilia como se convencionou dizer hoje) é uma afectação e um comportamento de origem estranha, que compete às ciências humanas iluminar. À ética compete dizer que esse comportamento não tem que ver directamente nem com a heterossexuali-dade nem mesmo com a homossexualidade. É algo diferente, claramente patológico, a nosso ver. Por isso, a ocorrência do abuso de crianças não tem que ver com a questão do celibato do clero católico. É necessário distinguir isto muito bem. Aliás, a grande maioria dos casos de abuso de crianças é cometido por pessoas que não têm vida celibatária por motivos religiosos. Às vezes são pais de família. Perante estes, a cultura comum não sente o mesmo efeito de escândalo que sente diante dos clérigos. Por isso, não seria de fazer uma ligação directa entre estes factos. Quanto à homossexualidade, é justo reconhecer que haveria que explicar o facto de a maioria dos abusos ocorrer entre adultos e crianças do mesmo sexo, no caso, do sexo masculino. Deixamos isso, igualmente, a quem tiver maior competência.
3. Em terceiro lugar, existe algo que nos parece justo dizer: a mesma cultura que justificou os abusos sobre crianças durante séculos tem algo de comum com aquela que leva ao um entendimento deficiente do celibato eclesiástico e mesmo à desordem no relacionamento entre o sexo masculino e o sexo feminismo (o machismo, a pornografia, o voyeurismo, a prostituição e outras perversões). Por isso, a nosso ver, o reconhecimento generalizado da cultura de hoje de uma recusa do abuso de crianças deve ser para a Igreja um motivo de pensar de novo a selecção dos clérigos e a sua educação. A vocação ao ministério sacerdotal de que necessita a Igreja em todos os tempos tem de ser pensada dentro de uma cultura nova, a mesma que rejeita a pedofilia. Ocorre regressar à luz do Evangelho e dos sinais dos tempos para pensar a vocação sacerdotal e não pensá-la apenas à luz turva das nossas representações enrijecidas e, não raro, caducas. Porque existe o perigo de estas darem entrada no ministério a pessoas de propósitos menos claros. Da educação dos futuros clérigos deve dizer-se algo semelhante, para que sejam feitos crescer na alegria de uma vida cheia de sentido e não na rigidez de uma representação heterónoma, intolerante e não-assumida. O mesmo se diga da questão do celibato dos ministros do clero secular, a qual deve ser vista no contexto desta escuta do Espírito e da decisão responsável de toda a Igreja. Somente neste sentido amplo, a questão da pedofilia e do celibato eclesiástico têm um ponto de contacto.
Pe. Jorge Teixeira da Cunha, Dir. Adjunto da Faculdade de Teologia da UCP