Quaresma na crise – crise da nossa Quaresma?

Acácio Catarino

A presente reflexão limita-se à abordagem da Quaresma na perspectiva social, considerando apenas alguns aspectos; nesta perspectiva, a Quaresma seria um tempo forte de análise dos problemas sociais e de exame de consciência sobre a maneira como vivemos, neles, o nosso compromisso cristão. A maior parte dos cristãos actua, certamente, no domínio social com a melhor das intenções, com o melhor espírito, correspondendo às exigências de cada momento e de cada situação. Muitos pertencem a instituições e movimentos que dão um contributo efectivo para a transformação do mundo a favor da justiça, da paz e do desenvolvimento solidário e sustentável. Contudo, vale a pena interrogarmo-nos sobre se basta isso para nos inserirmos no desígnio bíblico e sociopolítico do «destino universal dos bens».

A inserção neste desígnio implica inúmeras actuações da nossa parte, a nível pessoal-familiar, intermédio e nacional-internacional. A nível pessoal-familiar, surgem não só os imperativos mais tradicionais da ética, da sobriedade e solidariedade na obtenção de rendimentos e na sua aplicação, mas também a promoção da justiça, da paz e do desenvolvimento solidário. Para além disso, não podemos esquecer a integração de cada um de nós na hierarquia de riqueza, rendimento, poder, conhecimento, estatuto… aí torna-se imperioso optarmos entre a progressão egoísta ou solidária na escala social. Prevalecendo a primeira hipótese, aspiramos a subir indefinidamente, em relação a outrem, até atingirmos o topo; no limite, agimos, simplesmente, como os grupos sociais dominantes, promotores de desigualdades e de opressão. Na segunda, esforçamo-nos por articular a progressão pessoal-familiar com a de todo o povo, especialmente com o mais frágil; esta hipótese implica a nossa participação em movimentos sociais favoráveis à transformação do sistema económico e de outras estruturas.

São inúmeras as organizações intermédias onde se efectua esta participação; organizações económicas, sociais, culturais, políticas, ambientais…

Também é elevado o número de organizações de âmbito nacional e internacional onde acontece o mesmo; relevam-se os partidos políticos, os órgãos de soberania, a administração pública, as instâncias internacionais.

Toda esta participação seria louvável incondicionalmente se, nas relações dos cristãos entre si, fossem patentes a mesma base evangélica e o projecto de salvação universal, a partir da vida terrena. Porém, ao contrário disto, existem pelo menos quatro «evangelhos», mais ou menos  antagónicos; não se trata aqui, evidentemente, dos textos dos «quatro evangelistas», mas sim dos «evangelhos» dos cristãos sindicalistas ou empregadores, bem como de esquerda ou de direita. São quatro «evangelhos» da conflituosidade entre o trabalho e o capital, e entre a esquerda e a direita. À semelhança da luta de classes, os fiéis de cada um deles procuram eliminar o seu adversário; nisso parece consistir, na perspectiva de cada um, a «vitória final» ou o «fim da história».

É saudável que abundem as leituras do Evangelho; no fundo, cada pessoa faz a sua própria. Nisso consiste uma vertente constitutiva do são pluralismo, e aí reside uma das bases mais sólidas da irmandade universal. Mas seria razoável que, sobretudo, os leigos católicos se lembrassem que estão «condenados», felizmente, a viver, em comunhão plena e para sempre, na bem-aventuraça eterna; por isso, nada perderiam se «ensaiassem» essa comunhão, na vida terrena. Nada perderiam, em especial, se fizessem a sua ascese quaresmal na preparação, e até, no início de tal «ensaio», procurando o Evangelho comum nas diferentes leituras que dele façam.

Assim atenuariam o contra-testemunho da sua ancestral crise de diálogo e de procura dos entendimentos possíveis; crise dos leigos católicos, no interior da Igreja e num mundo em crise global. Talvez contribuíssem, com o seu exemplo (ou, melhor, com a sua exemplificação), para o diálogo social mais alargado e para a harmonia geral, a favor do bem comum e do «destino universal dos bens»; sem desigualdades que «bradam aos céus». Manifestariam, na sua fé, a justiça de Deus (cfr Mensagem de Bento XVI para esta Quaresma).

Acácio F. Catarino

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