Homília do Bispo do Porto na Quarta-Feira de Cinzas

Das cinzas recebidas à Páscoa que sabemos

Começamos a caminhada quaresmal. Mas não em tempo circular, antes em tempo aberto, como a Palavra de Deus nos conclama a fazê-lo. Ouvimo-la no profeta Joel: “Diz agora o Senhor: ‘Convertei-vos a Mim de todo o coração!”. Menos é impossível e até seria nada: requer-se uma viragem completa de ânimo e vida, para Deus e para tudo a partir de Deus.

A conversão não se faz em relação a uma ideia vaga, nem a um projecto apenas, a um melhor comportamento que fosse. Mas ao próprio Deus, e “de todo o coração”, correspondendo – ainda que em paupérrima medida – à totalidade com que o Deus vivo sempre nos procura e interpela.

Ou ainda, com o Apóstolo igualmente ouvido, falando aos coríntios como agora a nós: “Nós vos pedimos em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus”. Consciência clara tinha Paulo de que só isso lhe era pedido e aos seus interlocutores com ele: coadunar inteiramente, em espírito e acção concreta, a nossa vida com o amor de um Deus que nos procura até ao fim, até ao último reduto da nossa resistência, ao último recanto do nosso pecado.

Essa procura divina a que Paulo alude, sabemos bem qual é, ou antes que rosto teve e tem. Teve nome e figura, chamou-se Jesus Cristo. Oiçamo-lo de novo e claríssimo: “A Cristo que não conheceu o pecado, identificou-o Deus com o pecado por amor de nós, para que em Cristo nos tornássemos justiça de Deus”. E é esta mesma convicção da desmesura do amor divino, na inesgotável procura de cada um de nós, que torna o Apóstolo ainda mais incisivo e directo: “Como colaboradores de Deus, nós vos exortamos a que não recebais em vão a sua graça”.

“Como colaboradores de Deus…”. Em Paulo, assim era e plenamente. De tal modo se descobriu como objecto e alvo da justiça divina – que em Cristo assumira, sofrera e redimira as tristíssimas consequências do nosso pecado -, que só pôde fazer duas coisas desde então: viver em contínua acção de graças e tornar-se, medularmente, testemunha e arauto da graça de Cristo.

Por isso mesmo insiste connosco nesta celebração de Cinzas: “Não recebais em vão a graça divina!”. E também: “Tornai-vos comigo colaboradores de Deus para a salvação de todos”. Urgia, de facto, e hoje talvez mais, que a todos fosse dito e demonstrado, em vidas convertidas, que por longe que estejamos de Deus e de tudo, há um caminho aberto de retorno e progresso na recriação das vidas. O caminho que o próprio Deus “percorreu” ao nosso encontro, quando em Cristo fez da grande distância a maior coincidência. Coincidência com o amor de Deus, do Pai misericordioso que activamente espera por todos os “pródigos”, para a festa infinda a que nos destinou e de que não desiste.

Inaudita, verdadeiramente inaudita e imprevisível, é a maneira divina de nos recriar no mundo, inaugurando o Reino. Inaudita, porque, aludindo a uma parábola, mais natural seria a lógica do irmão mais velho, que nem se inquieta com o afastamento do mais novo, nem se alegra com o seu regresso (cf. Lc 15, 11 ss). Lógica naturalíssima, do tipo “quem mas faz, paga-mas” ou “olho por olho, dente por dente”, segundo o velho Talião… Mas a “lógica” divina é unicamente a do amor, que, ao contrário da acepção consumista que a palavra tantas vezes tem, significa vontade firmíssima de recuperar a todos e a cada um, buscando-os onde estiverem, em atitude plena de auto-doação e companhia no regresso.

Esta sim, e unicamente assim, é a maneira divina de fazer e refazer as coisas; a sua “justiça”, mais propriamente dita. E a convicção sai fortíssima a São Paulo: “A Cristo que não conhecera o pecado, identificou-o Deus [Pai] com o pecado por amor de nós, para que em Cristo nos tornássemos justiça divina”.

É a esta atitude divina e ao seu fruto em nós que o Papa Bento XVI dedica a sua mensagem quaresmal deste ano. Leiamo-la com a máxima atenção, pela oportunidade e profundidade que contém. É seu lema uma forte convicção paulina: “A justiça de Deus está manifestada mediante a fé em Jesus Cristo” (cf. Rm 3, 21-22). E leva-nos muito longe, com consequências muito ao perto.

Toma do antigo Direito a definição de justiça, como o “dar a cada um o que é seu”, mas para logo aprofundar “o que é seu”. Na verdade, a mais organizada das sociedades, com a maior das riquezas distribuídas, pode ainda não bastar à total justiça de dar a cada um o que é seu, o que lhe é inteiramente devido. De facto, a vida de qualquer homem ou mulher, requerendo todas as condições materiais e socioculturais do bem comum, não se resolve nem satisfaz fora da relação filial com Deus, verdadeira fonte de justiça e de paz entre todas as suas criaturas. Em Cristo, Deus abeira-se de nós para nos levar de regresso ao seu amor, assim se cumprindo toda a justiça, dando-nos o que humanamente não nos devia, mas divinamente, misericordiosamente, nos quis dar, graça por pecado, vida por vida.

– Espantosa justiça de Deus, inimaginável conclusão de tudo! É unicamente a esta justiça, tão misericordiosamente dilatada e oferecida, que queremos corresponder agora, em conversão agradecida e persistente.

Como escreve o Papa na sua luminosa mensagem, numa catequese que tanto relembra os ensinamentos paulinos: “- Qual é portanto a justiça de Cristo? É antes de mais a justiça que vem da graça, onde não é o homem que repara, que se cura a si mesmo e aos outros. O facto de que a ‘expiação’ se verifique no ‘sangue’ de Jesus significa que não são os sacrifícios do homem a libertá-lo do peso das suas culpas, mas o gesto do amor de Deus que se abre até ao extremo, até fazer passar em si ‘a maldição’ que toca ao homem, para lhe transmitir em troca a ‘bênção’ que toca a Deus (cf. Gl 3, 13-14)”.

Amados irmãos: não tomemos estas considerações de Paulo ou de Bento XVI por “demasiado” teológicas, ou só para alguns. Muito pelo contrário, trata-se do cerne da verdade cristã, como ela libertou a Paulo e nos libertará a nós, na rendição completa, sem orgulho nem demora, à espantosa gratuidade divina. Assim cada um de nós, nas luzes e sombras que transporte ainda; assim este mundo, onde as trevas do Gólgota continuem à espera do alvor pascal; assim a Igreja que somos, com tanta resistência e contrafacção da verdade que anuncia e, apesar de tudo, a justifica. Como se disséssemos que, na Igreja, é mais decisivo o que “sobra” do que aquilo que aparece, aplicando-lhe outra passagem paulina: “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20).

De facto, caríssimos irmãos, a Igreja não se justifica pela excelência, mas sim pela penitência dos seus membros, ainda que nalguns deles rebrilhe excelentemente a acção da graça divina, à qual e pela qual constantemente se convertem. O nosso momento de maior autenticidade será mesmo o acto penitencial com que começamos cada Eucaristia, reconhecendo-nos absolutamente “mendigos do amor de Deus”. Lembremo-nos da parábola do fariseu e do publicano, em que só foi justificado o que se reconheceu pecador (cf. Lc 18, 14). Lembremo-nos de que só assim nos encontra Jesus, que não veio chamar os justos, mas os pecadores” (cf. Mt 9, 13).

Sim, irmãos, mesmo quando falarmos de nós e da Igreja em geral, é sobretudo a Deus que nos referimos, única Fonte da conversão a realizar. Tudo o que tivermos a corrigir, será por nós e para o bem dos outros, decerto; mas só o será perfeitamente quando responder, do fundo dum coração agradecido, à misericordiosa justiça que nos recuperou em Cristo. E é por isso que o Evangelho desta Missa insiste tanto em que as práticas penitenciais acontecem prioritariamente entre cada um de nós e Deus. Esmola, oração ou jejum, fazem-se com máxima discrição exterior e total intimidade com Deus: “e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa”, insiste Jesus por três vezes.

E é também neste contexto de conversão autêntica que o Santo Padre nos lembra a centralidade da Eucaristia e da Penitência, em gratidão consequente a tudo o que o Pai nos ofereceu em Cristo. Com um belo ensinamento a reter: “Compreende-se então como a fé não é um facto natural, cómodo, óbvio: é necessário humildade para aceitar que se precisa que um Outro me liberte do ‘meu’ [pecado], para me dar gratuitamente o ‘seu’ [amor]. Isto acontece particularmente nos sacramentos da Penitência e da Eucaristia. Graças à acção de Cristo, nós podemos entrar na justiça ‘maior’ que é aquela do amor’ (cf. Rm 13, 8-10), a justiça de quem se sente em todo o caso sempre mais devedor do que credor, porque recebeu mais do que aquilo que poderia esperar”.

Na nossa Diocese, a vivência da Missão 2010 já teve dois particulares momentos em torno destas dimensões essenciais. Em Janeiro, milhares de cristãos cantaram a crentes e não crentes a “divina graça” que nos foi oferecida no Presépio de Belém. A mesma graça que há dias tantos jovens adoraram na Cruz do Salvador, donde brotam generosas as Fontes da Alegria. Como continuaremos em Março, em autêntica Compaixão, recebida e testemunhada por antigas e novas celebrações quaresmais…

– Caminhemos, pois. E das cinzas recebidas nos ressuscitará a graça da Páscoa que sabemos!

Sé do Porto, 17 de Fevereiro de 2010

+ Manuel Clemente, Bispo do Porto

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