Pessoa com deficiência: «O nosso objetivo é sempre o de potenciar, olharmos para a capacidade e não para a incapacidade»

No culminar da semana em que se assinalou o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência é convidada da Renascença e da Agência Ecclesia, Elisabete Dias, educadora social do Centro João Paulo II, e que faz parte do “Grupo da Diferença”, que congrega instituições fatimenses e ourienses dedicadas às pessoas com deficiência

Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)

 

Muitas vezes pensamos nas instituições como ilhas. Em Fátima e Ourém, existe o «Grupo da Diferença», que não é uma entidade jurídica, é uma rede de parceria informal que junta o CRIF, o Centro João Paulo II, a Casa do Bom Samaritano, o CRIO e a Escola de Educação Especial Os Moinhos. Qual é a vantagem prática desta união? É a partilha de recursos?

Não, a base do “Grupo da Diferença” não é, de todo, a partilha de recursos. São cinco instituições parceiras que se uniram em prol de um objetivo comum: desmistificar a ideia da pessoa com deficiência e promover sempre a maior inclusão na comunidade. Esse é o objetivo primordial do grupo.

 

Um dos objetivos desse grupo é dar visibilidade às pessoas com deficiência na comunidade. Sentem que essa visibilidade ajuda a combater a discriminação que ainda existe?

Claro que sim. Quanto mais a deficiência for vista e estiver acessível a todas as pessoas, mais estaremos a ir no caminho para a não discriminação e para a verdadeira inclusão. Acreditamos que há ainda um longo caminho a percorrer, mas também acreditamos que, nestes 20 anos que já temos desta parceria, muito trabalho já tem sido feito.

 

Ainda há muita mistificação do que é uma pessoa com deficiência na sociedade portuguesa?

Sim, sim.

 

Como é que isso se sente no dia a dia?

É natural. Nós somos cinco instituições muito distintas – umas trabalham mais com a incapacidade motora, outras mais com a incapacidade cognitiva – e, portanto, até essa visualização por parte das pessoas é feita de forma diferenciada. Mas as pessoas com dificuldades são sempre vistas como inferiores, como mais limitadas. O nosso objetivo é sempre o de potenciar, olharmos para a capacidade e não para a incapacidade.

 

O Governo reconheceu recentemente que a inclusão tem falhas e um estudo apresentado na Assembleia da República indica que 91% dos portugueses consideram que as pessoas com deficiência são frequentemente discriminadas. Este número surpreende-a ou é um espelho daquilo que vê todos os dias?

De facto, é uma percentagem muito elevada. Surpreende-me um bocadinho estarmos na casa dos 90%, mas a verdade que há um longo caminho a percorrer e que há muita discriminação. Em coisas simples: às vezes até com a acessibilidade a um serviço público, com a possibilidade de frequência no ensino regular…

Poderíamos enumerar imensas coisas. É uma realidade que nós, instituições, também reconhecemos como difícil. É difícil a inclusão, é difícil olharmos para a pessoa com deficiência como uma pessoa igual, ter igualdade de oportunidade; isso ainda não acontece.

 

Certamente que entre esses 91% haverá alguns que estão a fazer uma autocrítica, ou seja, também discriminam. É mesmo uma questão de mentalidade, de dificuldade em conviver com a diferença?

De mentalidade, eu acho que sim, a base está aí. Se nós conseguíssemos olhar para o outro como um ser diferente, mas com igual oportunidade e igual capacidade, faria toda a diferença.

 

Alguém que está tão envolvido como a Elisabete no dia a dia, neste trabalho, que diz a quem nos está a ouvir para que possa fazer gestos pequenos ou maiores e esta situação seja superada?

Eu acho que a questão da empatia é fundamental. Se nós conseguirmos colocar-nos no lugar do outro e calçar os sapatos do outro, faz toda a diferença. Se eu conseguir ver e sentir a dificuldade no outro, vou ter mais capacidade para compreender. O apoio das instituições acaba muito por ser um apoio às famílias, de incentivo…

 

Sabemos muitas vezes que o peso recai sobre as famílias, que acabam por ficar isoladas. De que forma é que sente esse isolamento dos cuidadores no dia a dia e qual é a primeira resposta que as instituições tentam proporcionar?

Nós, no “Grupo da Diferença”, somos cinco instituições com realidades muito diferenciadas. Quer o Centro João Paulo II, quer a Casa do Bom Samaritano, são lares residenciais, ou seja, dão uma resposta efetiva: os utentes ficam aos cuidados destes lares e depois fazem o seu percurso na escola e, eventualmente, a inserção profissional, sempre com a retaguarda das instituições.

Depois, por outro lado, temos o CRIF e o CRIO, que são centros de reabilitação, ou seja, dão apoio durante o dia, de segunda a sexta-feira. Libertam as famílias para poderem ter também as suas atividades profissionais, terem a sua vida pessoal, que é extremamente importante. E depois a escola de educação especial ‘Os Moinhos’, que é muito específica, que atende crianças em idade escolar, até aos 18 anos, com graves limitações físicas, motoras e cognitivas. As instituições acabam por dar uma resposta efetiva, que é a de cuidar dos seus, da melhor forma que conseguem.

 

Nós sabemos também que há casos onde essa retaguarda familiar ou não existe ou não consegue dar resposta. Olhando para o conjunto da sociedade, o Estado está preparado para acolher esses casos?

Eu trabalho nesta área há 20 anos e a evolução tem sido bastante significativa, vai havendo cada vez mais respostas. Agora, se são as suficientes? Isso não lhe consigo dizer, mas eu não acredito que o país esteja preparado.

O que é que está a acontecer, pensando por exemplo nos centros de reabilitação que dão resposta diurna? Os pais vão envelhecendo, as famílias estão a ficar sem capacidade para dar resposta e existem listas de espera enormes.

Efetivamente, estas instituições vão criando os seus lares residenciais, mas não estão, com certeza, a dar resposta a todos os pedidos e às listas de espera enormes que as instituições individualmente têm – pelo menos, estou a falar destas nossas, do nosso concelho.

 

A nota positiva do estudo que citámos é que há um amplo apoio da população à promoção da inclusão. Falta vontade política para a promoção das melhores práticas?

Eu não sei o que é que falta. Acredito que não é fácil. Nós, trabalhando nesta área, sabemos que não é fácil apontarmos o dedo e dizer que a culpa é deste setor, ou daquele, ou é de uma questão política. Na realidade, nós estamos a falar de pessoas com graves limitações, muitas vezes. Por mais que se tenha boa vontade, por exemplo, numa inclusão profissional, as questões não são tão lineares como isso, porque estamos a falar, às vezes, de uma grande falta de autonomia.

Muitas vezes, pensar numa inclusão profissional implica que essa pessoa tenha de estar acompanhada, porque não consegue executar determinadas tarefas. Portanto, eu acho que todos nós, individualmente, podemos acolher sempre a pessoa com deficiência. Eu reforço esta questão da empatia, olharmos o que é que podemos fazer, e se todos fizermos bocadinho, será também mais simples.

 

Falou que tem notado diferenças nestas duas décadas de trabalho. A questão das barreiras arquitetónicas é algo que exige a atenção de todos e que todos podem ajudar a promover?

Claro. E todos podemos ajudar a identificar. Nós só pensamos nisso quando precisamos, a realidade é essa. Se eu tenho um bebé e vou com um carrinho, tenho dificuldade e penso nisso; caso contrário, não penso na outra pessoa que só consegue movimentar-se com uma cadeira de rodas naquele edifício. Eu acho que se nós estivermos atentos, é uma questão de civismo também. Por exemplo, nos hipermercados, no estacionamento reservado a pessoas com deficiência: quantas pessoas estão ali a barrar a oportunidade de uma pessoa poder usufruir do seu direito?

 

Estamos a caminhar para um grande evento no dia 13 de dezembro: o Santuário de Fátima vai acolher o Jubileu das Pessoas com Deficiência e os seus cuidadores. O tema é ‘Refletir a Esperança’. O documento preparatório diz que este dia não é apenas para a pessoa com deficiência, mas construído com ela. Como é que olha para esta intenção de dar protagonismo aos utentes?

Eu acho maravilhoso, acho que a ideia do Jubileu foi extraordinária, porque incorpora aqui não só a pessoa com deficiência, mas os seus cuidadores, os profissionais, as famílias. Há aqui um espaço enorme de partilha, de um momento que eu acredito que vai enriquecer. É um momento de união e de sentirmos que não estamos sozinhos. Nós, às vezes, na instituição temos as nossas dificuldades, mas acredito que muitas famílias pelo país fora têm dificuldades muito próprias. Acredito que vai haver uma grande adesão…

Vai ser essencialmente isso, um momento de união e de partilha de coisas boas e de coisa menos boas.

 

O evento tem dois programas simultâneos, um deles mais sensorial, focado nas pessoas com deficiência intelectual ou psíquica, e esse cuidado estende-se à logística, com almoço gratuito e possibilidade de alojamento. Este é um sinal importante para muitas famílias que tantas vezes têm medo de sair de casa por causa destas dificuldades?

Sim, eu acho que o Santuário, nesse aspeto, teve um cuidado extraordinário. De facto, permitiu e deu espaço para que ninguém ficasse excluído, para que quem quisesse efetivamente participar neste encontro o pudesse fazer. Proporcionou todas as condições em termos de alojamento, de refeição, de programa alternativo. Ou seja, a família pode perfeitamente participar no programa geral e ter a garantia de que as crianças ou os adultos têm o seu acompanhamento no programa extraordinário, que estão acompanhados e que podem usufruir e estar livres. O Santuário está a ser “colo” para as instituições, mas está a ser, sobretudo, “colo” para todas as famílias.

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