Ao longo de 150 anos, graças às Conferências Vicentinas, em Portugal, como anuncia Jeremias, muitas lágrimas se transformaram em consolação, muitos caminhos para a verdadeira vida foram abertos por vidas entregues. Damos graças a Deus.
Recolhamos as lições da Palavra da liturgia deste domingo. Encontramos indicações oportunas. Aprendamos como experimentar o sacerdócio de Cristo na dedicação ao serviço social.
1. Neste ano sacerdotal, saboreemos um texto que raramente meditamos. Jesus é o sumo-sacerdote que tomou sobre si as nossas penas mais profundas e as nossas orações mais simples. Mas a comunidade a quem se dirige o sermão aos hebreus questionava-se: como pode um Jesus sofredor na cruz, recusado e derrotado, ser alguém com curriculum para ser sumo-sacerdote? A isto responde o texto da segunda leitura. O Pregador descreve as qualificações de Jesus para mostrar como superam as exigências requeridas para o lugar. Ele é o ministro justo para o ministério justo. Os sacerdotes do passado estavam inseridos num ordenamento provisório que Deus disponha para um tempo específico da história, enquanto o sacerdócio de Cristo tem eterno futuro. Como os “escolhidos entre os homens” Jesus é mediador entre Deus e a humanidade, mas é superior aos sacerdotes do passado porque não é só mediador, mas fonte da salvação, porque se ofereceu a si próprio, uma vez por todas. Não precisa de ir muitas vezes ao altar por novos pecados e para novos sacrifícios porque o seu ministério é eterno.
Por outro lado, os sacerdotes do passado não eram meros funcionários litúrgicos que mecanicamente exerciam os seus deveres, também eram pastores: recebiam ofertas como sinais simbólicos dos mais profundos segredos da vida, dos pecados e culpas, temores e esperanças, da fome de salvação. Deviam ser pessoas compassivas que compreendiam as fraquezas humanas. Com sua doçura e indulgência tratavam os pecadores. Como também eram pecadores, apresentavam sacrifícios por eles e pelo povo. Jesus é também um pastor bom e compassivo, conhece as dores e ambiguidades da condição humana, incarna esta vida com seus limites e debilidades. Jesus gritou no meio do sofrimento. Como sofredor Jesus realiza uma tarefa pastoral, carregada de humanidade. Mas a sua humanidade não desesperava, não se perdia no pecado. O sofrimento não é pecado, faz parte da condição humana. Limite e fraqueza não são pecado, caracterizam o ser humano. Mas Jesus aprendeu aí a obediência, não esqueceu ser Filho e pode conduzir o perdido a casa.
Os sacerdotes do passado não tinham a presunção nem a arrogância de se oferecerem como voluntários nem de pretenderem honra para si próprios. Eram chamados por Deus. Serviam uma missão. Também Jesus não procurou para si a glória, era designado pelo Pai. Não tinha só a missão sacerdotal, mas a filial, não tinha duração limitada mas era eterna.
Meus caros vicentinos e vicentinas: tomar sobre si as questões mais fundas, com doçura e indulgência, conhecer e assumir as situações dos que nos rodeiam com plena humanidade, com visão larga do tempo e preocupados com medidas que tenham futuro é ser como Cristo sacerdotes. Oferecer-se a si próprio e não exigir aos outros, participar e não esperar que sejam outros, intervir com prontidão implicando-se nas decisões, com amor real, sólido, resistente é ser como Cristo sacerdotes. Realizar a missão como chamados por Deus e não sendo actores e agentes sociais por conta própria é ser fiéis ao estilo de Jesus único sacerdote.
2.No Evangelho, vemos Jesus a exercer o seu sacerdócio. Jesus está a caminho. Segue-o grande multidão. Há um grito. Há uma vibração do meio do barulho da multidão. A multidão cala os gritos, sente-se incomodada pelos gritos inconvenientes. Mas Jesus está atento aos que do meio da multidão vibram com a sua passagem. Hoje também há quem pretenda calar os gritos de socorro com arrevesadas teorias. Atenção! Os métodos são subtis. Ai dos cristãos na sua participação política e económica quando esquecem os problemas profundos e se ficam pela rama superficial de questões secundárias relativas a direitos individuais em detrimento da luta por direitos sociais!
Jesus comove-se. Pára. Chama. É benevolente e dialoga. Mostra a sua atenção de pastor, a sua qualidade de escuta dos apelos para fazer também ele apelos à multidão, para que não abafe os gritos dos necessitados.
É a pedagogia de Jesus em acção. Razão tem o cego para que lhe chamar Mestre, depois de, na aflição do pedido de ajuda, lhe ter chamado Filho de David, com referência ao Antigo Testamento. Mas perante a novidade do seu comportamento, da sua atenção chama-lhe Mestre. Tem razão. A fé do cego revela-se nos seus actos, nas suas atitudes: deixa a capa, dá o salto, vai ter com Jesus.
Jesus não é um mestre paternalista, não recorre a métodos assistencialistas. Requer que cada pessoa tome a iniciativa e faça o seu caminho pessoal. Jesus quer de tal modo deixar a iniciativa, a demonstração da sua real verdade, sem complexos de perguntar ao cego o que ele quer. Era evidente! Jesus quer ouvir a voz dos pobres. Importava tomar consciência de que Deus nos liberta, nos consola, nos faz abrir os olhos para ver os outros com novos olhos, nos abre a mente. Há um caminho a fazer para a liberdade, mas a fazer com consciência, não por mero impulso repentino sem consequências.
Vai – a tua fé te salvou! É assim Jesus. Não quer pasmados à sua beira. Não lhe abriu os olhos para ele ficar a olhar para Ele, mas para o salvo também ver agora as necessidades dos outros e fazer-se discípulo, seguir o seu caminho. O caminho da fé vem da consciência, apesar dos obstáculos. Já Jeremias previa, na sua experiência, a salvação a chegar como luz. Jeremias partiu a chorar mas regressou a cantar. Na salvação tudo depende da iniciativa de Deus. É Deus que salva, que cura, que abre os olhos para a salvação. Somos nós, seu povo, que temos que tirar fora a capa, saltar, pormo-nos a mexer.
3. Caríssimos vicentinos: celebrar 150 anos de acção pastoral atenta aos mais carenciados é para vós reconhecer que, como a Ozanam, é a escuta dos gritos aflitos e a luz da Palavra de Deus que vos põe no caminho do seguimento de Cristo. É a comunhão com Cristo que dá nova visão, a visão da fé para olhar os gritos clamorosos ou os apelos abafados e surdos nos dias de hoje.
Sabeis como a conversão para ir ao encontro, para seguir o caminho requer despojamento do que é estragado, dos sinais do passado para redescobrir a beleza ágil do homem novo. A Igreja em Portugal pede-vos esta renovação para corresponder como povo sacerdotal às propostas exigentes de inovação social. A vossa firmeza na oração é raiz para manter a identidade do modo como acolheis e tratais os problemas sociais. As vossas entregas escondidas aos mais sós e abandonados, aos mais perdidos e sem horizontes, aos mais feridos na sua dignidade são sacerdócio vivo. As comunidades são mais povo sacerdotal pela agilidade da vossa mediação, ao serdes para a sociedade sinal de um Reino novo.
D. Carlos Azevedo