Padre José Alves, Congregação da Missão
Estamos em vésperas de Natal. Dentro do que me propus, nada mais adequado do que refletir sobre “São Vicente de Paulo e o Mistério da Encarnação”.
Obviamente que este mistério é parte integrante e constitui a grande novidade da fé cristã. Através dele realizam-se as profecias antigas: “Deus está no meio de nós para salvar”; Ele é o “Deus connosco”. E a Comunidade cristã exprime-o admirável e incontestavelmente nos escritos neotestamentários, nos escritos dos primeiros Padres da Igreja e na formulação de Niceia: “por causa de nós homens e da nossa Salvação…”. Ao longo dos séculos, exprimiu-se esta fé não só através das reflexões teológicas, mas também através de devoções populares: o presépio, a via sacra, a representação do crucificado, as procissões da paixão…
No séc. XVII, nasce um movimento, profundamente Cristocêntrico, com Pedro Bérulle, João Jacques Olier, São Vicente de Paulo, São João Eudes e outros (1), que desencadeou, em França, uma onda reformadora e a que mais tarde (1920) se deu o nome de «Escola Francesa de Espiritualidade». Consiste em criar e desenvolver uma consciência profunda da grandeza de Deus, que manifesta toda a força do Seu amor na Encarnação do Seu Filho (o Verbo encarnado); desenvolve-se e prolonga-se na Igreja através de um intenso trabalho apostólico que torna presente este mistério de Encarnação em cada tempo e em cada lugar através do ministério sacerdotal. Daí resulta uma grande preocupação pela formação sacerdotal e a contemplação do Verbo Encarnado.
São Vicente de Paulo, profundamente imbuído desta espiritualidade que faz do Verbo encarnado centro de reflexão e de contemplação dos cristãos, tem uma maneira muito própria de a expressar partindo sobretudo do capítulo XXV do Evangelho de São Mateus: “tive fome, tive sede, estava preso… e me fostes visitar e me prestaste assistência… todas as vezes que o fizestes ou deixastes de fazer a um destes irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes”. Para o Pe. Vicente de Paulo, Cristo encarna no pobre, no necessitado. Para ele, Pe. Vicente, não há dúvidas: Jesus Cristo está no pobre; o pobre é Jesus Cristo. A quem lhe exprimia alguma repugnância por ter que contactar com a miséria humana e social da pobreza, respondia: “Voltai a medalha e descobrireis, à luz da fé que o Filho de Deus, abraçando a pobreza, nos é representado pelos pobres… Oh Deus! Que beleza nos faz descobrir nos pobres se os considerarmos em Deus e na estima que Jesus manifestou por eles!” (Coste, XI, 32).
Às Filhas da Caridade exprimia esta mesma identificação de Cristo com o pobre quando lhes dizia: “o vosso principal trabalho, depois do amor de Deus e de vos tornardes agradáveis à Sua Divina Majestade, é servir os pobres enfermos com muita doçura e cordialidade, compadecendo-vos dos seus males e escutando as suas pequenas queixas… Vós representais a bondade de Deus para estes pobres doentes… eles são os vossos senhores e também os meus… Isto obriga-vos a servi-los com respeito, como vossos senhores, e com devoção porque representam, para vós, a pessoa de nosso Senhor”.
E para que não restassem dúvidas, noutra ocasião insistia: “É possível que tenhais de ir uma e outra vez visitar o pobre. Todas as vezes que lá fordes encontrareis Cristo nesse mesmo pobre”. E a quem lhe manifestava alguma reserva face às chamadas urgentes, mas inoportunas, porque levavam a interromper a oração, o Pe. Vicente não tinha problema em estabelecer a prioridade: “é deixar Deus (na oração) por Deus (no pobre)”.
É interessante ver a evolução de um Cristo contemplado à maneira de Pedro Bérulle, e que se pode notar numa carta escrita em 1635 – “Lembrai-vos, Padre, que nós vivemos em Jesus Cristo pela morte de Jesus Cristo, e de que havemos de morrer em Jesus Cristo pela vida de Jesus Cristo e que a nossa vida deve estar escondida em Jesus Cristo e cheia de Jesus Cristo e de que para morrer como Jesus Cristo, é preciso viver como Jesus Cristo” (Coste, I, 295) – para um Cristo inspirador de trabalho, de dedicação, de serviço e de amor à humanidade através do anúncio do amor do Pai de que Ele era o concretizador: “Durante três anos, Ele não fez outra coisa senão pregar tanto no templo como nas aldeias, sem parar, para converter toda a humanidade e ganhar as almas para Deus seu Pai… Ganhar cada um a sua vida deste modo, sem perda de tempo, é ganhá-la como nosso Senhor a ganhava” (Coste, IX, 491-492).
E insiste em que os membros da sua Congregação não têm outro modelo inspirador senão o de Nosso Senhor, enviado pelo Pai a anunciar a Boa Nova libertadora: “A nossa finalidade é trabalhar pela salvação dos pobres à imitação de Nosso Senhor Jesus Cristo, o único e verdadeiro Redentor e a quem corresponde o amável nome de JESUS, que quer dizer SALVADOR… Durante a Sua vida terrena, o seu único pensamento e preocupação era a salvação dos homens; e continua ainda com os mesmos sentimentos porque é nisso que Ele encontra a vontade do Pai” (Abelly, III, 89-90).
Estes textos revelam-nos uma total identificação com Cristo que continua o Seu mistério de Encarnação na Comunidade dos seus discípulos enviada, em Missão, à humanidade de ontem e de hoje com o propósito de dignificar, de salvar; revelam igualmente a urgência da missão que não se compadece com contemporização seja de que espécie for; revelam-nos também o segredo da “frescura pastoral” que, aos 79 anos, ainda tentava descobrir os processos mais adequados de anunciar Jesus Cristo.
Pe. José Alves, CM
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(1) Grandes reformadores do séc. XVII, quanto à doutrina, à disciplina eclesiástica, criadores de Seminários: Bérulle, funda os Oratorianos; Olier, os Sulpicianos; São Vicente de Paulo, a Congregação da Missão ou Lazaristas; São João Eudes, os Eudistas. Todos eles se vão encarregar de fundar Seminários Diocesanos. Estas fundações, cada uma ao seu estilo, vão marcar o tipo de presbítero e de pastor até ao séc. XX.