Homilia na Missa das Universidades, em Lisboa

«Sejam alegres» 1. Reforça-nos a esperança celebrarmos o início do ano académico em conjunto, na alegria de uma entrega ao Senhor das nossas vidas. Aceitemos a proposta da pastoral universitária para este ano: “sejam alegres, procurem a perfeição, animem-se uns aos outros”. E fixemos, hoje, a nossa atenção no primeiro apelo, ao qual queremos dedicar esta celebração: sejam alegres. O convite da segunda carta aos coríntios (13,11) corresponde a uma forma de viver a presença de Deus connosco e entre nós. Se o Deus do amor e da paz habita em nós gera esse efeito: a alegria. Do outro lado, da rejeição dos valores do Reino de Deus, da sua ausência resulta “choro e ranger de dentes”. Lembram-se do episódio do jovem rico: não foi capaz de se libertar, sentiu-se impedido de responder sim a Jesus, de aceitar a sua proposta exigente de felicidade e ficou triste. Sou dos que considero que Jesus inventou as imagens do Reino, que hoje narra o Evangelho, para responder a esta tristeza do jovem. Porque é que ele não tomou a decisão de seguir Jesus, de optar pelo seu estilo de vida? O contraponto do negociante é excelente para entendermos a tristeza do jovem. Se é tão difícil desprender-se de bens, como é que o negociante não hesita em vender tudo para adquirir o campo com tesouro escondido ou a pérola preciosa. A reacção a desprender-se de tudo enfraquece, as barreiras caem. A alegria de encontrar um tesouro no campo motiva o desejo imediato de possui-lo, arruma os obstáculos da ligação com os bens anteriores. O negociante bate aos pontos o jovem rico, triste na sua incapacidade de ser livre. O negociante vende tudo, liberta-se da posse, cheio de entusiasmo juvenil. A alegria de encontrar uma pérola preciosa provoca um estremecimento de júbilo, abre uma oportunidade. 2. Haverá motivos para a alegria, no mundo em que vivemos? As situações do mundo podem abater e atormentar. Será possível a alegria? Quando a pobreza aumenta, cresce a insegurança no futuro, se multiplicam agressões violentas, quando estamos ao lado de vidas infernizadas, quando a natureza sofre atentados? Como pode haver recreio quando outros sofrem; dança, quando tantos choram. Será acessível a alegria só a aristocratas do poder, a dominadores ou a gozadores do imediato, sôfregos da diversão? Divertimento, distracção e prazer são espaços para folgar e fugir da realidade. Conduzem à ressaca e não à alegria que ninguém pode tirar. A lição de Jesus é que só se pode ser feliz na liberdade. Só a libertação do que nos oprime, nos pesa, nos amarra, permite despontar a alegria. A alegria de ser livre é leve, tem asas, é verdadeira. Os mecanismos do receio e da inquietação prendem, a ousadia da liberdade afasta o medo. Meus caros, de facto, a liberdade das opções antecipa um futuro diferente, permite experimentar a tentativa de um novo estilo de vida, conduz a uma nova política, rasga espaço para a alegria. Todos os movimentos portadores de novidade iniciam por um punhado de pessoas que deixam de ter medo e reagem, assumem atitudes surpreendentes, rompem as angústias constrangedoras, superam as sinistras pressões. No jogo da graça de Deus quem perde ganha, salva-se quem estava perdido, os últimos serão os primeiros. 3. A rede da vida, também dos inscritos no Reino, apanha tudo, bom e mau, satisfações demasiado efémeras de gozo e alegrias fortes e duradouras. Muitas vezes a alienação fascina e impede o acesso à verdade da vida. Em todos os tempos, os ditadores promovem espectáculos desportivos e subvencionam vedetas de identificação. Como o centro da vida é o trabalho, as folgas são descarga. Em vez de trabalhar para melhorar a qualidade do tempo livre, isto é para viver mais livremente, as férias ou folgas destinam-se a render melhor no trabalho, a suportar melhor a escravatura. Ora, a alegria não é para os incapazes de sentirem a dor dos outros, para os que não se compadecem, não se afligem, se alienam e enganam, se esquecem dos males. A dimensão espiritual e contemplativa da vida não é válvula de escape para o sufoco e as agressões do dia-a-dia. O espaço de liberdade, criado no silêncio orante, permite recuperar a autêntica alegria que não ofende, nem provoca a tristeza de ninguém, antes faz sua a tribulação do irmão. 3. Caríssimos: este ano lectivo seja a demonstração, para cada um e cada uma, de que o cristianismo não é um desmancha-prazeres. A alegria não pode desertar da fé. A fé encara o mundo e a vida com esperança, com sabedoria, sem gravidade ou ligeireza, com regozijo pelo verdadeiro Deus. A alegria é o sentido da vida humana, exprime-se na gratidão, em glorificação a Deus, em gozo eterno. Viver como cristão é sentir o convite a uma alegria que parte do ser. Uma alegria que está tantas vezes escondida, como o tesouro no campo. Obriga a indagar, fazer silêncio, sondar, pôr-se a caminho. A Palavra de Deus é o guia para o tesouro, à luz do qual se tomam as opções, mesmos difíceis, porque se conhece o valor único de Deus. Sejamos testemunhas, no lugar onde aprendemos ou ensinamos, onde investigamos ou prestamos serviços, de que o sentido da vida não está na utilidade. Esse princípio cria muita crise radical, muito desgosto. Quem enlaça a sua liberdade com a do Criador liberta-se de questões geradoras de angústia. Fomentou-se uma desconfiança para com a própria natureza e seus instintos, para com a natureza exterior e sua diversidade. Estragou-se, assim, a alegria de viver. A criação, no dizer paulino, aspira na expectativa da revelação dos filhos de Deus, porque também quer ser livre da escravatura e da corrupção. A glorificação de Deus consiste na alegria diante da vida, no prazer descontraído que retira da vida finita e limitada, a participação mais profunda na alegria infinita do Criador. Quem goza a alegria da liberdade sente a dor dos outros, aflige-se com os sofrimentos. Na cruz de Cristo, Deus toma o ser humano a sério no dom total até à morte para lhe abrir a liberdade jubilosa da Páscoa. Ao celebrar a Eucaristia, memorial da Páscoa de Jesus, entendemos como a alegria cristã pode acontecer com lágrimas nos olhos, desde que haja liberdade no coração, louvor nos lábios e ternura nos gestos. Com liberdade pascal, sejam alegres. D. Carlos A. Moreira Azevedo Bispo auxiliar de Lisboa

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