Guilherme d’Oliveira Martins
“A história é conhecida. Passeando à beira-mar, ao mesmo tempo que meditava no mistério trinitário de Deus, Agostinho divisa uma criança que, com uma concha, vai buscar água ao mar e a deita numa pequena cova na areia. Agostinho pergunta-lhe o que está a fazer, ao que a criança responde que quer meter todo o mar naquela cova. O Bispo explica-lhe que isso é totalmente impossível. Ao que a criança responde ser precisamente isso que Agostinho tenta fazer, quando quer abarcar com a sua limitada inteligência o incomensurável mistério do Deus trinitário” (Cf. Henrique Noronha Galvão, “Bento XVI – Um Pensamento para o nosso tempo”, Pedra Angular, 2009). O livro sobre o pensamento do Papa que acabo de citar é um documento importante, pela clareza expositiva, pela riqueza formativa, num campo infelizmente tão descurado por muitos leigos católicos, com é o da teologia, e pela abertura de espírito que incentiva. E se é certo que a obra nos introduz na compreensão de um pensamento, a verdade é que o faz também através de uma excelente introdução geral ao moderno pensamento teológico. Trata, assim, sucessivamente da renovação teológica contemporânea, do pensamento de Joseph Ratzinger e do seu percurso teológico (desde o Bispo de Hipona à eclesiologia, bem como a teologia da História em São Boaventura e no tempo presente) e da actualidade de Santo Agostinho (na tocante última lição na Faculdade de Teologia da autoria do Prof. Noronha Galvão).
Estamos perante o desafio de revisitar o acontecimento fundamental do catolicismo do século XX que foi o Concílio Ecuménico Vaticano II, a fim de entendermos a exigência de uma renovação mobilizadora da Igreja moderna. Grandes teólogos merecem ser recordados, lidos e seguidos. Henri de Lubac SJ, Yves Congar OP, Marie-Dominique Chenu OP, Karl Rahner SJ, Hans Urs von Balthasar, Johann Baptist Metz têm de voltar à ordem do dia e as suas luminosas reflexões merecem a nossa especial atenção. E os dois pólos entre os quais se processa grande parte da discussão teológica actual devem ser compreendidos e aprofundados: enquanto Karl Rahner contempla o “mistério da revelação e comunicação de Deus ao homem numa perspectiva transcendental, em que as realidades da história da salvação são vistas como concretizações categoriais de um desígnio divino que é o seu horizonte justificativo”; Hans Urs von Balthasar “sublinha o peso da história na sua singularidade como lugar em que se dá a epifania da glória de Deus, a qual acontece na figura concreta (…) em que se torna presente ao mundo a sua revelação”. Ao longo da obra, encontramos o pensamento de Bento XVI inserido no pensamento contemporâneo, ressaltando que fé e razão permanentemente se completam, num desafio que procura aproximar a antiga vocação europeia do “Aufklärung” das raízes cristãs – devendo a história humana tornar-se “resposta necessária e livre à livre necessidade e à necessária liberdade de ser do homem”. E deste modo, como afirma o discípulo português de Ratzinger, “a fé, para além do que tem de específico, possui ainda a capacidade de abrir o espírito humano àquela visão da verdade a que a nossa razão, por si mesma, pode ter acesso”.
Para nós portugueses, é especialmente interessante ver, a propósito do pensamento de São Boaventura, a recordação do franciscanismo universalista, que tão grande presença tem na nossa cultura, na linha do monge calabrês Joaquim de Fiore e de S. Francisco de Assis, temperado pelo poderoso contributo teológico de Santo António de Lisboa, formado na escola dos Agostinhos de Santa Cruz de Coimbra, o qual, por sua vez, se repercutirá no pensamento seiscentista do Padre António Vieira, e na concepção de “Quinto Império”. Afinal, o agostinismo franciscano faz parte do código genético da nossa cultura e do humanismo universalista de que falava Jaime Cortesão, e que levámos mundo afora. E aqui se conciliam a visão da história circular da antiguidade e a figura linear bíblico-cristã em que tudo se ordena para a plenitude final – propondo Ratzinger a figura da espiral, num permanente movimento ascendente, no qual “tudo o que sobe converge”. Não sendo possível em poucas linhas abarcar a riqueza da obra, deixo apenas, a terminar, duas ou três notas, a começar na pequena história que o Papa costumava contar no seu magistério teológico sobre “Joãozinho à procura de felicidade” (Hans im Glück): “Tendo-se visto na posse de uma pepita de ouro, Hans acha que é demasiado incómodo transportá-la, decidindo trocá-la primeiro por um cavalo, e sucedendo-se, depois, a troca deste por uma vaca, desta por um ganso, e, finalmente, do ganso por uma pedra de afiar, a qual Hans acaba por lançar à água, sem a noção de, com isso, ter perdido grande coisa. Pelo contrário, pensa ter ganhado assim o inestimável dom de uma total liberdade. A estória deixa à fantasia do leitor imaginar por quanto tempo durou esse estonteamento de Hans e como foi para ele sombrio o momento em que acordou da sua ilusão de uma suposta liberdade”…
Guilherme d’Oliveira Martins