Homilia de D. Manuel Linda no Congresso Internacional «À Escuta da Palavra»

“Vamos a outro lado, a fim de eu lá pregar também, pois foi para isto que eu vim”

As leituras desta Missa ressaltam o tema da escuta da Palavra de Deus, tal como este do Congresso em que participamos. Para além do muitas vezes referido episódio da voz divina que se dirige a Samuel e que, depois de devidamente interpretada, lhe motiva o assentimento traduzido na fórmula da resposta “Falai, Senhor, que o vosso servo escuta”, o Evangelho insere o dado curioso do «calar» e do «proclamar», a respeito da verdade de Deus. Diz‐nos que Jesus “não deixava que os demónios falassem, porque sabiam quem Ele era” (v 34), ao mesmo tempo que Se sente como que impelido a anunciar a Boa Nova ao largo e ao longe. A ponto de dar ordens aos seus discípulos para passaram para outro lado, “para as povoações vizinhas, afim de lá pregar também” (v 38), pois nisso consistia a Sua missão messiânica. Note‐se, então: intima os demónios a que não falem sobre Deus enquanto Jesus faz «profissão» da Sua vida o falar sobre Deus. Porquê?

A palavra, enquanto expressão de um conceito a partir do qual a inteligência se constrói e reflecte é imanente ao homem enquanto homem. Por isso, o que não pode dispor da palavra ou do conceito está, objectivamente, limitado no seu ser. E designamos esse estado por «doença». Como tal, pronunciar palavras e formular conceitos, em si, não representa nada de extraordinário. O problema reside no timbre de qualidade, na dimensão humana e na finalidade salvífica ou destruidora dessas palavras e conceitos. Por exemplo, uma organização criminosa é capaz de se reunir para discutir e programar minuciosamente um atentado. Mas as palavras trocadas e os conceitos usados não são dignos nem humanos: entram na mesma ordem daqueles que Jesus proibira aos demónios. É aqui que reside, para usar a conhecida linguagem antitética do evangelista São João, a diferença entre as palavras e os conceitos do mundo e os de Deus. E isso interessa‐nos sobremaneira, pois o ministério sacerdotal está intimamente ligado ao ministério da Palavra. Então, como é que Jesus procedia?

Para Jesus, a Palavra é sempre fruto da iniciativa livre e gratuita de Deus, puro dom da Sua graça, em ordem à transformação/metanóia das pessoas e da realidade circundante. É, ao mesmo tempo, noética e dinâmica, interpelativa e geradora de novidade. É Palavra que interessa ao homem e ao mundo, pois os conduz à busca inteligente da verdade e os impele a edificar a sociedade e a história à base dessa verdade libertadora e não a partir dos instintos irracionais. Por isso, é Palavra salvadora, já que reconduz o homem à verdade sobre si mesmo, sobre a sua razão de estar no mundo, sobre a sua origem e destino. É Palavra que gera essa lucidez de inteligência a que chamamos sabedoria. É Palavra encarnada na realidade da vida, tal como Jesus, o “verdadeiro homem” sem deixar de ser “verdadeiro Deus” de tal modo sensato e sábio que pôde ser designado por “Palavra feita carne” (Jo 1, 14). Assim, frente a esta Palavra, todos os outros géneros de palavra –lúdica, comunicacional, científica, filosófica, poética, etc.‐ ou se conformam e se deixam tocar por ela ou não passam de mero balbuciar.

O Evangelho há pouco proclamado apresenta‐se como que uma exemplificação e concretização de todas estas dimensões da Palavra libertadora: interessa a todos porque gera as curas (da sogra de Pedro, dos possessos e dos enfermos das redondezas), expressão do retirar todo o mal do mundo; traz sensatez e sabedoria, pois se sobrepõe ao sem‐sentido da algazarra dos demónios; torna‐se oração e intimidade com Deus, a ponto de se preferir ao justo descanso; cria dinamismo missionário, expresso na necessidade da comunicação da verdade de Deus “às aldeias vizinhas” e “a toda a Galileia”; gera a unidade da família humana ao congregar os homens num mesmo ideal, tão bem expresso na exclamação admirada de Pedro: “Todos te procuram”; enfim, faz emergir no nosso mundo prosaico a força transformadora e poética da presença de Deus.

No aqui e agora que nos é dado viver, somos nós os «profissionais» desta Palavra quando a acolhemos, a celebramos e a difundimos para a salvação do mundo. Esta é a nossa honra. Mas também a nossa responsabilidade. Que passa pela exigência muito séria de a não diminuir nem limitar nas suas quatro vertentes. Concretamente, a exemplo de Jesus, o Verbo encarnado, passa pela tomada de consciência de que:

a) é palavra teológica, pois é Deus quem fala, não só para Se dar a conhecer, mas para que, na Sua luz, nos conheçamos a nós próprios;

b) é palavra salvadora ou soteriológica, já que reconduz o homem Áquele de quem vem e para Quem vai e ao Seu amor misericordioso e transformante;

c) é palavra eficaz e até normativa, porquanto nos confronta com o plano de Deus para nós e para o mundo, tal como já no Antigo Testamento Deus tinha mostrado “as suas leis e preceitos a Israel”;

d) é palavra de futuro e de esperança, pois Deus é fiel e mantém sempre o que promete.

Caros congressistas, nunca o mundo tomou contacto com tantas palavras, ditas e escritas, como no nosso tempo. Este é o tempo das palavras. Se calhar, o tempo do palavreado. E, porventura, nunca o mundo teve tanta falta de conceitos lúcidos, de sensatez e de inteligência plena de sabedoria. Porquê? Porque onde falta a luz da Palavra de Deus sobra o comezinho e o banal. Eis, pois, o desafio que nos é lançado com urgência: alimentarmo‐nos com a Palavra de Deus para com ela podermos alimentar o mundo. Não passará por aqui a tarefa da evangelização, nova evangelização ou reevangelização, seja qual for a designação que lhe dermos? E não será jovem e actual um Seminário que prepare os seus alunos, futuros sacerdotes, para esta tarefa, a mais nobre de quantas os humanos possam desempenhar, ainda que conte com quatrocentas e cinquenta velas no seu bolo de aniversário?

Braga, 13 de Janeiro de 2010

+ Manuel Linda, Bispo Auxiliar de Braga

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