Lugar da religião na edificação do «bem-comum»

Conferência de D. José Policarpo na Semana Social

Introdução
1. À maneira de introdução, devemos tomar consciência da vastidão e amplitude do tema que me foi proposto, com as inevitáveis consequências na maneira de o desenvolver, fazendo opções e seleccionando prioridades.

O “bem-comum” diz respeito a toda e qualquer forma de agregação dos seres humanos, pondo em prática o princípio de que o homem só se realiza com os outros homens e se sente responsável por todos os outros. O conjunto das expressões desta solidariedade humana constitui a sociedade, na linguagem contemporânea, a “polis” da cultura grega, que é, necessariamente, a convergência harmónica de todas as instituições com que os seres humanos convergem na busca da própria realização: família, associações, empresas, comunidades religiosas, a organização da sociedade.

Emerge, neste conjunto, o papel do Estado como serviço desta convergência em harmonia. A globalização alargou ao horizonte de toda a família humana, a necessidade desta convergência. Nunca, como hoje, o bem das pessoas e dos grupos humanos dependeu tanto do bem de toda a humanidade.

O que se me pede é que fale do papel da religião na construção deste bem de toda a humanidade. Compreendi assim o facto de o tema proposto não falar do papel do cristianismo, mas da religião, na edificação do “bem-comum”, o que alarga, ainda mais, o âmbito do tema e o torna difícil, porque somos todos pouco conhecedores dos diversos contributos das várias religiões: conhecemo-las mal, e temos pouca experiência dos possíveis contributos positivos de cada uma em cada sociedade e na sociedade global. Não é possível, no âmbito de uma conferência, abarcar a vastidão deste horizonte. Sinto-me, assim, livre para fazer a minha proposta que, inevitavelmente, terá como referência fundamental o papel do cristianismo nas nossas sociedades.

O que se entende por “bem-comum”

2. A expressão e o seu significado ocuparam um lugar central e desenvolveram-se no âmbito da Doutrina Social da Igreja e adquiriram uma relevância tal que mereceram integrar o corpo doutrinal do Concílio e do Catecismo da Igreja Católica, como das grandes encíclicas sociais, a última das quais é a “Caritas in Veritate”, de Bento XVI. É, no conjunto da linguagem da Igreja, uma expressão facilmente compreendida por todos e é frequentemente usada nas diversas instâncias culturais, sociais e políticas, sobretudo no Ocidente.

Os políticos e os agentes da comunicação falam, de preferência, de “direitos humanos”. Em que medida os dois conceitos coincidem ou, pelo menos, convergem, é discussão em aberto que originou já uma abundante literatura. Uma diferença, porém, a ter em conta é que o “bem-comum” não se limita aos direitos, reconhecidos e respeitados, mas alarga-se sobretudo aos deveres do dom e da solidariedade de cada um para com o corpo social em que está inserido.

Para se entender o “bem-comum” tem de ter-se em conta a dimensão dialogal e social do ser humano que só encontra a própria realização empenhando-se na busca do bem da comunidade social, em que se integra, ou porque a escolheu, como é o caso da família, das comunidades religiosas, das associações culturais, ou porque a ela pertence por circunstâncias que não dependeram da sua escolha, como é o caso da comunidade nacional ou étnica onde nasceu. Estas comunidades sociais são uma “personalidade colectiva”, como o próprio direito reconheceu, ao considerá-las “pessoas jurídicas”. É do bem destas pessoas que se trata. Como afirma Bento XVI, “ao lado do bem individual, existe um bem ligado à vida social das pessoas, o bem-comum. É o bem daquele «nós todos», formado por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em comunidade social”[1].

O bem desse “nós colectivo” pode não se identificar totalmente com o bem das pessoas individuais, mas deve com ele convergir. Porque a pessoa individual só encontra o seu bem, a sua realização, na medida em que se insere e se compromete com a comunidade, ela tem de encontrar no “bem-comum” o seu bem pessoal, mas não pode exigir que toda a comunidade garanta “bens individuais”, porventura legítimos, que não são relevantes para a prossecução do “bem-comum”. Bento XVI alerta: “não é um bem procurado por si mesmo, mas para as pessoas que fazem parte da comunidade social e que só nela podem realmente e com maior eficácia obter o próprio bem”[2].

É bom ter em conta a finalidade humana das instituições e organizações. A busca do “bem-comum” tem de ser sempre a busca do bem das pessoas que é, sobretudo para nós cristãos, uma exigência do amor fraterno. Quando a busca do “bem-comum” tem a exigência da caridade, é fácil fazer coincidir a busca do “bem-comum” e a do bem pessoal. Diz o Santo Padre: “este é o caminho institucional, podemos mesmo dizer político, da caridade, não menos qualificado e incisivo do que o é a caridade que vai directamente ao encontro do próximo, fora das mediações institucionais da «polis»”[3]. Aliás o vigor da caridade é, talvez, o contributo mais significativo da fé cristã para a construção do “bem-comum”. Todos os homens são chamados a empenhar-se na construção do bem-comum. Mas a caridade dá a esse empenho uma radicalidade de dom, que só é possível com a força do Espírito de Deus. O Papa não esquece este contributo específico dos cristãos: “quando o empenho pelo bem-comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político”[4].

A religião e a edificação do bem-comum

3. Na complexidade das sociedades contemporâneas e dos múltiplos corpos sociais, são muitas as concretizações do bem-comum. E é na análise de cada uma delas que se pode perceber com clareza o papel da religião, tendo em conta que as próprias religiões estão na origem de corpos sociais significativos e de experiências de comunidade, que se devem comprometer na busca do bem-comum de toda a comunidade humana e não apenas do bem próprio e específico de cada comunidade religiosa. Se não o fizerem, correm o risco de aparecerem aos olhos da sociedade a defenderem apenas os seus direitos, não dando testemunho do seu empenho apaixonado na busca do bem de todos os homens.

Nesta busca do bem-comum, as comunidades religiosas inter-agem com outras organizações e, sobretudo, com o Estado, cuja função é potenciar, na harmonia, o contributo de todas elas para o bem-comum da sociedade e da humanidade. Isso supõe convergência e reconhecimento mútuo na prossecução dos objectivos comuns. No que à Igreja diz respeito, ela própria um povo organizado, e à força das suas instituições, com que intervém na sociedade na busca do bem-comum, começa a ser urgente uma nova equação com o Estado e outros corpos sociais da sociedade civil. O relegar a religião para a esfera da intimidade privada, e considerar as instituições com que intervém para o bem da sociedade como transitórias, e dispensáveis logo que possível, nem sequer garante os interesses da comunidade humana como um todo. Um conceito de laicidade, alargado injustamente a toda a sociedade, cria um ambiente de tensão, pelo menos latente, que não assegura a necessária convergência harmónica de todos os intervenientes na prossecução do bem-comum. A laicidade do Estado, a única que está consagrada na nossa Constituição, pode ser um valor positivo, mesmo para a própria Igreja, deixando-lhe espaço aberto e respeitado para a especificidade da sua intervenção na sociedade, e levando-a a reconhecer e a respeitar a especificidade própria dos outros intervenientes sociais.

4. Seleccionarei, a partir de agora, algumas concretizações na busca do bem-comum, seguindo como critério a referência àquelas onde o contributo da religião pode ser mais importante, porventura indispensável, o que não significa que eu pense que a Igreja se deva desinteressar das demais concretizações do bem-comum.

Reconhecer o lugar de Deus na Cidade

5. A prossecução do bem-comum da sociedade e de toda a família humana supõe uma cultura, enraizada na compreensão do mistério do homem e da sua irrecusável relação com Deus, seu criador e salvador. Ele é a fonte donde jorra a força para o dom generoso em favor dos outros, a luz que aponta os caminhos da generosidade e do amor, os ensinamentos que apontam o caminho para a edificação de um mundo ao nível da dignidade da pessoa humana. Querer construir a sociedade sem contar com a intervenção amorosa de Deus na nossa vida e na nossa história, é comprometer o alcance do bem-comum definitivo e fechar o horizonte da esperança.

Sempre existiram diversas formas de ateísmo. Mas nunca tomaram, como hoje, o papel envolvente que parece influenciar definitivamente a construção da sociedade. Procurar influenciar a cultura de modo a garantir, nessa compreensão dinâmica do futuro da humanidade, a poderosa intervenção de Deus, é contribuir, de forma decisiva, para o bem-comum da humanidade. E esta intervenção na mutação cultural só os crentes a podem fazer, com o testemunho da sua fé, mas sobretudo com o testemunho da sua contribuição generosa para o bem de todos os homens seus irmãos. Esta é uma luta de flagrante actualidade, pois nunca, como hoje, as forças ateisantes, que se apresentam como defensoras da autonomia e da grandeza do homem, procuram neutralizar a influência da religião e dos crentes nos dinamismos construtores da sociedade.

Vale a pena relermos uma página da Caritas in Veritate. Diz o Papa: “A religião cristã e as outras religiões só podem dar o seu contributo para o desenvolvimento, se Deus encontrar lugar também na esfera pública, nomeadamente nas dimensões cultural, social, económica e particularmente política. A doutrina social da Igreja nasceu para reivindicar este «estatuto de cidadania» da religião cristã. A negação do direito de professar publicamente a própria religião e de fazer com que as verdades da fé moldem a vida pública, acarreta consequências negativas para o verdadeiro desenvolvimento. A exclusão da religião do âmbito público e, na vertente oposta, o fundamentalismo religioso, impedem o encontro entre as pessoas e a sua colaboração para o progresso da humanidade. A vida pública torna-se pobre de motivações, e a política assume um rosto oprimente e agressivo. Os direitos humanos correm o risco de não ser respeitados, porque ficam privados do seu fundamento transcendente ou porque não é reconhecida a liberdade pessoal. No laicismo e no fundamentalismo, perde-se a possibilidade de um diálogo fecundo e de uma profícua colaboração entre a razão e a fé religiosa. A razão tem sempre necessidade de ser purificada pela fé; e isto vale também para a razão política, que não se deve crer omnipotente. A religião, por sua vez, precisa sempre de ser purificada pela razão, para mostrar o seu autêntico rosto humano. A ruptura deste diálogo implica um custo muito gravoso para o desenvolvimento da humanidade”[5].

Não haverá bem-comum adaptado à natureza e ao destino do homem se não aprendermos a considerar o bem-comum, neste mundo, como anúncio do bem definitivo, na eternidade. Escutemos, mais uma vez, Bento XVI: “A acção do ser humano sobre a terra, quando é inspirada e sustentada pela caridade, contribui para a edificação daquela cidade universal de Deus que é a meta para onde caminha a história da família humana. Numa sociedade em vias de globalização, o bem comum e o empenho em seu favor não podem deixar de assumir as dimensões da família humana inteira, ou seja, da comunidade dos povos e das nações, para dar forma de unidade e paz à cidade do homem e torná-la, em certa medida, antecipação que prefigura a cidade de Deus sem barreiras”[6].

Uma educação humanizante

6. A educação é um contributo decisivo para o bem-comum, em que o papel da Igreja, que, ao dar pela sua mensagem, um sentido novo a todas as coisas, com a sua experiência comunitária e com a intervenção directa através das suas instituições educativas, é relevante. A realização da pessoa humana e a qualidade da convivência humana, em comunidade, depende em grande parte, da educação.

Esta deveria ser profundamente humanizante, tendo no centro a grandeza e a dignidade da pessoa humana. Só assim cada um descobrirá o valor e a responsabilidade da sua liberdade, a capacidade de construir o próprio projecto de vida, com os outros, em inter-acção comunitária. A dimensão comunitária é essencial à formação da liberdade, que abre para a responsabilidade de cada um na digna realização de todos os que participam da mesma comunidade.

A educação deverá ser humanizante, levando a projectos pessoais e comunitários que realizem, em cada tempo, a perene grandeza do homem. A questão antropológica, isto é, a afirmação da real dignidade do ser humano, é hoje decisiva para o futuro da humanidade. Dela decorre a inspiração ética do “conviver”, isto é, de viver em sociedade, o sentido da vida e da morte, a grandeza da liberdade. Os grandes problemas da humanidade actual, tais como a paz, o desenvolvimento, a questão social têm uma profunda dimensão antropológica, isto é, a solução depende da compreensão que se tiver do ser humano. Bento XVI afirma: “hoje a questão social tornou-se radicalmente antropológica, enquanto toca o próprio modo, não só de conceber, mas também de manipular a vida”[7].

A compreensão que se comunicar do homem e da vida, do seu sentido e dos caminhos para a sua plena realização é, hoje, decisiva. E da visão antropológica a comunicar tem de constar a necessária dimensão comunitária e consequente responsabilidade colectiva da liberdade humana. Na visão bíblica do ser humano, a relação, o conviver, o construir a vida com os outros, definem ontologicamente o próprio “humanum”. Nem todas as religiões têm esta visão do homem. O Papa afirma na “Caritas in Veritate”: “O mundo actual regista a presença de algumas culturas de matriz religiosa que não empenham o ser humano na comunhão, mas isolam-no na busca do bem-estar individual, limitando-se a satisfazer os seus anseios psicológicos”[8].

A convivência das diversas religiões no mundo globalizado, não adquire sempre a seriedade do diálogo inter-religioso, gerando antes um certo sincretismo religioso que pode levar à relativização da mensagem educacional da tradição judaico-cristã, que valoriza a generosidade, o dom, a corresponsabilidade de uns pelos outros. Na última Encíclica, o Papa afirma-o claramente: “A caridade na verdade coloca o ser humano perante a admirável experiência do dom. A gratuidade está presente na sua vida sob múltiplas formas, que frequentemente lhe passam despercebidas por causa duma visão meramente produtiva e utilitarista da existência. O ser humano está feito para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência”[9].

7. A educação, rectamente concebida, é a primeira responsabilidade da sociedade, na diversidade dos corpos sociais que a integram: a família, a escola, o Estado, as Igrejas. Para que ela seja garantida numa correcta orientação antropológica, há preocupações prioritárias a ter em conta:

* Não identificar educação e instrução. A instrução é, hoje, um elemento importante da educação e deveria ser ministrada em perspectiva educativa e não de mera aprendizagem. Ainda continuamos a chamar ao sistema escolar, que adquiriu uma importância relevante nas sociedades contemporâneas, sistema educativo. Mas todos conhecemos as dificuldades que os professores encontram para serem realmente educadores;

* Ter consciência da primazia das instituições na educação. A prioridade da família, do ponto de vista teórico, impõe-se por si, mas na prática tem perdido essa prioridade decisiva, dada a fragilidade que atingiu a família nos seus novos enquadramentos sociais. Fragilizar a missão educativa da família na educação é comprometer o futuro da sociedade. Exige-se, pois, uma inter-acção e complementaridade mais estruturadas e viabilizadas entre a escola e a família, que só será possível se for querida e desejada por ambas as instituições;

* Perceber que a educação não é um acto individual, mas comunitário, e que exige a comunicação de uma tradição cultural viva, definitória da identidade da comunidade a que se pertence. Se isso não for garantido, a sociedade será cada vez mais um conjunto de indivíduos cuja liberdade nem sempre converge para o bem-comum e em que a autoridade se vê limitada à função de resolver conflitos.

8. A Igreja tem um contributo real a dar à tarefa educativa. A sua prioridade é clara: colaborar com a família na sua missão educativa. Fá-lo através das escolas que cria, através da catequese, dos movimentos juvenis. Mas talvez, no presente, este seu contributo para a educação deva passar por uma pastoral familiar global, que fortaleça e defenda a família no todo da sua realidade, não se limitando a colaborar com a família na especificidade da função educativa. No fortalecimento da função educativa da escola, a Igreja não pode pensar apenas nas suas escolas, mas em todas as escolas, através dos meios possíveis no actual quadro escolar, o principal dos quais é a influência de professores cristãos, que lutem por uma autêntica educação humanizante.

Proporcionar a todos o desenvolvimento digno da pessoa humana9. O desenvolvimento é, sem dúvida, uma expressão central do bem-comum que todos devemos procurar. Consegui-lo é tarefa da comunidade humana como um todo, desafia o poder político, as forças económicas, as empresas, os homens de cultura e também as religiões. A Igreja Católica, em concreto, tem participado significativamente nos processos de desenvolvimento através do ensinamento lúcido da sua doutrina social, ajudando a construir uma consciência colectiva que enquadre um desenvolvimento global, digno do homem. Nesse ensinamento da Igreja, “o termo desenvolvimento quer indicar, antes de mais nada, o objectivo de fazer sair os povos da fome, da miséria, das doenças endémicas e do analfabetismo”[10].

A pessoa humana, na sua dignidade e potencialidades, está no centro dos processos de desenvolvimento, porque é o seu objectivo e o seu artífice. É o seu objectivo, porque o verdadeiro desenvolvimento contempla a pessoa toda, na complexa riqueza da sua realidade. A visão economicista do progresso não garante, pode até comprometer, o completo desenvolvimento do homem. Bento XVI lembra que “não é suficiente progredir do ponto de vista económico e tecnológico; é preciso que o desenvolvimento seja verdadeiro e integral. A saída do atraso económico não resolve a complexa problemática da promoção do ser humano”[11]. Só na cultura e na profundidade espiritual o ser humano afirma a sua especificidade e superioridade. E nestes aspectos, o papel das religiões é, porventura, insubstituível. Seria justo que as sociedades reconhecessem a função das religiões na vida espiritual das pessoas como elemento relevante dos processos de desenvolvimento. É missão também das religiões explicitar e anunciar as exigências éticas dos principais intervenientes nos processos de desenvolvimento: os Estados, as empresas, os grupos financeiros, os meios de comunicação, os agentes culturais. Sem exigências éticas colectivamente claras e aceites, os processos de desenvolvimento podem acentuar egoísmos, não só das pessoas individuais, mas de grupos e de nações inteiras, que lesando gravemente a justiça, comprometem a paz e podem mesmo pôr em risco o equilíbrio do planeta Terra, casa comum da família humana. Neste aspecto, o homem como artífice e protagonista do desenvolvimento, assume responsabilidades gigantescas. Foi-lhe dada por Deus criador a missão e o dever de melhorar a Terra, pondo-a, cada vez mais, ao serviço do homem; mas sabemos também que, nessa intervenção, a pode destruir. A questão ecológica não é, hoje, um “fait divers” dos “mass-media”; sobretudo na sua dimensão de “ecologia humana”, tem de ser uma questão central da cultura[12]. Bento XVI não hesita em enunciar a responsabilidade da Igreja neste processo: “A Igreja sente o seu peso de responsabilidade pela criação e deve fazer valer esta responsabilidade também em público. Ao fazê-lo, não tem apenas de defender a terra, a água e o ar como dons da criação que a todos pertencem, mas deve sobretudo proteger o homem da destruição de si mesmo. Requer-se uma espécie de ecologia da pessoa humana, entendida no justo sentido. De facto, a degradação da natureza está estreitamente ligada à cultura que molda a convivência humana: quando a «ecologia humana» é respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ecologia ambiental. Tal como as virtudes humanas são inter-comunicantes, de modo que o enfraquecimento de uma põe em risco também as outras, assim também o sistema ecológico se baseia no respeito de um projecto que se refere tanto à sã convivência em sociedade como ao bom relacionamento com a natureza”[13].

10. Deste bem-comum que é o desenvolvimento, faz parte a luta contra a pobreza, onde a Igreja, na sua mensagem e na sua acção, tem sempre estado na primeira linha. Como afirmou João Paulo II, “a luta contra a pobreza encontra uma forte motivação na opção e no amor preferencial da Igreja pelos pobres”[14]. Neste campo a Igreja não age motivada por análises sociológicas, vai ao encontro das pessoas concretas, concretizando o amor e a capacidade de dom. Afirma corajosamente o destino universal dos bens, o que equivale a dizer que os pobres têm direito a receber algo do que os outros possuem.

Se a motivação da luta contra a pobreza não é apenas sociológica, mas é o amor fraterno pela pessoa do pobre, a Igreja não se pode limitar a repartir bens, mas a promover a dignidade da pessoa do pobre. É a complementaridade necessária entre a solidariedade e subsidiariedade. Paulo VI afirmou: “o princípio da solidariedade, também na luta contra a pobreza, deve ser sempre oportunamente ladeado pelo da subsidiariedade, graças ao qual é possível estimular o espírito de iniciativa, base fundamental de todo o desenvolvimento socioeconómico, nos países pobres. Deve olhar-se para os pobres, não como um problema, mas como possíveis sujeitos e protagonistas de um futuro novo e mais humano para todo o mundo”[15]. E Bento XVI, citando este texto, acrescenta: “ a subsidiariedade sem a solidariedade cai no assistencialismo que humilha o sujeito necessitado”[16].

11. Fala-se hoje de novas formas de pobreza, que interpelam a Igreja e a sociedade, entre as quais está a solidão. Citemos, mais uma vez, Bento XVI: “Uma das pobrezas mais profundas que o ser humano pode experimentar é a solidão”[17]. A Igreja conhece bem esta realidade, presente nos imigrantes, nos presos, nos anciãos, nas pessoas sem amor. Experimentamos continuamente que o carinho, uma presença amiga e uma palavra que façam a pessoa sentir-se em comunhão, reconhecida como pessoa, são uma preciosa concretização do bem-comum. Bento XVI afirma: “A humanidade aparece, hoje, muito mais interactiva do que no passado: esta maior proximidade deve transformar-se em verdadeira comunhão. O desenvolvimento dos povos depende sobretudo do reconhecimento de que são uma só família, a qual colabora em verdadeira comunhão e é formada por sujeitos que não se limitam a viver uns ao lado dos outros”[18]. E acrescenta: “de natureza espiritual, a criatura humana realiza-se nas relações inter-pessoais”; por isso, “o tema do desenvolvimento coincide com o da inclusão relacional de todas as pessoas e de todos os povos na única comunidade da família humana, que se constrói na solidariedade, tendo por base os valores fundamentais da justiça e da paz”[19].

O bem-comum é uma realidade global

12. O facto de ter seleccionado estas concretizações do bem-comum, certamente aquelas em que a Igreja e mesmo as outras confissões religiosas podem ter uma intervenção mais explícita, não significa que o bem-comum se esgota nelas, ou que o papel da Igreja não seja importante em todas as outras expressões do bem-comum. Este é uma realidade global, diz respeito a todas as dimensões do crescimento da pessoa humana, inserida em comunidade, tais como o direito ao trabalho, à saúde, a construção da justiça e da paz. No centro do bem-comum está sempre a dignidade da pessoa humana e a construção de uma sociedade digna do homem. E tudo o que diz respeito ao homem e à sua realização faz parte da missão da Igreja, concebida não apenas como hierarquia, mas como Povo de Deus, comunidade organizada no meio da sociedade. Contribuir para o bem-comum é realização da missão da Igreja.

Os modos de intervenção da Igreja na prossecução do bem-comum são vários. Antes de mais a sua mensagem expressa nesse vasto conjunto de Magistério a que chamamos Doutrina Social da Igreja, importante para formar a consciência dos cristãos na sua presença e acção no seio da sociedade. E esta consciência dos cristãos, presentes no concreto da vida, pode ser decisiva para o contributo da Igreja na busca do bem-comum. O ensinamento da Igreja contribui também para formar uma consciência mundial em favor do bem-comum. Este aspecto deve, cada vez mais, fazer parte do dinamismo da formação que a Igreja proporciona aos seus fiéis.

A Igreja intervém igualmente e de forma específica na sociedade, através das suas instituições e dos seus membros, empenhados noutros corpos sociais, quer do Estado, quer da sociedade civil. Há uma complementaridade entre acção directa e inspiração cristã, que dá sentido e aponta para o quadro de valores e de atitudes em prol do bem-comum. Isto supõe uma convergência da acção da Igreja com a acção de outros intervenientes na sociedade, na busca do bem-comum. A Igreja tem consciência de que há áreas específicas de competência, política, económica, técnica, que não lhe pertencem, o que não exclui a sua atitude de empenhamento cooperante.

No caso das outras comunidades religiosas há um longo caminho a andar, para se chegar à consciência de valores comuns em favor de uma sociedade digna do homem. Sem cair em sincretismos fáceis, é possível apurar um “universal humano”, proposto por quase todas as religiões e que teriam mais peso na sociedade se apresentassem um sentir comum. As sociedades europeias vão caindo na tendência cultural de excluir a dimensão religiosa da compreensão dinâmica da busca do bem-comum.

No que à Igreja Católica diz respeito, é urgente solidificar cultural e institucionalmente um novo quadro de relacionamento da Igreja com a sociedade, que ultrapasse os desejos de domínio, por parte da Igreja, e a agressividade laicista dos Estados e da cultura ambiente[20].

Termino, enunciando uma verdade evidente, mas que devemos interiorizar cada vez mais: lutar pelo bem-comum é, para a Igreja, realizar a salvação do homem, que começa já neste mundo, em ordem à plena realização escatológica. A salvação é a suprema expressão do bem-comum.

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

 

 

 


[1] Bento XVI, “Caritas in Veritate”, nº 7

[2] Ibidem

[3] Ibidem

[4] Ibidem

[5] Ibidem, nº 56

[6] Ibidem, nº 7

[7] Ibidem, nº 75

[8] Ibidem, nº 55

[9] Ibidem, nº 34

[10] Ibidem, nº 21

[11] Ibidem, nº 23

[12] cf. Ibidem, nnº 48-52

[13] Ibidem, nº 51

[14] cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 449

[15] Ibidem

[16] Bento XVI, op. cit. nº 58

[17] Ibidem, nº 53

[18] Ibidem, nº 53

[19] Ibidem, nº 54

[20] cf. Ibidem, nº 56

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