Cátia Tuna assina obra «O meu corpo feito grito», onde aborda questão da expressão, «que ainda hoje, às vezes, se ouve em certos reportórios de fado»

Lisboa, 11 dez 2025 (Ecclesia) – A investigadora Cátia Tuna apresentou o livro ‘O meu corpo feito grito: Fluxos religiosos na poesia e nos gestos do fado (1926–1945)’, parte da sua tese de doutoramento, esta quarta-feira, no Museu do Fado, em Lisboa.
“Os leitores vão encontrar letras de fado, muitas, analisadas, pensadas, refletidas, interpretadas, que foram escritas nesta altura por poetas populares. É o tipo de poesia que também o fado, de alguma forma, adotou. E, por outro lado, vão encontrar o esforço de procurar compreender, da melhor forma possível, o que é que eram os gestos dos fadistas nesta altura”, disse a autora, investigadora em História Religiosa, em declarações à Agência ECCLESIA.
Segundo Cátia Tuna, os “gestos” dos fadistas, neste período, eram “muito diferentes daqueles que são agora”, porque “eram pensados e muito intencionais, quase previstos”, e explica que nos jornais de fado dessa época “existiam regras que eram passadas de geração em geração, eram explicadas, e até eram vigiadas”.
“Quando o fadista cantava de uma forma que não era concordante com aquilo que eram os padrões gestuais que se praticavam, existia uma reação crítica por parte das pessoas que, no meio do fado, eram vistas como uma espécie de vigilantes, como aqueles que guardavam a herança do fado nas várias vertentes”, acrescentou.
Sobre os gestos do fadista que são expressão de religiosidade, Cátia Tuna indica que “é nesta altura que surgem os olhos fechados”, e destaca que a fadista Ercília Costa – “a fadista que mais fama, mais sucesso, teve antes da Amália, foi a Nova Iorque cantar fado, foi a Paris, correu o mundo também a cantar fado, conheceu a Carmen Miranda” – “houve situações em que cantava com as mãos juntas, inclusivamente foi conhecida como a ‘santa do fado’”.
A investigadora em História Religiosa e autora do livro ‘O meu corpo feito grito: Fluxos religiosos na poesia e nos gestos do fado (1926–1945)’ explicou sobre a cronologia, o ponto histórico da sua tese de doutoramento, que foi nessa altura que o fado, como se conhece agora, “foi profissionalizado”, surgiram as casas de fado e “a ideia de vedetas de fado, artistas que viajam em digressão”, mais mulheres começarem a cantar fado, antes eram poucas, “a Júlia Florista, e a Severa, muito ligadas ao mundo aqui de Lisboa, mais pobre e, de alguma forma, das franjas da sociedade dessa altura”.
“O fado era tido como uma prática imoral, houve ataques nesse sentido, houve também defesas por parte daqueles que pertenciam ao meio fadístico, e que escreviam a defender o fado nos jornais. Havia esta intenção de provar, de alguma maneira, que o fado era uma música moral, que era uma música que tinha muito valor, até espiritual, e depois, também, no enquadramento daquilo que foi o Estado Novo, de apresentar-se o fado como alguma coisa que não só é moral legitimamente, mas também que tem essa função de moralizar”, desenvolveu.
A nova publicação é uma coordenação do Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião (CITER) da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (UCP), o responsável no CITER por esta coleção explica que “estuda a religião naquilo que são os seus interfaces culturais”, centram-se “na sociedade, na cultura e tentam encontrar os diferentes sinais das mundividências religiosas”, aquilo que, de alguma forma, marca a cultura do ponto de vista religioso.
“Este livro da Cátia Tuna faz isso mesmo tendo como objeto este artefacto cultural que é o fado, como canção urbana, portuguesa, neste caso bastante centrada na cultura de Lisboa, e procura mostrar como, de facto, esse produto cultural, é também ele marcado por mundividências religiosas, por práticas até do ponto de vista do estilo de cantar o fado, que remetem para um certo imaginário religioso”, desenvolveu o professor Alfredo Teixeira.
À Agência ECCLESIA salientou que estes trabalhos, sob uma determinada cronologia específica, são sempre um contributo muito importante para compreender “o próprio presente, porque aquilo que é o fado hoje não se compreenderia, obviamente, sem esse itinerário.”
Alfredo Teixeira, investigador e antropólogo, é também compositor e destacou deste trabalho um aspeto para o seu próprio interesse de investigação, que se cruza “com os interesses da Cária Tuna, que é perceber, no fundo, as metamorfoses do Sagrado na cultura contemporânea”.
“Nós vivemos sociedades onde, de alguma forma, encontramos um mundo já não tutelado por uma determinada ordem sacral, mas, em todo o caso, o sagrado não morre, desloca-se, e, portanto, encontrar aquilo que são esses lugares de reconfiguração, em particular na atividade estética, que é um dos contextos onde, de alguma forma, encontramos mais metamorfoses do religioso e do sagrado, é, de facto, um desafio muito interessante.”
Cátia Tuna refere uma das coisas que trabalha neste livro “é a questão da expressão, que ainda hoje, às vezes, se ouve em certos reportórios de fado”, e estuda alguns conjuntos – “o fado a afirmar-se como uma oração, nas letras mais profundas, mas também nas letras mais humorísticas” – e, nesta época, começa também a existir o fado íntimo, “o fado que canta o interior e não só o exterior”.
A sessão de apresentação terminou com três fados, com guitarra portuguesa e viola, um deles cantado pela Cátina Tuna, onde “é o poeta a falar com o seu próprio coração”, a dizer, ‘coração ainda esperas, não matas mais’, que se vê depois, “em 1950, quando a Amália escreve o ‘Estranha Forma da Vida’, que é também o diálogo com o coração, o coração como metáfora mais eloquente da própria pessoa”.
CB/OC
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‘O meu corpo feito grito: Fluxos religiosos na poesia e nos gestos do fado (1926 – 1945)’ é a ‘parte III’ da tese de doutoramento ‘Não sei se canto, não sei se rezo – ambivalências culturais e religiosas do fado entre os anos 1926 – 1945’, que Cátia Tuna autonomizou e publicou porque o “tema vale por si”, para além de uma parte logística, porque “os livros são mais difíceis de circular, até como objeto funcional, se forem muito grandes”. O Museu do Fado, em Lisboa, recebeu a apresentação do novo livro, a sua diretora assinalou que fado e o cristianismo, tradição e modernidade, “são dois territórios que se interligam na perspetiva natural, e esta abordagem é uma abordagem inédita, original”. “Falamos de dois patrimónios vivos que se interligam naturalmente, de uma forma espontânea. Nós encontramos muito os testemunhos da religiosidade e de uma certa espiritualidade, da fé, nos repertórios de fado, na poesia de fado, seja de tradição popular ou erudita, nos gestos de fado, numa certa liturgia performativa, sabemos-lhe assim”, assinalou Sara Pereira à Agência ECCLESIA. Para a diretora do Museu do Fado acolher a apresentação do livro ‘O meu corpo feito grito: Fluxos religiosos na poesia e nos gestos do fado (1926 – 1945)’ tem “muita importância”, enquadra-se “perfeitamente na missão” da instituição, e sublinhou que “é uma ligação bastante espontânea e natural”, que, na sua opinião, tem a ver com “um país profundamente religioso”. Na sessão de apresentação, o coordenador-executivo do CITER destacou que a obra da investigadora em História Religiosa Cátia Tuna “é uma referência para a sociedade pós-secular”, e tem a “virtude” de levar a Teologia “para além das cadeias que querem colocá-la”, de pensar a Teologia como “a expressão de um povo que interpreta no seu sentimento alguma coisa que lhe motiva a buscar algo”. “Essa reflexão sobre o que o fado comporta é efetivamente uma porta que se abre para pensarmos outros lugares de reflexão em que a hermenêutica, o uso teológico da linguagem pode também se cruzar com o uso cultural, nesse caso musical, da linguagem”, referiu o professor Alex Villas Boas. O historiador António Matos Ferreira, que foi o orientador da tese de doutoramento ‘Não sei se canto, não sei se rezo – ambivalências culturais e religiosas do fado entre os anos 1926 – 1945’, desafiou a investigador Cátia Tuna a continuar a desenvolver esta temática, na apresentação da nova publicação onde afirmou que a nova obra “não é só interessante, mas importante, como contribuição cultural”. O livro coordenado pelo CITER é a nona obra da Coleção ‘Estudos de Religião’ editada pela Imprensa Nacional; a chancela editorial da INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda quer estar presente onde considera que “existem lacunas importantes para a cultura portuguesa e para a língua portuguesa”. |







