Discurso de Luís Archer ao receber o grau de Doutor honoris causa

Magnífico Reitor da Universidade Nova de Lisboa, Prof. Doutor António Rendas

Excelentíssimo Senhor Presidente do Conselho Geral da Universidade Nova de Lisboa e Presidente da Academia das Ciências de Lisboa, Prof. Doutor Eduardo de Arantes e Oliveira

Excelentíssimo Senhor Director da Faculdade de Ciências e Tecnologia, Prof. Doutor Fernando Santana .

Excelentíssimo Senhor Decano da Faculdade de Ciências e Tecnologia e da Universidade Nova de Lisboa, Prof. Doutor Janeiro Borges.

Excelentíssima Senhora Presidente do Departamento de Ciências da Vida, Prof. Doutora Isabel Sá Nogueira.

Excelentíssimas Autoridades 

Caros Colegas

Minhas Senhoras e Meus Senhores

Recebi com humilde perplexidade mas também com profunda emoção a decisão da Universidade Nova de Lisboa de me acolher na especial intimidade dos seus claustros, atribuindo-me o grau de Doutor honoris causa.

Humilde perplexidade porque esta tão alta distinção é, da minha parte, sem dúvida imerecida. Mas profunda emoção porque me evoca todo um passado em que esta Universidade me abriu de facto perspectivas novas para o desenvolvimento da genética molecular no nosso país.

A Universidade Nova de Lisboa foi instituída em 11 de Agosto de 1973. Nessa altura, trabalhava eu com Maurice Fox, como Visiting Assistant Professor no MIT (Massachusetts Institute of Technology). No nosso laboratório tínhamos um pequeno rádio (debaixo da bancada) que nos dava a música de fundo daquele tempo: as intermináveis Auditorias em que ecoava a eclosão social de segredos políticos. De cima da bancada, também a genética saia do seu secretismo científico e eclodia em discussões públicas sobre uma exploração social.

Quando, nesse Verão de 1973, apresentei em Berkeley uma comunicação sobre transformação bacteriana ao XIII Congresso Internacional de Genética, tive relativamente pouca gente a assistir. As multidões iam para sessões em que se discutiam acaloradamente os manifestos e abaixo-assinados sobre manipulação política da genética, eugenismo, racismo, e neo-imperialismo científico.

É que a escuta atrevida dos segredos íntimos de cada gene, começava a abrir a possibilidade de uma revolução no mundo vivo – a colectivização do material genético.

Foi nesse mesmo ano de 73 que se conseguiu o impensável – tirar genes de uma espécie e transferi-los para outra, em condições tais que esses genes continuam a multiplicar-se e a manter actividade como se estivessem em sua casa!

Estava aberto o caminho para a engenharia genética. Por exemplo, a insulina humana existia, dantes, em quantidades insuficientes para os processos terapêuticos. Hoje obtêm-se quantidades ilimitadas de insulina rigorosamente igual à humana a partir de uma bactéria que recebeu o gene respectivo. Até parecem bactérias humanizadas!

Igualmente, de acordo com as nossas conveniências, genes de plantas poderiam ser enxertados em animais ou no próprio Homem.

Rompiam-se, assim, os muros isolacionistas entre as espécies. DNAs diferentes que nunca se tinham visto, iriam socializar e confraternizar na mesma célula. O imenso património genético dos actuais 10 milhões de espécies poderia ser redistribuído e readministrado por nós, depois de instaurada uma certa colectivização génica. Esta foi uma das maiores revoluções científicas na história da biologia.

Entre nós, também se deu, na mesma altura, uma revolução e socialização, tanto na política como na ciência. No Verão de 74, por entre as greves no Instituto Gulbenkian de Ciência, e quase passando por cima dos piquetes e das assembleias de saneamento, Frank Young já nos conseguiu mostrar, em Oeiras, como a enzima de restrição Eco RI de facto corta in vitro qualquer DNA em pontos de sequência rigorosamente específica, permitindo recombinações novas. Por causa das greves, muitas das aulas teóricas tiveram de ser dadas longe, na praia, usando como quadro preto os tampos de lousa das mesas de um café próximo. Assim anunciámos, em calção de banho, a revolução da engenharia genética, no próprio verão da revolução dos cravos.

O público correspondeu, e pedia informações. E durante o ano de 1976 fui aprender a sério em Rochester, N. Y., com Frank Young, as técnicas de engenharia genética. Ao regressar, vi que a agitação tinha ressurgido. O planeado Curso de manipulação genética e a preparação das suas infrastruturas tinham sido cancelados. Mas encontrei em Sacavém um trabalhador de materiais de acrílico que me fez à pressa os indispensáveis aparelhos de electroforese em gel de agarose. E apesar do verão quente de 76 que fazia cair os geles (então verticais) conseguimos realizar, em Oeiras, sob a orientação dos Professores Frank Young e Gary Wilson, o 1.º «Workshop on Genetic Manipulation». Foi a primeira vez que, em Portugal se isolou uma enzima de restrição (a Bam HI), se construiu o mapa físico de um plasmídio quimérico e se fez um Southern Blotting. Ainda guardo a lista e assinaturas dos ilustres participantes deste Workshop. Recordo-os com saudade e admiração.

A partir de então, as técnicas de engenharia genética passaram a fazer-nos companhia por toda a parte. Plasmídeos que tinha trazido de Rochester, N. Y., foram passear comigo, em 1979 e 1982, até Yerevan na Arménia soviética, para pequenos cursos intensivos. E devo dizer que os plasmídeos americanos conviveram amistosamente com as células soviéticas.

Mas o importante era o entusiasmo dos novos perante esta revolução da genética e as suas fantásticas possibilidades. De 1975 a 1978 regi disciplinas meramente de opção na Faculdade de Ciências de Lisboa.  A sala enchia-se e as aulas práticas eram dadas por assistentes dessa Escola que, entretanto, preparavam as suas teses de doutoramento no meu laboratório no Instituto Gulbenkian de Ciência, e hoje são professoras dessas mesmas matérias (a Prof. Doutora Graça Vieira e a Prof. Doutora Graça Fialho, aqui presentes nas primeiras filas, e a Prof. Doutora Helena Paveia que infelizmente já não está no meio de nós)-.

Situação semelhante se deu no Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar na Universidade do Porto, a convite do Prof. Corino de Andrade.

Mas o entusiasmo dos novos obrigou-me a reger disciplinas ou blocos de aulas numa variedade de outros locais, como a Faculdade de Medicina de Lisboa (no curso do Prof. David-Ferreira), o Instituto Politécnico de Vila-Real, Universidade de Évora (aqui sob pretexto de história da biologia), Universidade Católica e vários outros locais.

O entusiasmo de todos era impressionante. 

A única dificuldade era o esquema já estabelecido em velhas Universidades, não facultando o acomodamento fácil de neo-estruturas curriculares. Queríamos um novo arquétipo, agora que a inovação e o inesperado surgiam de toda a parte. Queríamos… uma Universidade nova! Aquela que (e agora cito o nosso Guião) "sugere e apela à constante imaginação e inovação". E tivemo-la. De acordo com o Prof. Fraústo da Silva (1º Reitor), o Prof. Nicolau van Uden encarregou-me de planear o grupo de disciplinas de genética molecular.

Agora sim. Em 5 disciplinas, com mais uma ou outra de opção, era perfeitamente concebível estruturar o desenvolvimento sistemático e gradual da genética molecular, passando pela informatividade das moléculas auto-perpetuantes, auto-perpetuação de moléculas informativas, transferências génicas, alterações mutacionais, sistemas recombinatórios, reestruturação artificial de genomas, terapia génica somática ou germinativa, engenharia genética, e por aí fora. 

 Em 1982 regi pela primeira vez a biologia molecular. Hermínia de Lencastre tinha-se doutorado no ano anterior (quando a Faculdade de Ciências e Tecnologia ainda funcionava nos Olivais) e, nos anos seguintes, vários doutoramentos se seguiram, preparados uns no Instituto Gulbenkian de Ciência orientados pela Prof. Doutora Hermínia de Lencastre ou por mim, e muitos outros na Faculdade de Ciências Médicas, magistralmente orientados pelo Prof. Doutor José Rueff, nosso valioso amigo desde sempre.

As possibilidades de futuro são cada vez maiores. A desmontagem química e molecular da vida – na sua origem, natureza, reprodução e evolução – chegou a tal pormenor e exactidão que permitiu passar da desmontagem à remontagem, da ciência-análise da vida à ciência-construção de novas formas de vida.

Tornou-se possível sintetizar genes (humanos ou não) por pura química orgânica total (na ausência de seres vivos) e introduzi-los depois num organismo, verificando-se que eles aí funcionam e se perpetuam.

Deste modo se conseguiram, e já estão comercializadas, bactérias que produzem, em condições altamente económicas, várias hormonas e outros compostos humanos de enorme interesse terapêutico e comercial.

Pela análise completa do genoma humano, é agora possível caracterizar na sua raiz muitas doenças e eventualmente tratá-las, predizer algumas enfermidades futuras e introduzir, no próprio homem, genes que o curam de certas enfermidades (terapia génica) ou silenciam genes mórbidos.

É o início de uma nova forma de fazer biologia humana. É entender o Homem na memória do seu passado evolutivo, na raiz da sua doença presente, assim como na previsão e invenção do seu futuro.

Surge a farmacogenética e a farmacogenómica buscando medicamentos personalizados e mais eficazes. Surgem as células estaminais (não só de embriões mas também de órgãos do adulto) que, devidamente desenvolvidas, podem originar células e tecidos de enorme interesse terapêutico por transplantação.

 A tecnociência introduz, assim, uma verdadeira revolução na medicina, com enormes benefícios para a saúde e para a longevidade.

Mas para lá da terapia, surge a ambição do melhoramento da condição  humana.

É possível, pela tecnociência, sintetizar genes diferentes dos naturais e transformar geneticamente plantas ou animais, que passam a ter novas características, de acordo com interesses da agricultura e da pecuária. 

 E na espécie humana, já existem protocolos de engenharia genética de melhoramento para produzir indivíduos com maior capacidade de memória, ou estatura aumentada, ou maior força muscular (para o caso de atletas), ou super-resistência a uma toxina (no caso de trabalhadores que a ela estão continuamente expostos), e muitos outros.

Quando esta engenharia genética de melhoramento se puder realizar, um dia, sem perigos, em células da linha germinativa, essas novas características transmitir-se-ão às gerações seguintes.

 Abre-se, deste modo, a possibilidade de uma programação deliberada do futuro da nossa espécie. O homem, além de objecto da evolução, passa a ser também sujeito. Além de produto, pretende ser agente do seu destino evolutivo.

Já não se trata de entender a linguagem da vida mas de a falar, de a soletrar no nosso discurso e de assumir a sua magia na nossa criatividade.

O objectivo da ciência, que era o conhecimento da verdade, é substituído pelo objectivo da tecnociência que é a operacionalidade. As ciências da natureza dão lugar às ciências do artificial. E a desmitificação científica dá lugar à remitificação técnica.

Mas o novo mito é essencialmente diferente do antigo. Não é simbólico, mas técnico. E porque, assim, nos toca e entra na nossa pele, traz-nos a ambivalência da sedução e do pânico.

A tecnociência ocupa hoje um lugar de liderança e um papel de crescente importância no progresso das sociedades. Do alto da escarpa que escalou, o tecnocientista espreita sobre a cidade culta dos homens, segurando já, nas mãos, os fios mágicos que controlam a alta finança, a saúde, a comunicação social, o desenvolvimento industrial, o pensamento e a ética. A tecnociência tornou-se operacional e necessária para o progresso das civilizações

As tecnociências biológicas já modificaram a imagem que o homem tinha da sua própria natureza, da sua origem, das suas relações inter-pessoais, inter-raciais e com os outros seres vivos. Elas estão a ganhar o controlo da reprodução humana, do comportamento psíquico e da doença. Começam a ensinar o homem a dominar a Terra, de um modo não perigosamente despótico mas sabiamente diplomático.

As tecnociências da vida estão a tornar-se responsáveis por um novo tipo de cultura e de sociedade.

Todas estas e muitas outras possibilidades têm amplo cabimento nas 5 ou 6 disciplinas de genética molecular existentes no Departamento de Ciências da Vida da nossa Faculdade. Este Departamento foi construível devido à boa vontade e espírito de colaboração de muitos, mas especialmente devido à brilhante actuação de quem, infelizmente, já não está entre nós – a Prof. Doutora Isabel Spencer Martins, sendo também da sua iniciativa a proposta deste Doutoramento honoris causa.

Termino agradecendo à Universidade Nova de Lisboa, na pessoa do seu magnífico Reitor, Prof. Doutor António Rendas, a alta distinção que me conferiu.

Agradeço igualmente ao Conselho Geral da nossa Universidade, na pessoa do seu Presidente, Prof. Doutor Eduardo de Arantes e Oliveira, que sendo também Presidente da Academia das Ciências de Lisboa, teve a gentileza de modificar o programa da Academia em benefício deste doutoramento honoris causa.

  À Faculdade de Ciências e Tecnologia, agradeço na pessoa do seu ilustre Director, Prof. Doutor Fernando Santana, que tanto me honrou e ajudou ao ser padrinho deste meu doutoramento, assim como ao Conselho Científico da Faculdade presidido pelo Prof. Doutor João Paulo Goulão Crespo.

Agradeço as palavras tão generosas e elegantes e com que me caracterizou o Prof. Doutor António Janeiro Borges, decano da Faculdade de Ciências e Tecnologia e da Universidade Nova de Lisboa.  

Agradeço ao Departamento de Ciências da Vida, na pessoa da sua Presidente Prof. Doutora Isabel Sá Nogueira, ter submetido a proposta deste doutoramento honoris causa.

Muito especialmente agradeço ao Coro da Universidade e a todas as estruturas da Reitoria que organizaram esta sessão, a incansável simpatia com que deram todo o encanto a esta tarde.   

Muitas outras individualidades deviam também receber o meu reconhecimento, algumas aqui presentes, outras tão distantes como os longos anos da minha vida. Todas foram, em noites escuras doutros tempos, estrelas poderosas que me foram transmitindo, uma a uma, o brilho forte da esperança.

E termino, Magnífico Reitor, como comecei – com humilde perplexidade e com profunda emoção. Humilde perplexidade de mim próprio e dos meus limites. Profunda emoção pelo esplendor deste Templo de Sabedoria em que se tornou a Universidade Nova de Lisboa, a que reconhecidamente agradeço.

 

MUITO OBRIGADO!

 

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