Funchal: Hospitaleiros acolhem desalojados

Responsáveis da Casa de Saúde de São João de Deus descrevem primeiras horas do temporal

“A primeira imagem que tenho é de uma família enlameada, magoada, chorosa e quase desnudada. Eram dez menos um quarto da manhã de Sábado. A partir daí foi um nunca mais parar até Domingo à noite.” O Ir. Joaquim Martins Ramos não esquece o desamparo das vítimas causadas pelas enxurradas que a 20 de Fevereiro varreram parte da Ilha da Madeira.

Naquele início de dia era impossível prever o número de pessoas que haveria de se dirigir à Casa de Saúde de São João de Deus, no Funchal, em busca de refúgio. “Conseguimos cumprir o lema da nossa instituição”, isto é, dar abrigo a todos aqueles que, desnorteados pela imprevisibilidade e violência do temporal, procuraram um porto seguro naquela unidade da Ordem dos Hospitaleiros.

“Uma das angústias que as famílias traziam era a de não saberem umas das outras”, disse o superior da comunidade religiosa à ECCLESIA. A ansiedade foi atenuando-se ao longo do dia, em parte pela “sorte” de “não terem ocorrido problemas nas comunicações, na energia e nas nossas instalações”.

O auxílio prioritário consistiu em proporcionar banho, roupa, alimentação e o “aconchego de um espaço” às dezenas de desalojados. “Nestas alturas não é tempo para grandes conversas, sobretudo discursos de teor espiritual”, observou o consagrado. “A nossa espiritualidade – explicou – é intrínseca ao acolhimento, em forma de acto e de atitude”. “Naquele dia lembrei-me de São João de Deus: o primeiro gesto é acolher e albergar; o resto virá por acréscimo.”

O director da Casa de Saúde, Eduardo Lemos, relatou que a transformação das instalações em centro de acolhimento exigiu alguns ajustamentos no atendimento diário aos cerca de 300 utentes. Entre as medidas tomadas incluiu-se a transferência de alguns doentes para outras unidades da Ordem.

“Foi criada uma equipa com formação específica em emergência pré-hospitalar, que recebeu os desalojados e esteve com a população, prestando os primeiros socorros e encaminhando os feridos para o hospital”, disse o responsável.

Além dos cuidados essenciais para a sobrevivência, os recém-chegados receberam ajuda psicológica, dimensão que constitui uma das vertentes mais marcantes da instituição de saúde mental fundada no século XVI por São João de Deus. Foi desde logo estabelecido um grupo multidisciplinar – com psiquiatras, psicólogos, enfermeiras e assistentes sociais – que procurou responder ao impacto físico e emocional provocado pelas perdas humanas e materiais.

“Ao princípio as pessoas apresentavam-se muito debilitadas e desterradas”, referiu Eduardo Lemos. “É fundamental que elas façam algum luto pela situação anterior, de modo que a vida vá-se recompondo e organizando por fora e por dentro.” A área circundante da instituição foi uma das mais afectadas: faleceram nove pessoas e, no último Domingo, havia três desaparecidos.

Formou-se também uma equipa de especialistas em Pastoral da Saúde, que tratou do acompanhamento espiritual. “Em situações de catástrofe esse é um aspecto central da pessoa, na medida em que a organiza interiormente”, reconheceu o director. O responsável mencionou ainda a necessidade de ajudar os desalojados a perspectivarem um sentido para o futuro, o que exigirá apoio em termos materiais.

Nas palavras do Ir. Joaquim Ramos, a instituição conseguiu “acolher as pessoas com dignidade, evitando a massificação”.

Este propósito foi conseguido “graças à pronta colaboração dos serviços oficiais, nomeadamente a Protecção Civil, Cáritas, Serviços Sociais e Autarquia, que mudaram algumas das pessoas que acolhemos para outras instituições”, descreveu o religioso. “Foi dada liberdade de escolha no que diz respeito ao local de hospedagem provisório”, sublinhou.

Os responsáveis da Casa de Saúde previram inicialmente que na primeira noite não pernoitariam mais de 48 pessoas. A verdade é que receberam 115 desalojados, número que chegou aos 120 no Domingo. Alguns grupos foram posteriormente transferidos para o quartel do Regimento de Guarnição, pelo que actualmente estão hospedados 72 sem-abrigo.

O Ir. Joaquim Ramos destacou o movimento espontâneo de voluntariado criado em torno da instituição, especialmente no período de acolhimento mais intenso. “Na minha opinião está a prestar-se um serviço excelente e correu tudo muito bem”, concluiu.

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