Relação analisada por D. José Policarpo, na homilia da Vigília Pascal, negando contradições entre as duas “teorias” “A longa Vigília da Vida” 1. Preparar a celebração dos grandes mistérios cristãos em vigília de oração, é experiência espontânea da Igreja, ao longo dos séculos. A vigília significa a consciência da Igreja de que só em oração, escutando a Palavra de Deus, ela pode penetrar no segredo do mistério que celebra, assumindo-se como povo peregrino, alimentada pela promessa que a abre para um futuro novo, aceitando a dureza da longa caminhada da nossa resposta à salvação. Em Cristo ressuscitado, a Igreja vê o mistério da Palavra criadora e a plenitude da Criação. Ele é, verdadeiramente, o ponto de chegada da longa vigília da vida, que envolve o universo, a terra e o céu, todos os seres vivos; no dizer do P. Teillard de Chardin, Ele é o ponto ómega de toda a evolução. Cristo ressuscitado só pode ser celebrado pela comunidade dos que acreditam n’Ele e vivem d’Ele. Mas Ele abarca na sua plenitude de vida, não só toda a humanidade, mas toda a criação, todos os seres vivos. É por isso que esta vigília que evoca a longa caminhada da vida, ao ritmo da Palavra criadora, começa pela narração da Criação: no princípio criou Deus o Céu e a Terra. Houve um princípio, a criação não é eterna, eterno só Deus o é e a Sua Palavra criadora. Na busca da compreensão desta longa caminhada da vida sempre convergiram as religiões, as filosofias e diversas sabedorias e, mais recentemente, a ciência. Todos eles, sábios, teólogos, filósofos e cientistas percorrem este longo caminho, vivem a vigília. Mas nós sabemos que o sentido radical e definitivo está em Cristo ressuscitado. O Concílio Vaticano II lembrou-no-lo: só em Cristo se penetra no mistério do homem. 2. Nesta busca da compreensão do universo e da vida, a ciência adquiriu, nos últimos tempos, uma importância particular, também ela caindo, por vezes, na ousadia de pretender desvendar o sentido definitivo. Neste campo da ciência, estamos, este ano, a celebrar os 150 anos da publicação, por Charles Darwin, do Livro “A Origem das Espécies”, apresentando a perspectiva evolutiva da origem da vida, incluindo a vida humana. Isso significou uma inovação profunda na compreensão da própria ciência, acabando por repercutir a sua perspectiva na filosofia, na política enquanto compreensão da sociedade, na teologia e na compreensão cristã da origem do mundo, muito fundada neste texto do Génesis, a narração da Criação. Nada escapou e ninguém ficou isento a esta explicação revolucionária da origem da vida e do seu processo evolutivo e, 150 anos depois, o debate continua vivo. Durante este debate, aberto por Darwin, foram frequentemente postos em questão pontos fundamentais da compreensão cristã da criação: se Deus criador não está na origem da vida e se a natureza não é obra de um criador, para compreender a natureza, incluindo a humana, não precisamos da Bíblia, mas da ciência; Deus é inútil e, portanto, inexistente; o drama da humanidade não tem origem na culpa original do primeiro homem e mulher, mas na violência do processo de selecção natural das espécies e, portanto, não há lugar para um redentor. Se alguns pensam que o acaso que preside à mutação não permite definir nenhum futuro, outros, como o próprio Darwin, admitem que a evolução tem um sentido positivo em ordem a etapas cada vez mais perfeitas. Contudo, segundo ele, as forças que as geram não podem ser procuradas fora da natureza, anulando a perspectiva da intervenção de Deus no processo, sobretudo na realização do homem. A revolução darwiniana gerou, em alguns, um positivismo científico, que levou ao agnosticismo e mesmo ao ateísmo, excluindo de qualquer modo a contínua intervenção de Deus nesta longa caminhada da vida. 3. A narração bíblica da Criação foi, assim, radicalmente posta em questão. Mas tanto os darwinistas como a maneira católica de lhe responder, partiram de uma leitura do texto bíblico, não querida pelo seu autor nem legitimada pela comunidade para quem foi escrito. É um texto simbólico, num género literário hoje conhecido e estudado; é uma revelação do sentido profundo da criação e da vida e não a narração do modo como as coisas aconteceram, perspectiva própria da ciência. O Deus da narração do Génesis não é um deus artífice, fazedor do cosmos, arquitecto supremo que planeia e executa um projecto. É o Deus da história da salvação, a sua potência criadora é a força da Palavra eterna, o dinamismo do seu amor redentor. São João, no início do seu Evangelho, exprime-o bem: “No princípio era o Verbo, o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus” (Jo. 1,1). É este Verbo eterno que se exprime na Palavra revelada da Escritura, desvendando o sentido da criação: a Palavra eterna está no início da vida e preside ao seu acontecer; o homem é a plenitude da criação e o seu sentido último; ele, conduzido pela Palavra, partilha com Deus a responsabilidade de a completar: toda a criação é louvor de Deus, dimensão simbolizada no ritmo da semana litúrgica de Israel, em que o sábado é o dia do repouso, da adoração e da contemplação. Responder a Darwin a partir de uma leitura do texto do Génesis, interpretado como descrição factual do modo como as coisas aconteceram, é confirmar a leitura que ele fez do texto bíblico. Enfermaram dessa deficiente leitura, não só muitas respostas da teologia católica ao longo destes 150 anos, mas também muitos dos actuais movimentos chamados criacionistas. 4. Apesar das já referidas dificuldades que a teoria de Darwin pôs à compreensão cristã da origem da vida e do universo, a Igreja não a pode recusar liminarmente. Nem parece suficiente distinguir os campos da ciência e da fé, aprofundada pela Teologia, como universos tão diferentes, que não se encontram. A Igreja não pode abdicar de um diálogo com a ciência e de uma possível convergência na busca da verdade. Por outro lado, a perspectiva científica de Darwin levantou questões cruciais, a que a Igreja não pode ser indiferente na sua compreensão da realidade. A primeira é a compreensão do tempo. Este deixou de ser entendido segundo o princípio da circularidade, de um eterno retorno, em que tudo o que aconteceu voltará a acontecer, característica da visão clássica do tempo. Este é um longo espaço, em que o princípio e o fim estão envolvidos em mistério, porque deles só podemos dizer que no princípio e no fim está a Palavra, o Verbo da vida, cujo rosto conhecemos em Jesus Cristo. Nesse longo espaço de milhões ou biliões de anos, aconteceu a longa caminhada da vida. É um tempo sem retorno, abertura a um futuro incerto, na perspectiva evolucionista; mas na perspectiva bíblica ele é alimentado pela promessa de “novos céus e nova terra”, já iniciados em Jesus Cristo. Temos de reconhecer que a compreensão do tempo que a teoria de Darwin nos sugere é mais compatível com a visão bíblica do tempo do que a sua compreensão como eterno retorno, que durante séculos marcou a própria filosofia cristã. A outra dimensão decisiva que Darwin sublinhou na perspectiva científica e filosófica, é a perspectiva da história. A teoria da evolução situa-se no campo da história; é uma história da vida e da sua evolução, servindo-se de uma metodologia própria da história: estudar e comparar os fosseis encontrados e daí concluir a evolução. Ele alarga o horizonte da história para uma fase muito prévia ao surgimento do homem, mas que tem a ver com o homem que aparece no termo desse processo evolutivo, numa grande unidade com toda a natureza, mas afirmando a sua diferença. Esta diferença tem sido difícil de definir e de situar no processo científico; exprime-se na liberdade e na responsabilidade, na capacidade de compreender o seu dinamismo. E desta capacidade, que marca a diferença, a própria ciência é um testemunho. A compreensão do universo, da vida e do homem, deixam de ser apenas especulação metafísica para se tornarem compreensão do acontecer histórico. A própria Bíblia começa por se referir à criação porque a insere na história, a primeira página de uma história de salvação. O Deus da Bíblia é um Deus amor, a intervir na história, a fazer Aliança, a estar sempre silenciosamente presente em todo o longo acontecer da vida. E a única coisa que nos é dito é que, desde o início, essa presença de Deus é a força criadora da Palavra, que, em Jesus Cristo, rosto humano da Palavra, se revela como força de amor. 5. Estamos a celebrar a Páscoa, esta longa passagem, que começa em Deus e nos levará a Deus, na longa vigília da vida. É essa longa vigília que celebramos esta noite. A Liturgia convida-nos a olhar para a ressurreição de Cristo como o termo desse decisivo acontecer da vida. Ele é a “plenitude do tempo”, num tempo que ainda não atingiu o seu termo, a não ser n’Ele. Em Cristo ressuscitado, todo o tempo adquire o sentido definitivo. Estamos em vigília com a certeza da fé: em toda a evolução do tempo e da história, é a Palavra eterna de Deus que marca o ritmo da vida. Ritmo criador, ensina-nos a fazer a unidade entre a história humana e a restante criação; ritmo redentor, leva-nos a acompanhar a aventura da Palavra, numa longa história de salvação. É porque toda ela foi conduzida pela Palavra, pronunciada de muitos modos, que podemos identificar na Palavra definitiva de Deus, Jesus Cristo, a plenitude dessa mesma história. Começámos esta celebração afirmando: “Cristo, ontem e hoje, princípio e fim, alfa e ómega, a Ele pertence o tempo e a eternidade”. É que Ele é essa Palavra eterna, sempre presente, no mistério da sua maneira de actuar, no longo processo do acontecer da vida e que sempre que se revelou, se manifestou como Palavra de amor. Ao celebrarmos a Ressurreição de Cristo nós acreditamos que Ele é o ponto de chegada de todo o processo da vida e da história, e que introduz no tempo a promessa sólida de um futuro glorioso. Teillard de Chardin disse bem ao afirmar que Cristo é o ponto ómega da evolução. Perceber que todo o ritmo da vida converge para Ele, é compreender o sentido das Escrituras e o ritmo do tempo e da história. Sé Patriarcal, 11 de Abril de 2009 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca