Catequese do Cardeal-Patriarca no 1.º Domingo da Quaresma

“A Função Sacerdotal”

Introdução

Estamos no Ano Sacerdotal, proclamado para toda a Igreja pelo Santo Padre Bento XVI. Preparamos a sua visita à Cidade de Lisboa no próximo dia 11 de Maio. Bispo de Roma, Cabeça do Colégio dos Bispos e Pastor Universal, ele vem como Sacerdote e Bom Pastor. Aprofundar o dom do sacerdócio é, certamente, uma boa maneira de prepararmos essa visita pastoral e, na Eucaristia por ele presidida, nos reconhecermos mais profundamente como povo sacerdotal, o Povo que o Senhor escolheu e continua a seguir como Pastor em ordem à santidade.

O desafio deste Ano Sacerdotal não envolve apenas os nossos sacerdotes, aqueles a quem chamamos padres; interpela-nos a todos como membros do Povo de Deus, todos os domingos convocados para celebrar a Eucaristia, com Jesus Cristo e como Ele a celebra, prestando ao Pai o louvor que Ele merece e onde se realiza a nossa redenção. Esse sacrifício de louvor é oferecido por um sacerdote, na pessoa de Cristo o único Sacerdote; mas é oferecido por todos nós que, pelo baptismo, nos unimos a Cristo. Na Eucaristia, torna-se claro que a Igreja, presidida por Cristo Sacerdote, é toda ela um Povo sacerdotal, porque faz um com Cristo, é o “corpo de Cristo”.

Nesta primeira Catequese, vamos aprofundar o significado da “função sacerdotal” a que deve corresponder uma atitude sacerdotal. Quando um sacerdote exerce o seu ministério sagrado, quando, na nossa caminhada pessoal de fé, procuramos um sacerdote, quando, como Povo do Senhor, celebramos a Eucaristia, em que consiste a atitude sacerdotal, expressa na função sacerdotal? Perceberemos que há sempre uma dimensão sacerdotal na vida da fé, quer como povo crente, quer como membros desse Povo.

Sacerdócio e Religião

1. A família humana foi, desde sempre, espontaneamente religiosa. Acreditou no ser divino e prestou-lhe culto. Esta expressão religiosa surgiu ligada à fisionomia própria de cada povo, inspirando-se tanto na harmonia da natureza, como na interioridade do homem, que pela sua inteligência procurava a verdade e a sabedoria. A figuração da divindade aparece, assim, quer ligada aos ritmos da natureza, importantes para a vida humana, como à compreensão do homem e da sua história, ligando a divindade a dimensões importantes e decisivas da vida humana. A este conjunto de manifestações espontâneas da religiosidade, que acompanharam e exprimiram a dimensão transcendente da existência humana, ao longo de milénios, chamamos “religiões naturais”. Em todas elas, de forma mais ou menos elaborada, encontramos a “função sacerdotal”.

No centro, está sempre a necessidade dos homens entrarem em contacto com a divindade, merecendo a sua benevolência e protecção, apaziguando as suas “iras”, praticando, para isso, o culto, onde avulta o “sacrifício”, isto é, aquilo que os homens oferecem à divindade, para a apaziguar ou alcançar a sua benevolência e protecção. O sacerdote aparece como um mediador entre os homens e a divindade. A própria palavra religião sugere isso: “religare”, fazer a ponte com a divindade.

Mas não é nas “religiões naturais” que devemos procurar o sentido da “função sacerdotal” e da respectiva atitude sacerdotal, mas sim no Povo da Aliança, no judeo-cristianismo, que é o mesmo povo crente, com uma unidade progressiva até à sua manifestação definitiva em Jesus Cristo, o Messias esperado pelos judeus e que vem introduzir o Povo na plenitude da Aliança.

A função sacerdotal no Povo da Aliança

2. A especificidade da religião de Israel distingue-a profundamente das “religiões naturais”. A sua origem está no próprio Deus, que se revela, constitui um Povo com quem faz Aliança. A iniciativa decisiva é sempre de Deus, que nunca abandona o seu Povo. Esta origem da religião de Israel marca duas diferenças fundamentais na compreensão da função e da atitude sacerdotais: a prioridade não é posta na busca das relações dos homens com Deus, mas nas relações de Deus com o seu Povo. A este compete escutar o Senhor e seguir os seus ensinamentos, pondo-os em prática; por isso, o acento não é posto nas relações dos homens individualmente com a divindade, mas no Povo, na comunidade dos crentes, na “qahal Yahwé”; a assembleia de Deus, que é o principal interlocutor de Deus, exprimindo, assim, que é em comunidade que os indivíduos se aproximam de Deus.

Desse Povo, Deus espera que escute a sua Palavra, seja fiel à Aliança ratificada entre ambos, entre Deus e o Povo, espera, no fundo, que seja um Povo Santo, como Deus é Santo. Deus revela-se a si mesmo, é um Deus único, vivo e fonte de vida, Ele é o Criador de todas as coisas, é um Deus forte e omnipotente, a sua Palavra é forte e eficaz, realiza tudo o que diz; mas é também um Deus bondoso e amoroso, cheio de ternura e de misericórdia. Mas revela também que tem um desígnio amoroso para os homens e empenha-se na realização desse desígnio. Do Povo, Ele espera a correspondência de amor, de fidelidade, de santidade. Nada dá tanta glória a Deus como ver o Povo progredir na realização desse desígnio. A resposta que Deus espera do Povo é que escute a sua Palavra, acredite nela, e viva segundo o desígnio manifestado pelo Senhor. A fé e a fidelidade são as atitudes humanas que Deus recebe como um culto digno d’Ele. A atitude sacerdotal exprime-se na fidelidade à Aliança.

3. Os textos de Aliança definem bem a atitude sacerdotal que Deus espera do Seu Povo, o Povo com quem fez Aliança:

“Moisés subiu até junto de Deus. Da montanha o Senhor chamou-o, dizendo: Assim dirás à Casa de Jacob e declararás aos filhos de Israel: vós vistes o que Eu fiz no Egipto, como vos carreguei sobre asas de águia e vos trouxe até Mim. E agora, se escutardes bem a minha voz e guardardes a minha Aliança, sereis para Mim propriedade particular entre todos os povos porque minha é a terra inteira. Vós sereis, para Mim, um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex. 19,3-6).

É o texto que estabelece a Aliança entre Deus e o Povo de Israel. Por tudo o que Deus faz por ele, espera a fidelidade do Povo, que obedeça à Sua Palavra e O louve na fidelidade e santidade de vida. Esse é o verdadeiro culto que Deus espera do seu Povo, que O louve com a sua fidelidade à Aliança. E o sujeito desta atitude sacerdotal é todo o Povo. Por isso Deus o considera “um reino de sacerdotes e uma nação consagrada”. A fidelidade à Aliança constitui o Povo escolhido como um povo sacerdotal.

Isso não exclui que se exerça no culto devido a Deus pelo Povo eleito a função sacerdotal, para levar a comunidade de Israel a exprimir a sua atitude sacerdotal. Por outro lado, a história de Israel mostra que não foi fácil todo o Povo, em todas as circunstâncias, ser fiel à Aliança e, assim, prestar a Deus o louvor que lhe é devido. Podemos dizer que a infidelidade do Povo marca mais o ritmo da sua história do que a fidelidade. Adoram outros deuses, esquecem-se da Palavra do Senhor, praticam os costumes dos pagãos. A função sacerdotal tem também o sentido de levar o Povo à conversão, de implorar de Deus a misericórdia e o perdão, de suscitar no Povo a esperança da fidelidade e da santidade. A importância desta “função sacerdotal” neste chamar à conversão e suscitar a esperança de uma fidelidade como Deus deseja, leva a esclarecer e a fortalecer a instituição sacerdotal.

A função sacerdotal institucionalizada

4. A saída do Egipto, a travessia do deserto e a entrada na “terra prometida” significam uma etapa decisiva na organização de Israel como Povo. Moisés, na concretização da Aliança, lança as bases dessa organização em todos os aspectos da vida da comunidade: as leis, no código da Aliança, a aplicação da justiça e também o culto a Yahwé.

Na longa tradição de Abraão até Moisés, a função sacerdotal existiu mas não estava ligada a uma instituição sacerdotal. Era espontânea, muito ligada à vida e aos seus momentos especiais, e era exercida pelos pais de família, pelos chefes de tribo. Não estava ligada ao templo como lugar sagrado, mas ao lugar e ao momento de acontecimentos particularmente significativos. No Génesis, na história de Abraão, aparece-nos uma figura de sacerdote, Melquisedec, que não está ligado a nenhuma estrutura sacerdotal, que é apresentado como Rei de Shalem, que pode ser Jerusalém, e que é chamado sacerdote do Deus Altíssimo e abençoa Abraão em nome de Deus (cf. Gen. 14,17ss). Na história do Povo de Israel, estabelecido na terra prometida, várias vezes os reis aparecem a exercer funções sacerdotais. Melquisedec ficará no ideal religioso de Israel como o sacerdote perfeito, desligado da estrutura sacerdotal do Templo. Ele torna-se o modelo do sacerdócio do Messias prometido: “Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec” (Sl. 110,4) e que a Carta aos Hebreus atribui ao sacerdócio de Jesus Cristo (cf. Heb. 5,6).

Na história religiosa de Israel há, assim, uma tensão entre a estrutura sacerdotal, ligada ao Templo, e a função sacerdotal ligada directamente à iniciativa de Deus que garante tudo o que o Povo precisa para desenvolver a intimidade com o Deus da Aliança. O Messias será a concretização dessa função sacerdotal garantida pelo próprio Deus; Melquisedec é o seu anúncio; Cristo é a sua realização plena.

5. No Livro do Êxodo, que narra a estrutura organizativa da nova etapa histórica do Povo, nasce a nova estrutura da função sacerdotal. O irmão de Moisés, Aarão, é investido do poder sacerdotal (cf. Ex. 28,1) e determina-se tudo o que diz respeito ao Santuário e à liturgia. Está estabelecida a estrutura litúrgico-sacerdotal, do que mais tarde se chamará o sacerdócio levítico, porque toda a tribo de Levi ficou adstrita ao serviço sacerdotal.

A institucionalização da função sacerdotal valoriza o Templo – tenda da reunião e, mais tare, o Templo de Jerusalém. Toda a função sacerdotal se exerce no Templo, que se torna centro decisivo da unidade espiritual de todo o Povo de Deus. A separação política do Reino do Norte, na Samaria, tem na base um cisma. Os samaritanos recusaram-se a vir ao Templo de Jerusalém e criam um novo templo. A mulher samaritana, em diálogo com Jesus, faz-se eco desse cisma: “Os nossos pais adoraram sobre esta montanha (o monte Garizim), e Vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar” (Jo. 4,20).

Com a instituição do Templo, relativiza-se a função sacerdotal ligada à vida, à família, aos grupos. Esse culto ligado à vida fica mesmo proibido (cf. Lev. 17,1ss). O Templo levou a que a função sacerdotal se transformasse num poder, sobretudo do Sumo Sacerdote. Mas o seu sentido profundo continua a ser o mesmo: o culto é atitude do Povo santo, o Povo com quem Deus fez Aliança. O sacerdote preside e faz chegar a Deus o culto da comunidade, que é louvor, adoração, manifestação de obediência a Deus e de fidelidade à Aliança; é também prece pelas necessidades concretas do Poo.

            As expressões principais desta função sacerdotal são: o sacrifício, o serviço da Palavra, os actos de consagração e de bênção.

O sacrifício

6. É a principal expressão da função sacerdotal. Na sua essência é uma oferta, que agrada a Deus, do melhor que se tem. O Povo de Israel vai percebendo, sobretudo através da pregação dos Profetas, que a oferta que mais agrada a Deus é um coração puro, que pratica a justiça. As outras ofertas, como animais, os frutos da terra, se não forem expressão desse coração puro, não agradam a Deus (cf. Am. 5,21-27).

Conseguir que todo este Povo tenha um coração puro, não um “coração incircunciso” (Lev. 26,41), um “coração duplo” (Os. 10,2) é o grande desafio espiritual de Israel, o que leva o Profeta Jeremias a anunciar, para o tempo do Messias, uma nova Aliança, em que Deus promete: “porei a minha lei no mais profundo do seu ser e escrevê-la-ei no seu coração” (Jer. 31,33). E a garantir: Dar-lhe-ei outro coração e outra maneira de agir… concluirei com eles uma Aliança eterna” (Jer. 32,39ss).

Devido a esta consciência da dureza do coração, a liturgia do Templo valoriza os sacrifícios de expiação. Mas com o anúncio de uma nova Aliança, para os tempos do Messias, toma-se consciência da necessidade da redenção do coração: é preciso um coração novo.

Proclamação da Palavra e da “Bênção de Deus”

7. Deus atende as preces do seu Povo e responde, sobre a forma de “bênção”. Compete ao sacerdote comunicar ao Povo essa resposta de Deus, proclamar a “bênção de Deus”. Nos cultos pagãos havia o oráculo, normalmente expresso através das artes mágicas de adivinhação dos “magos” ou “videntes”.

Israel rejeita estas artes mágicas e divinatórias. O Deus de Israel é um Deus pessoal, que fala directamente ao seu Povo. Comunicar a Palavra do Senhor é função dos sacerdotes e dos profetas.

O ministério sacerdotal tinha, já no Antigo Testamento, uma dimensão profética. Devido à infidelidade dos sacerdotes, Deus envia profetas, o que mostra a importância que tinha para Deus esta comunicação da sua Palavra. Alguns destes profetas são sacerdotes, como Jeremias e Ezequiel, outros não. Surge uma certa tensão entre sacerdotes e profetas. Estes aparecem com mais liberdade que os sacerdotes, para quem o ministério da Palavra tem regras rituais:

  • A narração dos grandes feitos de Deus. Alimentar a memória é importante para a fé de Israel;
  • À luz dessa memória, o sacerdote explica a Lei de Deus. Eles são os intérpretes normais da Lei;
  • Nesta interpretação da Lei, os sacerdotes respondem às dúvidas e questões práticas dos crentes;
  • Torna a Lei compreensível e acessível na redacção dos diversos códigos.

O sacerdote aparece ao Povo como o homem do conhecimento. É o mediador da Palavra de Deus na sua forma tradicional de História da Salvação e de códigos de vida.

Quando os sacerdotes se limitaram ao culto e perderam este ministério do conhecimento e da sabedoria, a tensão com os profetas era inevitável (cf. Os. 4,4-6)

Santidade do culto e dos sacerdotes

8. O Deus de Israel é um Deus Santo. O culto que lhe presta o Seu Povo, tem de ser digno dessa santidade e exige, pelo menos, a santidade dos sacerdotes. A falta de santidade dos sacerdotes é veementemente denunciada pelos Profetas, o que se torna na principal causa da tensão existente entre Profetas e Sacerdotes. Eis algumas das principais denúncias dos profetas: contaminam o culto, misturando-o com usos pagãos (cf. Os. 4,4-11); o que leva a um certo sincretismo religioso em Jerusalém (cf. Jer. 2,26ss); violam, eles próprios, a Lei do Senhor (cf. So. 3,4; Jer. 2,8; Ez. 22,26); deixam-se levar por interesses pessoais (cf. Mi 3,11); falta de zelo pelo culto do Senhor (cf. Mal. 2,1-9).

A exigência da santidade do culto e dos sacerdotes que o oferecem, em nome do Povo, faz surgir a esperança num sacerdócio perfeito, digno da santidade de Deus, que se realizará no tempo do Messias, que inaugurará o tempo escatológico. Embora a espera de um Messias-Rei Justo nunca tenha desaparecido, surgem, sobretudo depois do exílio de Babilónia, duas expressões do messianismo sacerdotal, que se afastam daquela tradição do Messias-Rei e relativizam a estrutura sacerdotal do Templo:

* O Messias é o Filho do Homem, que desce do Céu, reúne os justos e inaugura o tempo definitivo (cf. Dan. 7). Ligada a esta visão do messias como Filho do Homem Celeste, aparece a noção de um Messias Sacerdote, contrapondo-a ao Messias-Rei, já muito adulterada pela dimensão política da vitória de Israel sobre os seus inimigos (cf. Za. 3,8; 6,qq). Nesse tempo definitivo, todo o Povo será santo e oferecerá a Deus o culto perfeito. Ele será um Povo Sacerdotal (cf. Ez. 40,48; Is. 60-62; 2,1-5).

* O Messias visto como Servo, que carrega todos os pecados do Povo e oferece a sua vida pela expiação desses pecados (cf. Is. 42,1ss). Esta figura do Messias Servo, se anuncia a figura futura de Cristo, que assumirá esta missão do Servo, refere também a missão de todo o Povo que só se purificará assumindo o sofrimento e a sua força redentora. Na figura deste Servo está anunciado tanto o Cristo Sofredor como a Igreja, que unida à Paixão de Cristo, oferecerá o verdadeiro sacrifício redentor até à inauguração do tempo definitivo. Está também ligada à assunção, pelos grandes profetas, de uma atitude sacerdotal. A relativização da instituição sacerdotal é, assim, anunciada. Será radicalizada por Jesus Cristo, que nunca se assume como pertencendo à classe sacerdotal, mas cumpre, com perfeição, a função sacerdotal, numa atitude sacerdotal perfeita. Os títulos messiânicos que Jesus prefere e aplica a Si Mesmo são exactamente esses que se distanciam do messianismo oficial. Ele é o Filho do Homem e assume completamente a missão do Servo.

Sé Patriarcal, 21 de Fevereiro de 2010

JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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