Homilia do Cardeal-Patriarca na Missa de Abertura do Ano Judicial

«A visão bíblica da Justiça» 1. Neste ano toda a Igreja está mobilizada pelo tema da importância da Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Este foi o tema em estudo no último Sínodo convocado pelo Papa Bento XVI. Por outro lado a celebração dos 2000 anos do nascimento do Apóstolo Paulo, convida-nos a descobrir a riqueza dos seus escritos, ele que é, sem dúvida, um dos alicerces da compreensão do Cristianismo. Desta dupla circunstância surge o convite a descobrir que a compreensão cristã das realidades humanas enraíza na Palavra de Deus. E, portanto, também a justiça. Foi por isso que decidi, nesta celebração por ocasião da Abertura do Ano Judicial, falar-vos da dimensão bíblica da justiça. É um tema abrangente, que atravessa toda a Sagrada Escritura, que toca na verdade fundamental do homem e da comunidade, segundo a verdade da criação, fundamento da lei natural, e do desígnio de Deus acerca do homem, a verdade da revelação. Esta aponta para um ideal de vida que quando se atinge, o homem pode ser declarado justo, isto é, justificado, o que só é possível com a acção de Deus em nós e na história, a que aderimos na fé. Assim o tema da justiça tem a ver com a plena realização humana e toca outros temas como a fé e a obediência, a fidelidade, a sabedoria e a misericórdia. 2. O conceito de justiça tem, na compreensão bíblica, alguns pressupostos dificilmente transponíveis para o quadro judicial de aplicação da justiça como o conhecemos nas sociedades democráticas contemporâneas, mas guarda a sua capacidade de as interpelar. * Antes de mais é um conceito de justiça numa sociedade que acredita em Deus, de cuja vontade depende o ideal de perfeição humana e que inter-age na história, ajudando os crentes a realizar esse ideal de vida. Justo é aquele que o vive. Só Deus na Sua sabedoria o pode declarar justo, ou seja, o pode julgar. Por isso o “justo” é o “santo”, o homem perfeito. Mas perfeitamente “justo” só Jesus Cristo o é, Aquele cuja vida realizou plenamente o ideal divino. Por isso n’Ele se reflecte a justiça de Deus. * O segundo pressuposto é a natureza da Lei. Se é Deus que define, na Sua sabedoria, o ideal de perfeição humana a atingir, a Lei que revela ao Seu Povo é um caminho para construir esse ideal. Segui-la é caminhar na Vida; abandoná-la é afastar-se da Vida. A Lei não é só proibitiva. É proposta de vida, indica um caminho, supõe um ideal de vida a atingir. É assim com a Lei dada a Moisés, será assim com a nova Lei proposta por Jesus Cristo, o Evangelho do Reino, que tem a sua expressão mais solene nas bem-aventuranças, no Sermão da Montanha. * O terceiro pressuposto é a interpenetração da ordem judicial com a ordem moral. A perspectiva judicial existe na Sagrada Escritura. Trata-se de um Povo e é preciso administrar a justiça, ou seja, proclamar o que é justo, ver onde se realiza a justiça. Já no tempo em que o Povo era nómada no deserto, surgem regras sobre a aplicação da justiça. “Não falsearás os direitos do pobre no seu processo. Manter-te-ás à margem de uma causa enganadora; não farás perecer o inocente e o justo e não absolverás o culpado. Não aceitarás presentes, porque os presentes cegam as pessoas clarividentes, arruínam as causas dos justos” (Deut. 23,6-7). Mas a dimensão moral é mais envolvente, é positiva, diz respeito ao recto caminho a seguir, tem em conta a pessoa na sua verdade interior, mobiliza para um ideal de perfeição desejada por Deus. Mesmo quando a Bíblia refere uma ordem judicial, a perspectiva moral prevalece. Está atenta ao caminho positivo e à fidelidade, procura salvar a justiça, isto é, não permite que o justo seja considerado injusto, que o inocente seja condenado. Aplicar a justiça é, na sua dimensão mais nobre, “justificar” o inocente, tornar clara, para ele, a justiça. É função da justiça pôr a claro a rectidão da vida do justo, sobretudo dos pobres, dos estrangeiros, de todos os oprimidos. Daí a ideia de que os que recorrem à justiça são os inocentes indevidamente acusados, para que seja restabelecida a sua inocência. O ponto máximo desta perspectiva verifica-se no processo que condenou Jesus Cristo, em que não se praticou a justiça, porque não se pôs a claro a Sua inocência, ou seja, a plenitude de justiça que a Sua vida era. Nesta perspectiva, é função da justiça pôr a claro o que é recto no homem. Justiça para os homens e justiça para Deus 3. A justiça, segundo a Sagrada Escritura, é também reconhecer a justiça de Deus. É que ninguém é “justo”, ou seja, com uma vida vivida segundo o ideal proposto pela Palavra de Deus, sem a ajuda do próprio Deus. É Ele quem realiza em nós a justiça, o que torna a fé enquanto abandono confiante à acção e à vontade de Deus, uma componente da justiça. Embora seja nos Profetas e no Novo Testamento, sobretudo em São Paulo, que esta dimensão adquire uma centralidade decisiva, ela aparece-nos já no Génesis, aplicada à figura de Abraão: “Abraão acreditou em Deus, e essa fé foi contada como justiça” (Gen. 15,6). São Paulo partirá deste texto e desta atitude de Abraão para desenvolver o verdadeiro processo cristão de “justificação”, isto é, o de ser declarado justo. Não é o resultado das nossas obras, ou seja, do nosso mérito humano, que será suficiente para sermos declarados justos. O “justo” é aquele que acredita (cf. Rom. 3,21 a 4,6). Não se trata de relativizar o discernimento sobre a realidade humana; é antes a consciência de que sem a força de Jesus Cristo não seremos o homem recto, justo, santo, que nós desejamos e Ele deseja. Declarar a justiça é a afirmação clara desta contribuição de Deus, por Jesus Cristo, para a nossa “justiça”. No Antigo Testamento, depois da clareza da Lei de Moisés, desenvolve-se a perspectiva judicial. Uma vez que Deus nos deu uma lei, basta cumpri-la para ser considerado “justo”, e isso eu posso fazê-lo com a minha liberdade. A declaração da justiça torna-se, inevitavelmente, uma análise do cumprimento da Lei. Mesmo no fim da vida ou no fim dos tempos, o último juízo será de Deus e o chamado “juízo final” foi imaginado e figurado como um processo judicial de análise das boas e más obras. Embora Jesus tenha ensinado que, nesse momento, só conta o amor que se amou e como se amou, o modelo do julgamento transpôs-se para a cultura e para as figurações plásticas e artísticas. Mas é, sobretudo, a escola farisaica que tira à declaração da justiça este reconhecimento da acção de Deus no homem. O justo é aquele que cumpre a Lei, a justiça é a declaração do seu mérito. O homem justifica-se pelo cumprimento da Lei. Assim, anula-se completamente a dimensão de misericórdia, essencial na concepção bíblica da justiça. Já os Profetas tinham denunciado esse optimismo humano na declaração do justo, pondo na boca de Deus estas palavras: eu quero a misericórdia e não os sacrifícios previstos na Lei. Na pregação de Jesus, os discursos mais veementes na defesa da verdadeira justiça são a denúncia dura do farisaísmo. Ninguém se pode considerar justo sem reconhecer a acção de Deus. Esse é o cerne da Sua pregação sobre o Reino de Deus. Esta questão torna-se central na discussão entre Paulo e os cristãos que vêem do farisaísmo, donde ele próprio veio. Na compreensão da vida cristã, é a fé em Jesus Cristo, o abandono à sua acção em nós, que nos pode justificar e não o cumprimento da Lei. Na justiça cristã acresce que nós podemos ser justificados, isto é, declarados justos, ainda na nossa existência pecadora, se deixarmos que Deus vença o pecado em nós. E nesse caso, a justiça é inseparável da misericórdia, pois sem ela ninguém pode ser declarado justo neste mundo. Não é que as obras não contem para a declaração da justiça. O cristão deve praticar as “obras da fé”, isto é, agir segundo as exigências da identificação com Cristo e do seguimento de Jesus Cristo. Mas é a misericórdia e não o nosso mérito que permite que sejamos declarados justos e a esse respeito o único juízo verdadeiro é de Deus. Interpelação que a dimensão bíblica pode lançar às concepções humanas de justiça 4. Continua a não ser tarefa fácil a integração da dimensão religiosa na aplicação humana da justiça. Todos estamos de acordo que a identificação entre lei religiosa e lei civil não serve para as sociedades democráticas. Mas no quadro actual é cada vez mais difícil ignorar a dimensão religiosa, não tanto na ordem judicial, mas sobretudo na ordem moral. É um desafio que o futuro porá a todos nós. Ressalta desta visão bíblica a qualidade antropológica das leis, que devem propor um ideal de humanidade, pessoal e comunitário. A Lei é o rosto público do ideal humano que queremos construir colectivamente. Penso que somos todos sensíveis à interpelação que nos deixa a visão bíblica da justiça, segundo a qual o objectivo primeiro da justiça é declarar a inocência do acusado. Isso está claramente afirmado na “presunção de inocência”. Mas mesmo quando não pode “justificar”, isto é, declarar a inocência, a justiça humana deve olhar para o conjunto da pessoa e do culpado. É difícil conceber uma pessoa que se identifique com a sua culpa. Um sistema penal que seja só castigo e não tenha no seu dinamismo a recuperação humana dos condenados, o mínimo que se pode dizer dele é que está desactualizado. Mas isso só é possível se olharmos para a pessoa no conjunto das suas potencialidades. Não podemos exigir que se pratique formalmente a justiça para com Deus, mas nós os crentes sabemos que qualquer recuperação é redenção e que a força do Espírito de Deus é real, mesmo para nos ajudar a julgar. Sé Patriarcal, 27 de Janeiro de 2009 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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