“Cristo realiza, de forma perfeita e em plenitude, a função sacerdotal”
Introdução
Como vimos na primeira Catequese, no Antigo Testamento, o sacerdócio levítico, organizado na pesada estrutura sacerdotal do Templo de Jerusalém, não foi fiel à pureza da atitude sacerdotal exigida pela santidade de Deus e pelo ideal de santidade, na fidelidade, que constituía o coração da Aliança e, por isso, não garantiu a pureza e a qualidade da função sacerdotal. Isso originou no seio do Povo, sobretudo a partir dos Profetas que denunciaram a falta de santidade dos sacerdotes, um ideal de sacerdócio a realizar no fim dos tempos, que se confundem progressivamente com a vinda do Messias. As visões do Messias como Filho do Homem Celeste e como Servo que oferece a Sua vida em sacrifício, são já de ruptura com a estrutura sacerdotal do Templo. Jesus, que tantas vezes rejeita a aplicação a Si Mesmo da ideia do Messias-Rei, devido às confusões da interpretação que lhe era dada, assume a missão do Servo que se oferece, e chama-se, a Si Mesmo, o Filho do Homem Celeste, designação que reúne o mistério da encarnação-humanização do Verbo eterno de Deus e sublinha a importância da Sua última vinda gloriosa, na inauguração do tempo definitivo.
Cristo vive toda a sua missão em atitude sacerdotal e, sem pertencer à classe sacerdotal, realiza perfeitamente a função sacerdotal. Porque se situa mais na linha profética do que no messianismo oficial, toda a missão de Jesus é uma ruptura com a estrutura sacerdotal do Antigo Testamento.
A ruptura e a realização plena da função sacerdotal
1. A missão de Jesus, em relação ao Antigo Testamento, assume duas dimensões: de ruptura e de plena realização do que estava, apenas, intuído e anunciado. Aliás, isso torna-se numa dimensão fundamental da compreensão da nova vida, em Cristo: só a ruptura garante a abertura à novidade da Salvação.
Em relação à estrutura sacerdotal, esta ruptura manifesta-se de vários modos. Jesus não é sacerdote segundo a visão do Antigo Testamento. Não pertence à tribo de Levi e a nenhuma família sacerdotal. Não pode, sequer, reivindicar para Si, a qualidade sacerdotal. Perante a estrutura organizativa do Antigo Testamento, Jesus é um leigo, um judeu comum. Quando muito, alguns reconhecem-n’O como Mestre (rabbi). A partir de um determinado momento, também devido ao enfraquecimento, no exercício do sacerdócio levítico, do ministério da Palavra, surgem as sinagogas, lugar por excelência da comunicação da Palavra, onde se lia sempre e se comentava a Escritura. A sinagoga não era dominada pelos sacerdotes. Eram leigos preparados – os “Mestres” e os “doutores da Lei” – que assumiam essa função.
A ruptura manifesta-se, também, no facto de Jesus se situar na linha profética de crítica aos sacerdotes do Templo, sobretudo na defesa da pureza do culto e da santidade do Templo como casa de Deus, “Casa do Pai” e “casa de oração” (cf. Mc. 11,15-19). Ele realiza a purificação do Templo e afirma-se maior que o Templo (f. Mt. 12,6). Como já acontecera com os grandes profetas, há um conflito crescente entre Jesus e os sacerdotes do Templo. Este conflito será a causa explícita da sua condenação à morte. Jesus assume que, com Ele, cessa o sacerdócio levítico. A ruptura torna-se radical.
É por isso que os textos do Novo Testamento, excepção feita à Carta aos Hebreus, nunca aplicam a Jesus nem a linguagem nem a função sacerdotal.
Cristo realiza plenamente a função sacerdotal
2. Os Evangelhos, apesar de nunca atribuírem a Jesus o título e a qualidade de sacerdote, segundo a estrutura sacerdotal do Templo, apresentam o ministério e a missão de Jesus como realização perfeita da “função sacerdotal”, na sua pureza e na sua verdade, como ela tinha sido anunciada para os tempos messiânicos. Cristo assume a sua missão na linha do que tinha sido anunciado pelos grandes profetas e pelos salmos. É nessa linha que a sua atitude é sacerdotal, e se situam os seus ensinamentos, os seus gestos e, sobretudo, a sua morte. Lembremos as principais concretizações desta atitude sacerdotal no ensinamento e na vida de Jesus Cristo:
A santidade do culto. É uma exigência da santidade de Deus a quem é oferecido. Os profetas e os salmos tinham acentuado a ideia de que os sacrifícios litúrgicos, se não forem oferecidos por um coração puro, não agradam a Deus. O Salmista diz a Deus: “Não terás nenhum prazer no sacrifício, se eu Te oferecer um holocausto, não o aceitarás. O meu sacrifício é um coração contrito; um coração contrito e humilhado, Tu não o desprezarás” (Sl. 51,18-19). “Oferece a Deus um sacrifício de acção de graças, cumpre os teus votos ao Altíssimo; quem oferece acção de graças glorifica-me, ao homem recto farei ver a salvação de Deus” (Sl. 50,14.23).
Esta é uma exigência central do Reino de Deus pregado por Jesus: a renovação do coração. Isso é exigido para que se possa oferecer a Deus o sacrifício litúrgico. É a nova justiça do Reino. “Quando apresentas a tua oferta no altar, se te lembrares que o teu irmão tem razão de queixa contra ti, deixa a oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois volta para apresentares a tua oferta” (Mt. 5,23-24). A santidade do culto exige a conversão daqueles que o oferecem, os sacerdotes e todo o povo.
No diálogo com a Samaritana, respondendo à questão, posta por ela, da legitimidade do templo da Samaria, Jesus ultrapassa claramente a questão do templo para pôr o acento na pureza do coração exigida aos verdadeiros adoradores: “Vai vir a hora, e já estamos nela, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade, porque são esses adoradores que o Pai quer” (Jo. 4,23). Quando Jesus diz que essa hora já chegou, refere-se a Si Mesmo e à sua missão. Jesus tem consciência de que n’Ele, o Filho de Deus Pai, feito Homem, se garante e inicia essa adoração perfeita que enche o coração de Deus. A partir d’Ele, todos os verdadeiros adoradores só o são unidos a Ele, participando da sua oferta e do seu louvor.
O verdadeiro sacrifício de expiação
3. Os “sacrifícios de expiação” eram os mais solenes da liturgia judaica, no Templo de Jerusalém. O sacerdote implorava o perdão dos seus próprios pecados para, depois, implorar o perdão de Deus para todo o Povo e imolava um animal como sacrifício de expiação, aspergindo o Povo com esse sangue de reconciliação.
Já vimos como o Profeta Isaías, nos cânticos do Servo (cf. Is. 53,1-12), dá um sentido novo a este sacrifício de expiação. São textos que se situam no contexto da tensão entre os profetas e os sacerdotes do Templo. Eles, homens de Deus, sentem o drama do seu Povo e percebem que não são chamados à simples oferta de um animal, mas eles próprios carregam, sobre si, todos os pecados e sofrimentos do Povo e oferecem-se a si mesmos, como sacrifício de expiação, numa união inesperada entre o sacerdote que oferece e a vítima oferecida, anunciando profeticamente o sacerdócio de Cristo e da Igreja que é o seu Corpo.
Já vimos que Jesus, ao mesmo tempo que denuncia o sacerdócio oficial, aplica a Si Mesmo as visões sacerdotais dos profetas post-exílio, cuja perspectiva é o tempo escatológico. Ele aplica a si mesmo a missão do Servo do Profeta Isaías. São Mateus narra-nos a primeira vez que os fariseus decidem a morte de Jesus e o Senhor consciencializa a sua missão de Servo: “Ao verem isto (um milagre ao Sábado) os fariseus saíram e reuniram o Conselho contra Ele, em ordem a verem-se livres d’Ele. Jesus soube-o e deixou aqueles lugares (…) Assim se devia cumprir o oráculo do Profeta Isaías: Eis o meu Servo que Eu escolhi” (Is. 42,1-4). Jesus assume que a sua missão é a do Servo (cf. Mt. 12,15ss).
Nos seus discursos, adoptando para Si a designação messiânica de “Filho do Homem”, atribui-se o destino e a missão do Servo: “Quem quiser ser o primeiro entre vós, deve fazer-se vosso servo. É assim, pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate pela multidão” (Mt. 20,27-28). Anuncia várias vezes a sua Paixão mostrando, assim, a consciência clara de que a sua missão é a do Servo de Isaías: “Eis que subimos a Jerusalém e o Filho do Homem vai ser entregue aos sumos sacerdotes e aos escribas e eles condená-l’O-ão à morte e O entregarão aos pagãos para ser humilhado, flagelá-l’O-ão e crucificá-l’O-ão. E ao terceiro dia Ele ressuscitará” (Mt. 20,17-19). Jesus junta em Si as tradições messiânicas do Servo sofredor e do Filho do Homem glorioso, o que só é possível pela certeza que tem da sua ressurreição gloriosa como vitória sobre o sofrimento e sobre a morte.
4. Na última Ceia (cf. Mc. 14,24; Mt. 26,28), Jesus assume pessoalmente a atitude do profeta que se oferece a si mesmo, carregando sobre si os pecados da humanidade. Ele sabe que é um sacrifício de Aliança (cf. Ex. 24,8), da nova e definitiva Aliança. Não sendo sacerdote segundo a Lei, Ele assume a função sacerdotal, realizando plenamente o sentido do sacrifício cultual de expiação. Ele não oferece a Deus “coisas”, mas oferece-se a Si Mesmo. Pela primeira vez na longa história da função sacerdotal no Povo de Deus, o sacerdote que oferece o sacrifício de expiação é também vítima que se oferece. A oferta do Filho ao Pai insere-se no mistério da comunhão entre as Pessoas Divinas e retoma a função criadora do Verbo, recriando todas as coisas. Ao oferecer-Se como vítima, Cristo oferece ao Pai uma “nova criação”. A Ceia Pascal é decisiva para compreender a dimensão sacerdotal da oferta de Cristo na Cruz.
A perfeição escatológica do Sacerdócio
5. Já vimos, na Catequese anterior, como, perante a imperfeição do sacerdócio levítico, começa a ser anunciado para o tempo do Messias um sacerdócio perfeito. Surge mesmo o anúncio de um Messias Sacerdotal, para o fim dos tempos.
Podemos certamente relacionar com esta visão escatológica, a designação de “Filho do Homem” como Jesus, e só Ele, se designa a Si Mesmo. Encontramo-la com este sentido da plenitude escatológica em Dan. 7,13ss. Jesus designa-se, a Si Mesmo, várias vezes como Filho do Homem. Mas a mais solene é durante o seu processo, em que respondendo ao Sumo Sacerdote, Jesus usa a designação do Filho do Homem Celeste, vindo sobre as nuvens do Céu, revestido de poder, como designação messiânica (cf. Mt. 26,62-66).
Na sua última vinda em glória, Jesus inaugurará o tempo definitivo, a assembleia dos bem-aventurados, em que Ele será o único Sacerdote que oferecerá a Deus o culto perfeito, com toda a assembleia dos Santos.
A designação de “Filho do Homem”, que no judaísmo significava o homem, o filho de Adão, no seu paradoxo: pequeno diante de Deus mas que Deus engrandece acima dos Anjos (cf. Sal. 8). Ao designar-se como “Filho do Homem” do tempo definitivo, Jesus afirma também a dignificação definitiva do homem que, em assembleia sacerdotal, oferecerá por toda a eternidade o culto digno de Deus.
A mediação perfeita e definitiva
6. Sem se chamar sacerdote, Jesus realiza, de modo perfeito e definitivo, a principal função sacerdotal, a de ser mediador entre Deus e os homens. Essa foi a razão de ser da Encarnação do Verbo de Deus, e assegurou para toda a eternidade essa mediação entre Deus e a humanidade resgatada (cf. 1Tim. 2,5).
A união entre a Palavra e o Culto
7. Ao assumir a “função sacerdotal”, Jesus, a Palavra eterna de Deus, volta a restabelecer a unidade entre culto e escuta da Palavra, quebrada, como vimos, no Antigo Testamento, na tensão entre sacerdotes e profetas. Faz parte da “função sacerdotal” comunicar a mensagem divina. Esta é a chave de compreensão da Liturgia cristã: a Palavra e o Sacrifício fazem parte do mesmo acto de culto.
A Carta aos hebreus síntese da visão neo-testamentária do Sacerdócio de Cristo
8. A Carta aos Hebreus é o único texto do Novo Testamento que exprime a missão salvífica de Jesus, que, como já vimos, realiza plenamente a “função sacerdotal”, aplicando-lhe a linguagem sacerdotal. Compreende-se, pois trata-se de um texto dirigido a cristãos vindos do judaísmo. Trata-se de lhes mostrar que Cristo, na oferta de Si Mesmo, na Cruz, realiza plenamente tudo o que era anunciado no sacerdócio do Antigo Testamento e o ultrapassa definitivamente.
Ele não é Sacerdote segundo a ordem levítica. Citando o Salmo 110, situa-o mais na “ordem de Mechisedec” (cf. Gen. 14,18-20). Mas a verdadeira origem do seu sacerdócio é a sua filiação divina, a envolver-nos na sua Encarnação, onde na obediência amorosa à vontade do Pai, Ele Lhe presta o culto perfeito. Jesus é Sacerdote porque é o Filho de Deus feito Homem, e por isso Ele é superior a David (He. 5,1-10).
O Sumo Sacerdote da Aliança definitiva
9. O autor da carta aos Hebreus valoriza a afirmação de Jesus na última Ceia. A Sua morte é um sacrifício de Aliança, da nova e definitiva Aliança. Por isso faz cessar toda a antiga aliança e, consequentemente, a visão do sacerdócio levítico que a servia. Sacerdote da Aliança definitiva, Cristo realiza a anunciada perfeição escatológica do sacerdócio. Esta nova e eterna Aliança é a do tempo definitivo, a plenitude escatológica. O sacerdócio de Cristo é do tempo definitivo; o seu santuário é o Céu, a Casa do Pai a que se juntam todos os redimidos; a liturgia a que preside é a liturgia celeste da assembleia dos bem-aventurados. Nesse santuário, Ele entrou uma só vez e para sempre. Diz a Carta aos Hebreus: “O ponto central das nossas afirmações é que nós temos um Sumo Sacerdote que se sentou à direita do trono da Majestade, nos Céus, ministro do Sacerdócio e da Tenda, a verdadeira, aquela que foi erguida pelo Senhor e não por um homem” (Heb. 8,1-2).
10. Sumo Sacerdote definitivo, Ele preside à liturgia celeste. A grande novidade da compreensão do Povo de Deus, no Novo Testamento, é que o novo Povo de Deus, nascido de Cristo ressuscitado, participa já dessa liturgia celeste, vive, no tempo histórico, a plenitude do tempo definitivo. A Igreja é um “tempo intermédio” entre a ressurreição de Cristo e a escatologia. Nela, novo Povo de Deus, que espera a última manifestação da glória messiânica de Cristo, toda a função sacerdotal está ao serviço dessa liturgia celeste, antecipada na Igreja, que faz um com Cristo. A Igreja é peregrina dessa celebração definitiva a que preside Cristo glorioso, Sumo Sacerdote definitivo. Como antecipação da liturgia celeste, à liturgia da Igreja só Cristo pode presidir.
Como preside Cristo, Sacerdote do Santuário definitivo, à liturgia da Igreja? É o segredo do Sacerdócio Apostólico, exercido por aqueles que Cristo escolheu e consagrou e a quem deu o poder de exercerem, em seu nome, o seu sacerdócio. À liturgia da Igreja é Cristo que preside, Ele, o único Sacerdote, através dos Apóstolos e seus sucessores. Aprofundaremos este tema na próxima Catequese.
Sé Patriarcal, 28 de Fevereiro de 2010
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca