O presidente da Comissão Episcopal das Missões, D. António Couto, fala dos desafios que se colocam à difusão do Evangelho nos nossos dias
2008 foi um ano grande para a Missão em Portugal. Em pleno Ano Paulino foi celebrado o I Congresso Missionário Nacional, com mais de mil participantes. Em declarações à Agência ECCLESIA, o presidente da Comissão Episcopal das Missões, D. António Couto, fala do percurso percorrido desde então e dos desafios que a semente do Evangelho deposita no coração da Igreja.
Agência ECCLESIA (AE) – Depois do Congresso Missionário de 2008, qual foi a dinâmica que se criou na Igreja portuguesa a partir desse encontro?
D. António Couto (AC) – Duas dinâmicas saíram do Congresso: uma prática e imediata, e outra de fundo, a requerer estudo, e, portanto, a médio prazo.
A primeira nasce no seio do próprio Congresso, entre os participantes, e naquilo que cada um levou consigo. Quem participou no Congresso levou consigo naturalmente algumas motivações e provocações. Estiveram presentes bispos, sacerdotes e leigos, estes em maior número. E talvez seja no sector dos leigos que se esteja a operar, já de há uns tempos a esta parte, e no bom sentido, a maior viragem.
A segunda, que ficou assinalada nas conclusões do Congresso, foi a solicitação à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) da elaboração de um documento-base para a missão em Portugal.
Esse pedido foi considerado no plenário da CEP, em Novembro de 2008, logo após a realização do Congresso. A CEP aceitou o pedido por unanimidade e incumbiu a Comissão Episcopal das Missões da elaboração do referido documento.
A Comissão Episcopal das Missões e o Conselho Nacional das Missões acordaram as linhas fundamentais desse documento, que já recebeu duas redacções, e está actualmente em apreciação por todos os envolvidos. Na próxima Assembleia Plenária da CEP, marcada para Novembro, o documento poderá ser apresentado para discussão.
Este documento, acredito, poderá criar novas dinâmicas na Igreja em Portugal, em especial no âmbito das dioceses e paróquias, mas também nos Institutos Missionários e de todos quantos vivem o problema missionário. Esta dinâmica tem de chegar às paróquias. Como disse muito bem João Paulo II, as paróquias são a Igreja no meio dos seus filhos e das suas filhas, e é lá, nesse humaníssimo chão, que se podem estabeler relações novas, próximas e acolhedoras.
AE – A Igreja está à espera deste documento para criar um novo dinamismo? O envolvimento pessoal não correspondeu às expectativas criadas?
AC – Houve o envolvimento possível. Do Congresso Missionário não saiu nenhuma organização concreta. Saíram desafios que podem estimular as organizações que já existiam, e que podem eventualmente gerar novas dinâmicas. As organizações já existentes passam pelo voluntariado, que cada vez contagia mais jovens, sobretudo nos meios universitários, e também pelos grupos que andam associados aos diferentes Institutos missionários. Estes dinamismos já existiam, portanto. O que desejamos é que a dinâmica missionária chegue a mais gente, atingindo também o coração das Dioceses e Paróquias.
No que diz respeito ao documento, é preciso ter a noção realista de que leva o seu tempo de discussão, análise e elaboração. Acredito que poderá ajudar a dinamizar a Igreja, aos seus diversos níveis, não deixando ninguém indiferente.
Intuições de S. Paulo para a missão hoje
AE – Na intervenção nas Jornadas Missionárias, D. António Couto focou as grandes intuições da missão em São Paulo. Que intuições são essas, e, sobretudo, de que forma se podem reflectir na Igreja contemporânea?
AC – A primeira intuição paulina é a pessoa de Cristo. S. Paulo indica que Cristo é o fundamento e mostra que devemos estar a tempo inteiro tomados por Cristo, com ele ocupados, por ele conduzidos. Só assim, vivendo de Cristo, com Cristo e para Cristo, o podemos levar às pessoas. Esta é a intuição de fundo, que resulta da própria experiência de S. Paulo. Não podemos fazer missão cristã, esquecendo Cristo.
A segunda intuição refere-se à metodologia da missão. Se eu vivo de Cristo e se Cristo é a minha vida, impõe-se então que eu leve Cristo aos meus irmãos. Que metodologia usar? No tempo de Paulo havia, na bacia do Mediterrâneo, uma forte missionação por parte do judaísmo, mas também por parte dos pregadores dos diferentes deuses pagãos. Usavam uma metodologia assente numa retórica altissonante, além de os mover o lucro e o sucesso. Ao contrário, S. Paulo apresenta-se com uma metodologia muito simples, maternal, paternal, personalizada e a tempo inteiro. Não foi, portanto, com retórica que São Paulo levou Cristo às pessoas, mas debruçando-se sobre elas com carinho, com uma atenção personalizada e a tempo inteiro.
Da segunda intuição desdobra-se naturalmente a terceira. Com a metodologia personalizada e dedicada atrás apresentada, S. Paulo não conseguia chegar ao coração de muita gente. S. Paulo percebeu assim que precisava de muitos e bons cooperadores. S. Paulo não mudou de metodologia, mas rodeou-se de uma vasta rede de cooperadores. É a terceira grande intuição.
Estas duas linhas metodológicas de S. Paulo são geniais, e constituem ainda hoje desafios actualíssimos para a nossa Igreja. Se a Igreja de hoje as adoptar, encontrará uma verdadeira mina de ouro.
A quarta intuição paulina são as cidades. No tempo de Paulo o mundo greco-romano tinha grandes cidades e grandes estradas. O sonho de Paulo era chegar a Roma o quanto antes, para chegar ao coração do mundo. S. Paulo queria chegar ao local onde nasce o mundo cultural, social, humano, tal como acontece hoje. Quando um dia entrou na famosa via Egnatia, à saída do porto de Neápolis, antes de chegar a Filipos, Paulo começou a ver Roma no horizonte. Seguiria, com seguiu para Tessalónica. Daí seguiria para Dirráquio, na costa Adriática. Atravessava o mar Adriático de barco e desembarcava em Brundísium. Seguia então a via Ápia até Roma. Mas, estando em Tessalónica, quis o Espírito que descesse à Acaia, permanecendo algum tempo em Corinto. Paulo sabia que, evangelizando o coração do mundo, que bate nas cidades, evangelizava o mundo.
É olhando maravilhado para este “Paulo de Cristo”, que o Papa Paulo VI, em 1975, na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, aponta Paulo como “modelo de cada evangelizador”. E para redigir a Evangelii Nuntiandi, a primeira grande Encíclica missionária depois do Concílio, a dez anos do Concílio, Paulo VI teve de citar mais de 100 vezes as Cartas de S. Paulo. A 25 anos do Concílio, em 1990, João Paulo II publica outra grande Encíclica missionária, a Redemptoris Missio. E também não o consegue fazer sem citar mais de 30 vezes as Cartas de S. Paulo, além de se referir muitas outras vezes à Evangelii Nuntiandi, que já citava muitíssimas vezes S. Paulo. Por último, também Bento XVI, na Mensagem para o Dia Mundial de Oração pelas Vocações de 2008, consagrou Paulo como “o maior missionário de todos os tempos”.
AE – Fazendo um retrato da Igreja em Portugal, como é que ela se situa nessas prioridades?
AC – A Igreja em Portugal ainda não se sente afectada, no seu todo, por estas linhas de rumo. Porém, alguma coisa se vai fazendo aqui e ali, iniciativas esporádicas. Mas acredito que vai chegar o tempo da graça para todos, em que todos viveremos a alegria de sermos evangelizadores. E haverá lugar para todos. É mesmo necessária uma rede de verdadeiros evangelizadores. Acredito que a missão há-de vir a fazer parte, como primeira prioridade, dos programas pastorais das nossas Dioceses e Paróquias.
Parece-me que temos ficado muitas vezes de braços cruzados, vendo o nosso mundo a deslizar tranquilamente para o paganismo. Se a nossa paixão é Cristo, como sucedia com Paulo, não podemos permanecer mais nessa atitude. Temos de anunciar Cristo com génio, paixão e coração. Não podemos sequer contentar-nos em fazer o que podemos. Temos de nos gastar e ser gastos, dando a vida por esta causa. Experimentaremos então, como refere João Paulo II, que a fé se fortalece, dando-a.
AE – Sobre a inteira ocupação de Cristo, a primeira intuição?
AC – Esse é o problema de fundo. Quem vive de Cristo e foi encontrado por Cristo, não pode guardá-lo para si. Tem de o anunciar. E é com alegria que tenho de dizer que muitas pessoas que sentem esta necessidade e este amor. Mas temos de aumentar esta fogueira.
Pois é igualmente verdade que muitos dos que se dizem cristãos de há muito vivem à margem de Cristo, deixando de se relacionar pessoalmente com Cristo. As solicitações deste tempo levam as crianças, os jovens e os pais para outras paragens. Não podemos continuar a lançar sobre eles a culpa, como se eles fossem os maus e nós os bons. Se acreditamos em quem acreditamos, então talvez compreendamos que a culpa impende sobre nós, que não soubemos, à imagem do Bom Pastor, ir à procura deles com amor e total dedicação.
AE – Esse contacto vital centra-se em quê?
AC – Não em quê, mas em quem. Em Cristo, obviamente. Numa relação pessoal com Cristo vivo, hoje. Não numa mera visão histórica do que se passou há dois mil anos. É o Senhor Ressuscitado, vivo e presente para sempre no meio de nós, que temos de levar às pessoas. Saiba-o ou não, é de Cristo que as pessoas necessitam verdadeiramente. É preciso abrir espaços na nossa vida, para que Cristo possa entrar em nossa casa.
Este encontro pessoal é fundamental. Só depois começam as perguntas e as respostas, os relatos da nossa vida iluminada por Cristo. É o tempo de uma mais aprofundada relação e formação.
Estudar a Missão
AE – Qual a importância das Jornadas Missionárias?
AC – As Jornadas, organizadas anualmente, são um ponto de encontro e um ponto de partida. Uma verdadeira plataforma de múltiplos encontros que atinge pessoas envolvidas no trabalho missionário, dentro e fora de Portugal, mas que acolhe também muitos que chegam pela primeira vez. Uns trazidos por amigos, outros para ver o que é e como é, outros porque, sabendo-o ou não, Deus os enviou para cá. É um belo tempo de encontros e partilhas. Só por isto, já seria importante a sua realização. Mas há também desafios e provocações, sementes que são lançadas, não para o ar, mas para o coração das pessoas. É a oração, a música, a reflexão feita, que hão-de deixar novos dinamismos em quem vem.
AE – É possível ser missionário sem se sair de casa?
AC – Sim, é possível. Basta ter um coração aberto ao mundo e amar. Santa Teresinha do Menino Jesus foi proclamada padroeira das missões, e nunca saiu do convento. Mas tinha um coração à dimensão de Deus e de todos os irmãos do mundo. Escreveu: “No coração da Igreja, minha mãe, eu serei o amor”. Escreveu em papel e na vida.
Um missionário não se mede pelas inúmeras viagens que possa fazer. Um cristão que não esteja em comunhão com as pessoas do mundo e apenas se preocupe com a sua paróquia, obviamente vive na cadeia. É preciso viajar também por dentro. Fazer viagens intransitivas, rasgar avenidas no próprio coração.
Depois, não há dicotomia entre ser cristão e ser missionário. Às vezes somos levados pensar que somos muitos cristãos, mas que há poucos missionários, porque pensamos que são duas coisas diferentes. Ora, temos de tomar consciência de que não duas vocações: primeira e fundamental, a vocação cristã, a que se pode vir, porventura, um dia a acrescentar a missionária. Trata-se de uma visão incorrecta, embora muito difundida. Na verdade, há apenas uma única vocação, pois ser cristão e ser missionário é a mesma coisa.
AE – A missão era entendida como ir para outros Continentes, mas cada vez se fala mais de uma missão na Europa…
AC – Durante muito tempo, passou-se a ideia os missionários eram os que deixavam a sua terra e partiam para outras paragens. A missão era levada a cabo por especialistas, uma espécie de super-homens, que integravam Institutos Missionários. Nesse tempo, a Igreja local, a diocese e a paróquia, mal conhecia, mal via os missionários, e pensava que a missão era só para essa espécie de super-homens. Não era tarefa da Igreja local e do cristão comum. A Igreja local e o cristão comum, quando muito, contribuíam com a sua esmola, no Dia Missionário Mundial, para apoiar os missionários lá longe.
O II Concílio do Vaticano alterou em muito esta concepção, fazendo ver que o sujeito primeiro da missão é a Igreja local ou particular. Entenda-se: somos missionários e todos somos responsáveis pela missão. A mudança veio dizer que a missão não é obra de especialistas, mas que a diocese e a paróquia são missionárias. E que todos os cristãos, por motivo do seu baptismo, são igualmente missionários. É óbvio que, se espaço da Diocese e da Paróquia, há missionários por toda a vida, de doação radical e total, então é toda a Diocese e Paróquia que serão também enriquecidas com esse dom. Mas esse dom está integrado na Igreja local, e não à margem dela.
É assim que cada Igreja local ou particular se torna sujeito primeiro da missionação. Missão inadiável e não delegável.