A Reparação ou a mística do amor na beata Jacinta

José Jacinto Ferreira de Farias, scj

Neste breve apontamento gostaria apenas de relevar três aspectos que se me afiguram importantes e mesmo essenciais quer na espiritualidade dos Pastorinhos, e aqui importa considerar sobretudo a Jacinta, quer na espiritualidade cristã, que encontra em Fátima um momento importante de interpelação sempre actual, e que importa tomar muito a sério neste ano centenário do nascimento da pequenina pastora.

1. O tema da reparação na mensagem de Fátima

Segundo a Irmã Lúcia, a reparação é o termo que diz o essencial da espiritualidade de Fátima e da mística dos pastorinhos, onde se escuta, quase em surdina, aquela exclamação de S. Francisco – o Amor não é amado -, ou a outra, mais recente, transmitida por Sta. Margarida Maria Alacoque: Eis o Coração que tanto amou os homens e que não é correspondido…

Nas suas Memórias a Irmã Lúcia testemunha como os pastorinhos interiorizaram a espiritualidade da reparação: Consolai o vosso Deus – pedia-lhes o Anjo!… Aqui está uma característica essencial da teologia da reparação, e ao mesmo tempo o seu aspecto paradoxal: pois será que Deus tem necessidade da nossa consolação? O testemunho dos Pastorinhos e da grande tradição da teologia mística dizem-nos que sim!

2. A mística do amor e da comunhão dos santos na Jacinta

A espiritualidade da Jacinta é movida pelo amor: para com os pecadores, para que tenham tempo para se arrependerem e assim não se percam; pela Igreja e sobretudo pelo Papa.

É muito interessante verificar que a figura do Santo Padre, dos seus sofrimentos e das perseguições de que seria vítima, se encontra vivamente presente na mística e na espiritualidade de Jacinta. Naquela menina tão frágil ardia um grande coração que pulsava cheio de amor. A mística do amor, pelos pecadores, pela Igreja, pelo Santo Padre, é a característica da Jacinta, o que é tanto mais impressionante quanto se trata de uma simples e inocente criança de sete anos. O que nos deve verdadeiramente fazer pensar, nesta época em que corre o risco de se infantilizar as crianças ou de as considerar um incómodo. Também deste ponto de vista as celebrações do centenário do nascimento da Jacinta deviam ser um apelo e um recordar ao homem de hoje que a salvação vem pelas crianças, que devem ser acolhidas e aceites, pois que delas é o reino dos céus! Ora isto aconteceu em Fátima: na sua fragilidade, elas aceitaram o convite a colaborarem com Deus, a consolarem-n’O, na oração e no sacrifício…

Mesmo sem o saberem, os Pastorinhos, e muito intensamente a Jacinta, viveram o mistério da Igreja como corpo místico de Cristo, e assim a vivência da santidade significa a solidariedade espiritual com todos os membros, não só com aqueles que se encontram na plena comunhão dos santos, mas também com os outros, pelos quais a oração e o sacrifício podem proporcionar a possibilidade da conversão e da mudança das mentalidades e dos costumes. Foi isto que, na sua inocência infantil, mas com a fortaleza dos santos, viveu a pequenina Jacinta.

Desde o primeiro momento, nas aparições angélicas, as três crianças foram convidadas a  consolar Deus, a reparar, com a sua oração e o seu sacrifício, os pecados, que ofendiam Deus e O tornavam tão triste. O anjo ensinou-lhes duas belas orações que em Portugal ainda hoje continuam a ser rezadas nas Igrejas em momentos importantes de adoração eucarística: «Meu Deus eu creio, adoro, espero e amo-vos. Peço-vos perdão pelos que não crêem, não adoram, não esperam e não vos amam!…» (1). E a outra, onde a adoração da Santíssima Trindade é feita em atitude de reparação: “Santíssima Trindade, Pai, Filho, Espírito Santo, (adoro-Vos profundamente e) ofereço-Vos o preciosíssimo Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Jesus Cristo, presente em todos os Sacrários da terra, em reparação dos ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que Ele mesmo é ofendido. E pelos méritos infinitos do Seu Santíssimo Coração e do Coração Imaculado de Maria, peço-vos a conversão dos pobres pecadores» (2).

3. A escatologia intermédia

Segundo o testemunho de Lúcia nas suas Memórias, o Francisco e a Jacinta sentiram-se muito tocados pelo tremendo espectáculo das multidões que se perdem, caindo no abismo do inferno. A visão do inferno impressionou profundamente a Jacinta, pelo horror da irremediável perdição de tantas almas, que como faúlhas caíam no mar imenso da perdição eterna.

A partir daquele momento, a sua vida modificou-se totalmente, e tudo o que fazia (oração, sacrifícios, mortificações) era por amor dos pobres pecadores para que se não perdessem, e em reparação das ofensas contra os Corações de Jesus e de Maria.

Na ‘escola de Maria’ os Pastorinhos aprenderam o que significa ser membro do corpo místico de Cristo, verdade que corremos o risco de esquecer e de perder. Os Pastorinhos tomaram esta verdade muito a sério e viveram-na intensamente, mesmo sem nada saberem de teologia. De facto as grandes verdades da fé são primeiro vividas e celebradas e depois pensadas. E neste ponto de vista, a mensagem de Fátima, especialmente vivida e sentida pela Jacinta, é de uma enorme importância para hoje. O sofrimento da Jacinta por causa do destino das almas recorda-nos o tema fundamental da escatologia intermédia. A leitura das Memórias da Irmã Lúcia, e muito concretamente da primeira dedicada especialmente à Jacinta, será para todos de enorme utilidade sobre estes temas essenciais da espiritualidade cristã.

4. Duas notas que são também sugestões

O centenário do nascimento da Jacinta deve ser uma oportunidade para avivar entre nós o sentido da Igreja como corpo místico de Cristo e os grandes temas da escatologia, especialmente da escatologia intermédia, cujo esquecimento ou não consideração põe em causa o sentido e a compreensão do presente.

Além disso, seja uma ocasião para incentivar nas comunidades a prática da adoração reparadora. A adoração reparadora e a contemplação das realidades últimas não alienam o homem do mundo; pelo contrário, oferecem-lhe a possibilidade de ver toda a realidade partir do sentir de Deus. Bem-aventurado o homem que acolhe esta mensagem. Bem-aventurada a nação que tiver entre si focos de adoração e de reparação, pois são esses focos de silêncio e de recolhimento que misteriosamente sustentam o mundo.

José Jacinto Ferreira de Farias, scj

NOTAS:

1 – IRMÃ LÚCIA, Memórias II (Fátima: Secretariado dos Pastorinhos 20049) 77-78

2 – Memórias II, 79

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