Homilia de D. António Carrilho na missa de Quarta-Feira de Cinzas

“Convertei-vos a Mim de todo o coração…” (Joel 2,12)

Com a celebração litúrgica de hoje, quarta-feira de Cinzas, a Igreja inicia a sua caminhada quaresmal, tempo especial de graça, de conversão pessoal e comunitária, como preparação para a solene e frutuosa celebração da Páscoa, acontecimento central da nossa fé cristã.

As cinzas são sinal de penitência, convite ao arrependimento e à conversão; lembram a fragilidade e finitude humanas neste nosso peregrinar, a caminho da eternidade de Deus. É assim que o rito da bênção e imposição das cinzas não pode ser apenas um gesto exterior, de mera tradição, mas um compromisso interior exigente, na escuta da Palavra e na fidelidade à voz do Espírito. Diz-nos Deus, através do Profeta Joel: “Convertei-vos a Mim de todo o coração…” (2,12). Daí a urgência de parar, de fazer silêncio, interiorizar a mensagem e caminhar ao ritmo do Coração de Cristo.

A espiritualidade do deserto quaresmal, com o seu horizonte aberto ao Infinito, escuta da Palavra, silêncio e conversão, continua a ser espaço privilegiado de encontro íntimo e pessoal com Deus. E um coração, transfigurado pelo Amor, abre-se incondicionalmente aos outros, em gestos concretos de solidariedade, diálogo, tolerância, perdão, comunhão fraterna e inclusão social.

A força libertadora da Palavra

O texto do livro do profeta Joel, que acabámos de escutar, acentua a exigência de renovação interior: “rasgai o vosso coração e não os vossos vestidos” (Joel 2,13). Trata-se de uma mudança, de uma renovação verdadeira e profunda do próprio coração, que no sentido bíblico significa a totalidade da pessoa. Este convite estende-se a todas as pessoas de todas idades e tem como resposta certa a presença libertadora e salvadora do amor misericordioso de Deus: “O Senhor encheu-Se de zelo pela Sua terra e teve compaixão do Seu povo” (Joel 2,18).

Na segunda leitura, S. Paulo refere que o amor eterno de Deus salvador manifestou-se, de forma extraordinária, em Cristo Jesus, que, solidário com a humanidade pecadora, assumiu a condição humana e entregou-Se, sem reservas,

pela vida do mundo: “A Cristo que não conhecera o pecado, identificou-O Deus com o pecado por amor de nós” (2Cor 5,21).

No relato do evangelho de S. Mateus, Jesus introduz-nos no dinamismo da autêntica conversão, agradável a Deus. Esta não consiste num conjunto de práticas exteriores, de aparente religiosidade, mas apenas para dar nas vistas: Jesus não condena as sãs tradições religiosas da esmola, oração e jejum, mas pede que sejam praticadas com pureza de intenção. Estes gestos de renúncia devem ser realizados sem ostentação, com alegria e humildade, no segredo que só o Pai conhece. Disse Jesus: “Tende cuidado em não praticar as vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles (Mt 6,1). É que a ascese quaresmal, nascida como exigência do amor misericordioso de Deus, tem como finalidade o encontro íntimo e pessoal com o Pai, a reconciliação da própria pessoa, das famílias e da sociedade em geral.

A mensagem do Papa

O Santo Padre Bento XVI, na sua Mensagem para a Quaresma deste ano de 2010, com o tema “A justiça de Deus está manifestada mediante a fé em Jesus Cristo” (Rom 3,21), reflecte sobre as injustiças e desigualdades sociais, convidando os filhos da Igreja a uma “autêntica conversão e conhecimento intenso do mistério de Cristo, que veio para realizar a justiça”. Esta justiça de que nos fala S. Paulo na Carta aos Romanos, citada pelo Papa, é a justiça salvadora de Deus, que assumiu a sua forma histórica em Cristo e no Seu Mistério Pascal: morto e Ressuscitado, Ele é o único Salvador da Humanidade! Na realidade, como recorda o Papa, o afastamento de Deus, o desconhecimento de Cristo e a ausência de valores constituem causas de egoísmo e dos seus inevitáveis reflexos nas injustiças da nossa sociedade consumista e no desequilíbrio económico mundial.

A pretensão da cultura laica actual de construir uma sociedade sem Deus, com a nova “idolatria do mercado”, potenciadora de desigualdades, conduz a família humana a caminhos de tristeza, de angústia e até de desespero. O Santo Padre afirma que “não são os sacrifícios do homem a libertá-lo do peso das suas culpas, mas o gesto do amor de Deus, que Se dá até ao extremo…” (Mensagem para a Quaresma de 2010). Na verdade, somente transfigurados e configurados pelo amor de Cristo, num renovado entusiasmo e empenho eclesial, poderemos responder aos desafios do nosso tempo, perante as desigualdades e as injustiças de ordem social e económica existentes.

Sociedade actual, caminho da Igreja

Uma caminhada quaresmal autêntica contempla a conversão do coração, mas também a abertura à fraternidade e solidariedade para com os irmãos, sobretudo, os mais carenciados.

A Comunidade Europeia, face aos 80 milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza, propôs este ano de 2010 para “Ano Europeu do combate à Pobreza e à Exclusão Social”. É uma estratégia no sentido de sensibilizar e responsabilizar as pessoas, as instituições, os governos e a comunidade internacional, no sentido de se empenharem ainda mais na busca de soluções e respostas concretas e eficazes, para aqueles flagelos sociais, que deploramos.

A Igreja atenta a estes gravíssimos problemas que afligem a humanidade, não pode demitir-se da sua missão profética e social, comprometendo-se ela própria, a favor de todas as vítimas de injustiças e descriminações.

Mediante as suas instituições e organismos de solidariedade social, tem vindo a promover a dignidade humana, a nível cultural e, de modo especial, em situações concretas de novas formas de pobreza e exclusão social, dispensando particular apoio às famílias atingidas pelo desemprego e a todos aqueles que sofrem a solidão, o abandono e a marginalização. A Igreja sabe, porém, que somente unida a Cristo e pautando a vida por critérios evangélicos, poderá desenvolver uma verdadeira “cultura da compaixão”, em ordem à construção de uma sociedade mais humana, mais justa e mais fraterna.

Renúncia quaresmal e solidariedade

Foi com grande alegria que, apesar da crise financeira que a todos afecta, pude comprovar a generosidade do bom povo de toda a nossa Diocese, aquando do meu apelo de ajuda às vítimas do sismo do Haiti. Até ao dia de hoje, a soma das ofertas recebidas das paróquias e pessoas anónimas, na Cáritas e na Cúria Diocesana, totaliza a significativa quantia de 72.049,53€. A todos agradeço o testemunho da vossa caridade e peço a Deus que transforme em bênçãos a vossa resposta pronta, alegre e generosa.

Pensando, também, em situações de carência mais próximas de nós, neste tempo difícil para tanta gente, destinamos a tradicional Renúncia da Quaresma deste ano para o Fundo Social Diocesano. Este Fundo, instituído na Quaresma de 2008, tem em vista, como então foi anunciado, “uma ajuda mais eficaz às situações de pobreza real, muitas vezes envergonhada, que algumas instituições da Igreja bem conhecem, por exercerem a sua actividade numa relação muito próxima e personalizada”.

As ofertas desta Renúncia Quaresmal serão recolhidas em todas as igrejas e capelas, conforme é costume, nos ofertórios das Missas de Sábado e Domingo de Ramos, ou seja, nos próximos dias 27 e 28 de Março. Como sempre, a participação é muito livre, segundo as possibilidades e a consciência pessoal dos fiéis, na certeza de que Deus não deixará sem recompensa qualquer gesto de atenção e partilha fraterna.

Sob a protecção de Maria

Com a presença e sob a protecção maternal da Senhora Peregrina de Fátima, Mãe da Igreja, vamos fazer o nosso percurso quaresmal de conversão e deixar que Cristo nos liberte por dentro. E como escreve o Papa Bento XVI, “isto acontece particularmente nos sacramentos da Penitência e da Eucaristia” (Mensagem para a Quaresma 2010).

Nesta caminhada, onde não faltam, certamente, sofrimentos e dificuldades a vencer, Maria aponta-nos o Coração de Cristo trespassado, solidário com a humanidade, como sinal da inefável Misericórdia de Deus e Fonte perene de Água viva e de salutar Esperança. Seja, pois, o Senhor da Páscoa, morto e ressuscitado, fonte da nossa alegria e esperança, o Senhor da nossa Vida!

Funchal, 17 de Fevereiro de 2010

† António Carrilho, Bispo do Funchal

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