Luís Silva, Diocese de Aveiro
(Caríssimo leitor, antes de iniciar a leitura deste artigo, solicito-lhe que verifique a sua respiração. Dê-se conta de que respira.
Assegurado dessa condição, pode, então, prosseguir, lendo esta reflexão…)
A modernidade, particularmente após a convicção cartesiana de que precisamos de nos certificar, em cada momento, da verdade das nossas convicções, gerou na humanidade uma atitude de desconfiança constante.
Para mais, Descartes, não satisfeito com essa pretensa segurança, deslocou a fonte da certeza e da confiança para o sujeito individualmente considerado e solipsisticamente isolado.
O filósofo francês lançou, de uma assentada, um duplo envenenamento na estrutura mais basilar da condição humana: gerou-lhe, por um lado, uma condição, não de dúvida metódica, como dizia pretender, mas de dúvida sistemática, e, por outro, convenceu-nos de que a sua resolução só poderia operar-se rompendo os laços com os demais.
Ficou o sujeito isolado, na sua dúvida e busca de certezas.
(Caríssimo leitor, recordo que deverá assegurar-se das boas condições respiratórias. Inspire… Expire…
Verificadas as condições, prossiga com a leitura.)
Sobrou uma solidão suicida, em que os outros se afiguram como estorvo e impedimento. Se a dúvida só se resolve na busca interna de ideias claras e distintas, o outro, diante de mim, para além de poder ser nada mais do que uma projeção, é dispensável e, no limite, um autêntico obstáculo à minha busca de me realizar, sendo, no dizer de Sartre, muitos séculos depois, um inferno (‘o inferno são os outros’, concluía…).
Os esforços por resolver este nó górdio que herdámos de René Descartes têm falhado, muito provavelmente porque se propõem desfazê-lo mantendo a convicção mais estruturante do pensamento cartesiano. Quem procura desfazer o nó mantém-se convicto de que o pensamento humano só é seguro se for cético, se partir, a cada momento, da estaca zero, sem nada pressupor como merecedor de confiança.
(Meu bom amigo leitor, não avance sem voltar a verificar que respira. Inspire… Expire…
Agora, avance…)
Um tal quadro promoveu a convicção societária de que a autêntica convivência entre os humanos só poderia garantir-se, já não assente em pressupostos tomados como seguros e universalmente aceitáveis, mas sobre uma neutralidade a-histórica considerada a única condição possível para que sujeitos isolados pudessem entender-se, pois de nenhum se pressupõe o que quer que seja.
O corolário deste processo está diante de todos.
Vivemos em sociedades em que nem a história pessoal de cada indivíduo, mesmo quando acompanhado pelos seus progenitores que o viram nascer (menino ou menina), mas que desconhecem em que ‘ideias claras e distintas’ vai assentar a sua vida, pode ser tomada como pressuposta ou confiável. O sujeito, isolado e solitário, é que tem o poder de dizer que identidade o define. Os outros não lhe podem aceder, oculto que está no seu pensamento fechado e hermeticamente enclausurado.
(Amigo leitor, faça uma última verificação da sua respiração. Inspire… Expire…
Pode avançar…)
O percurso, presumível desde o início, pois as sementes permitiam vislumbrar a natureza da árvore que delas brotaria, deveria ser suficiente para que as sociedades devessem ter há muito abandonado os pressupostos cartesianos aqui enunciados.
Nenhum ser humano se estrutura, saudavelmente, sobre os pressupostos em que Descartes fez assentar a (sua) modernidade.
Uma outra modernidade deveria tê-la suplantado, imediatamente.
Uma outra assente sobre a ‘ideia clara e distinta’ – sim! – de que a primeira certeza que temos é a da existência dos outros. Eles estão aí, diante de nós, e é deles que herdamos todas as sementes que, em nós, germinarão com os traços que lhes acrescentaremos, com o avançar da nossa existência.
Herdamos deles a biologia, a nossa base psicológica, a descoberta do ‘tu’ diante do qual nos tornamos ‘eu’, a língua, a cultura, etc.
Herdamos e é diante da herança que nos diferençamos e não, como Descartes pressupõe, somos uma tábua rasa em que, posteriormente, se ‘colam’ os elementos vindos do exterior.
Nós somos nó de encontros e, nesse pressuposto, distinguimo-nos, num segundo momento (num movimento de exteriorização).
O primeiro momento não é, por isso, o da reflexão ‘clara e distinta’. O primeiro momento é o do assentimento, o da anuência, o do acolhimento do que recebemos e diante do qual, num segundo momento, nos distinguimos.
Uma sociedade assim, uma sociedade do assentimento, é uma sociedade baseada na confiança, ao invés da sociedade cartesiana, estruturada sobre a desconfiança e a dúvida sistemática.
Como defendi, já há algum tempo, urge inverter a ‘dúvida metódica’ para um registo de ‘confiança metódica’, o assentimento que pressupõe que o outro não só não é um inferno, como é, inclusive, a condição de possibilidade de existirmos.
Sem o outro, diante do qual nos tornamos ‘eu’, jamais emergiria a consciência de nós mesmos.
Esse assentimento não é, porém, fruto de uma reflexão discursiva, racional, mas é meta-racional, anterior à própria racionalidade.
É, aliás, semelhante ao que acontece, biologicamente, com cada ser humano.
Não estamos, permanentemente, a verificar a nossa respiração (como ‘teimosamente’, fui solicitando, ao longo deste texto). Só quando estamos doentes ou a precisar de reparar desvirtuações é que nos detemos no respirar. Que o digam os que, por doenças pulmonares, precisam de auxílio para este tão básico ato! Quanto desejam não ter de pensar no respirar!
Mas, sem ser por situação patológica, a nossa existência não precisa de estar a racionalizar o seu respirar. Pressupõe-no!
Dir-nos-á esta necessidade cartesiana de sempre pôr em causa os pressupostos, com tantos custos societários, que esta é, afinal, uma ‘modernidade’ doente?
Exigem-nos que sempre nos fixemos na ‘inspiração’ – ‘expiração’… Quando poderemos, afinal, viver como humanos?…
Quando aceitarmos que a vida se baseia num genuíno e ‘metódico’ assentimento
Respire fundo, caro leitor. Pode, finalmente, viver!
Luís Silva, Diocese de Aveiro