O presbítero secular: origem e perspectivas (ou viver e servir a partir do fim)
Permito-me começar como tudo começou, relendo as primeiras palavras escritas do Novo Testamento. Paulo e os seus companheiros de apostolado dirigem-se assim aos tessalonicenses: “Paulo, Silvano e Timóteo à igreja de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo, que está em Tessalónica. A vós, graça e paz. […] o nosso Evangelho não se apresentou a vós apenas como uma simples palavra, mas também com poder e com muito êxito pela acção do Espírito Santo […]. Vós fizestes-vos imitadores nossos e do Senhor, acolhendo a Palavra em plena tribulação, com a alegria do Espírito Santo, tendo-vos, assim, tornado um modelo para todos os crentes na Macedónia e na Acaia. […] De facto, são eles próprios que contam o acolhimento que vós nos fizestes e como vos convertestes dos ídolos a Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro e para aguardardes dos Céus o seu Filho, que Ele ressuscitou de entre os mortos, Jesus, que nos livra da ira que está para vir” (1 Ts 1, 1.5-5.9-10).
Julgo sempre oportuna a referência às nossas origens cristãs e apostólicas, pois são elas que nos definem no mais essencial e duradouro. Como sabemos, a “reforma” da Igreja e do ministério significa retomar e aprofundar a forma inicial. Não receemos mesmo alguma expressão mais forte, como aquela “da ira que está para vir”. Com todos os contextos que quisermos, o juízo definitivo da história e das vidas é uma referência fundamental da revelação cristã. Fundamental e, geralmente, salvífica, como lembrou Bento XVI na encícilica Spe Salvi, nº 47: “O encontro com Ele [Cristo] é o acto decisivo do Juízo. Ante o seu olhar, funde-se toda a falsidade. É o encontro com Ele que, queimando-nos, nos transforma e liberta para nos tornar verdadeiramente nós mesmos”.
Mas detalhemos um pouco: Paulo e os seus companheiros – porque o ministério tem sujeito colectivo – lembram que a evangelização feita não foi um discurso meramente humano, nem no dizer nem no acontecer, antes obra do Espírito e no Espírito realizada. Mencionam também que tudo aconteceu “em plena tribulação”, aliás compatível com “a alegria do Espírito Santo”, e que os tessalonicenses se tinham transformado em imitadores dos apóstolos e de Cristo, sendo essa a finalidade atingida. Concretamente, tinham-se convertido dos ídolos a Deus, passando a servi-Lo e aguardando Jesus, ressuscitado de entre os mortos…
Tudo se configura deste modo, no que ao ministério respeita: anunciar e testemunhar pelo Espírito um “Evangelho” que transmite a vitória de Cristo sobre a morte e, mesmo em tribulação, causa alegria, levando ao serviço do Deus vivo e verdadeiro e à rejeição de toda a espécie de ídolos, em permanente espera da vinda de Cristo, saldando num encontro final o que, sem isso, seria um fracasso existencial.
Para o nosso tema, retenhamos ainda que a transmissão da fé se fizera existencialmente também, pelo testemunho vivo de Paulo e dos seus companheiros, que tinham sido os primeiros a converter-se ao Deus vivo e verdadeiro e a concentrar toda a sua existência na espera e no anúncio da vinda final de Cristo.
Poderemos então adiantar que, à luz deste testemunho inicial, o ministério apostólico de ontem e de hoje se resume e “justifica” assim: uma vida inteiramente repassada da qualidade novíssima que a ressurreição de Cristo trouxe ao mundo, levando os outros a igual condição. Não se pode viver o ministério em “lume brando” nem em perspectiva habitual, do tipo “um homem como os outros”. Paulo e os seus companheiros tinham sido “homens para os outros”, sendo para os tessalonicenses a exemplificação doutra coisa, precisamente das “últimas coisas” que Deus oferecera em Cristo. Para elas viviam, em espera irradiante e activa, assim mesmo convencendo os tessalonicenses.
Assim mesmo e muito pedagogicamente aliás. Paulo usa até imagens que acabarão por qualificar a atitude maternal da Igreja e o cariz paternal do ministério: “Quando nos poderíamos impor como apóstolos de Cristo, fomos, antes, afectuosos no meio de vós, como uma mãe que acalenta os seus filhos quando os alimenta. […] Sabeis que, tal como um pai trata cada um dos seus filhos, também a cada um de vós exortámos, encorajámos e advertimos a caminhar de maneira digna de Deus, que vos chama ao seu reino e à sua glória” (1 Ts 2, 7.11-12).
Creio podermos encontrar aqui o essencial do ministério apostólico – diríamos hoje do ministério ordenado – em qualquer tempo que seja, desde que se queira cristão: testemunho incarnado e pedagógico duma vida radicalmente convertida às “últimas coisas” que a ressurreição de Cristo inaugurou, nada interpondo à sua realização definitiva. Para utilizar palavras litúrgicas, “aguardando em jubilosa esperança a última vinda de Cristo salvador”. Onde faltarem estas notas, poderão existir muitas coisas úteis e razoáveis, “humanamente” úteis e razoáveis, mas não se tratará ainda de Igreja nem de ministério propriamente ditos. Igreja e ministério são essencialmente escatológicos: vivem do fim e para o fim que as coisas têm em Cristo, resistindo a tudo o que não for dessa ordem, mesmo que compreensível e “razoável”.
E tem sido sempre este o problema e até a “tribulação” do sacerdócio ministerial – e de toda a vida cristã aliás -, talvez inevitáveis como tensão interior que a conversão alimenta, árdua e inevitavelmente alimenta.
A história do ministério está cheia de exemplos disto mesmo. Retenho apenas três, correspondentes a épocas charneiras do Igreja ocidental.
No Ocidente medieval, o monaquismo deu feição própria ao sacerdócio ministerial. Nascido como radicalização baptismal, sobretudo depois da época dos mártires, o monaquismo reforçou a nota escatológica da existência cristã e particularmente do “pastor de almas”. Mesmo que “secular” e por isso necessariamente envolvido nas circunstâncias sociais de cada altura, o sacerdote latino podia sentir vivamente a tensão entre o que era obrigado a fazer e aquilo que espiritualmente o movia.
É paradigmático o caso de São Gregório Magno, bispo de Roma na viragem do século VI para o VII, monge feito bispo e autoridade geral duma Roma pejada de sobreviventes e fugitivos: “Todo aquele que é colocado como sentinela do povo, deve, portanto, pela sua vida, situar-se bem alto, para ser útil com a sua previdência. […] Quando vivia no mosteiro, eu conseguia […] manter quase continuamente o meu espírito em atitude de oração. Mas depois que tomei sobre meus ombros a responsabilidade pastoral, o espírito não consegue recolher-se tão assiduamente como queria, porque se encontra solicitado por muitas preocupações” (São Gregório Magno, + 604, Homilias sobre o profeta Ezequiel).
Entretanto, deu-se a sucessiva “conversão” dos bárbaros, apesar da persistência duma religiosidade popular muito pagã. O “sucesso” dessa segunda evangelização da Europa pagou largo tributo a tal religiosidade atávica, que ainda hoje sobressai. A “reforma gregoriana” (de Gregório VII, + 1085) dos séculos XI e XII reagiu quanto pôde a essa excessiva redução secular da escatologia cristã, com novo influxo da espiritualidade monástica na vida pastoral. Bom exemplo disso encontramos já em Portugal na figura de São Teotónio (+ 1162), co-fundador de Santa Cruz de Coimbra, que “instruía na fé as gentes rudes e incorporava-as na Igreja pelo baptismo; chamava os pecadores à penitência […] e reconciliava-os com a Igreja; como bom mediador entre Deus e os homens, a todos ensinava os preceitos divinos e pregava a verdade, apresentava ao Senhor as preces dos fiéis e intercedia diante de Deus pelos pecados do povo, oferecia no altar o sacrifício de expiação, recitava as orações e abençoava os dons de Deus” (Vida de São Teotónio, + 1162).
Uma vida pastoral inteiramente “sacerdotal” e orientada para Deus, levando-Lhe o povo pela pregação, os sacramentos e a intercessão. A Baixa Idade Média, porém, esteve longe de manter tal intensidade espiritual e pastoral, chegando aos séculos XIV-XV muito carecida de nova reforma. Pedida desde os concílios do século XIV, tal reforma, em várias modalidades, católicas ou não, veio a concretizar-se no século XVI. No campo católico e tridentino, acentuou de novo a figura do pastor – sacerdote, exemplar e verdadeiramente “forma gregis” pelo destaque e espiritualização do seu modo de ser, estar e servir o povo cristão.
Entre as figuras sacerdotais que mais sobressaíram nesse sentido, São Carlos Borromeu, arcebispo de Milão (+ 1584), tem lugar cimeiro. São dele estas recomendações aos padres da sua diocese: “É necessário que te lembres das almas que diriges, mas desde que te não esqueças de ti. Compreendei, irmãos, que nada é tão necessário para todos os clérigos como a oração mental, que precede, acompanha e segue todas as nossas acções. […] Se administras sacramentos, irmão, medita no que fazes; se celebras missa, pensa no que ofereces; se cantas no coro, considera a quem falas e no que dizes; se diriges almas, medita em que sangue foram purificadas […]. Assim teremos força para fazer nascer Cristo em nós e nos outros” (São Carlos Borromeu, Sermão no último sínodo).
A grande escola de espiritualidade sacerdotal francesa, dos séculos XVII e XVIII, prosseguiu nesta linha, que poderemos considerar também “monástico-pastoral”. Não está obviamente ausente da figura tutelar do presente “ano sacerdotal”, São João Maria Vianney, o Santo Cura d’Ars (+ 1859), nem da biografia dum papa tão recente como João Paulo II (+ 2005).
Vaticano II retoma esta tradição, acentuando o carácter pascal e escatológico do ministério, em função das mesmas notas de toda a Igreja. É assim, por exemplo, que o decreto Presbyterorum Ordinis, nº 2, unifica o sacerdócio ministerial, mesmo na variedade das suas possíveis incumbências: “Portanto, quer os presbíteros se entreguem à oração e adoração, quer preguem a palavra, ofereçam o sacrifício Eucarístico, administrem os demais sacramentos, ou se dediquem ainda a outros ministérios para o bem dos homens, contribuem simultaneamente para maior glória de Deus e para o progresso dos homens na vida divina. Tudo isto, dimanando da Páscoa de Cristo, se consumará na vinda gloriosa do mesmo Senhor, quando Ele entregar o Reino nas mãos do Pai”.
E é também a esta luz – última luz! – que o decreto, no nº 16, apresenta o celibato sacerdotal, tão próprio da Igreja latina: “Tornam-se, finalmente, [os presbíteros] um sinal vivo daquele mundo futuro, já presente pela fé e pela caridade, no qual os filhos da ressurreição não se casam nem se dão em casamento”. Ou que, no nº 17, apresenta o desprendimento, como muito especialmente próprio e requerido aos presbíteros: “Apesar de viverem no mundo, devem, contudo, lembrar-se de que, segundo a palavra de Cristo, nosso Mestre e Senhor, não são deste mundo. Usando, pois, do mundo, como se dele não fizessem uso, chegarão àquela liberdade pela qual, livres de todo o cuidado desordenado, se tornam dóceis para ouvir quotidianamente a voz divina”.
Não admira, portanto, que o autêntico sumário da vida presbiteral, apresentado no nº 13 do decreto conciliar, ecoe claramente o que já ouvimos de essencial nos séculos transactos: “Os presbíteros alcançam a santidade, de maneira autêntica, pelo exercício do seu ministério, desempenhado sincera e infatigavelmente no Espírito de Cristo. Sendo ministros da palavra de Deus, lêem-na e escutam-na diariamente, para a ensinarem aos outros. […] Como ministros das coisas sagradas, é sobretudo no sacrifício da Missa que os presbíteros fazem de um modo especial as vezes de Cristo, que se deu como vítima para a santificação dos homens. […] Igualmente na administração dos sacramentos unem-se com a intenção e a caridade de Cristo […]. Guiando e apascentando o povo de Deus, são impelidos, pela caridade do Bom pastor, a dar a vida pelas suas ovelhas”.
Como se definíssemos o ministério numa santificação pessoal que santifica os outros, tomando a santidade como participação inteira e final na Páscoa de Cristo. Estou mesmo em crer que a encontrada autonomia das realidades temporais e a valorização de tudo quanto é abertura espiritual da humanidade, incluindo a diversidade das religiões, abriu campo à redefinição escatológica da Igreja e do ministério ordenado em função dela. Na verdade, apura-se melhor que a contribuição específica do Cristianismo, para além da inspiração evangélica da vida terrena, é oferecer ao mundo o seu verdadeiro fim, iniciado na ressurreição de Cristo e assinalado por uma vida propriamente cristã, na sua radical e última novidade.
Faculdade de Teologia (Porto), 9 de Fevereiro de 2010